Vou para casa

por João Miguel Henriques
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O país rendeu-se à chocante evidência dos números, inspirou-se no exemplo de outras nações europeias e decretou novas e rigorosas restrições no combate ao bicho que alastra. Fecharam-se bares, cafés e restaurantes. E também cinemas, teatros e museus encerraram portas. Instaurou-se um sombrio recolher obrigatório, a fazer lembrar outros tempos ou cenários de ficção distópica, embora neste caso suspeite que isso pouco ou nada afectará uma boa parte dos húngaros, habituados a recolher cedo a casa, especialmente nas estações mais escuras e em dias de semana. Além disto, claro está, foi também suspenso o bom velho ensino presencial em liceus e universidades. Esta pandemia obriga-nos não só a alterar profundamente modos de vida, mas também a reformular a linguagem utilizada para falar do mundo à nossa volta, pelo que agora não basta dizer que eu ensino ou dou aulas. É necessário acrescentar online, por oposição ao tradicional formato de presença física. Fomos para casa, professores e alunos, com o plano e a vontade de levar este semestre a bom porto, numa repetição daquilo por que todos havíamos passado na Primavera. Só que já na altura foi possível comprovar que não é a mesma coisa. Não pode ser, nunca será. A tecnologia presta um bom serviço, sem dúvida. É possível partilhar conhecimentos, colocar questões, debater assuntos. É até possível, ainda que menos bem, examinar desempenhos, avaliar interesses. Só que depois falta tudo o resto, tudo aquilo que acabou por revelar-se, sem que o soubéssemos realmente, muito mais importante do que alguma vez imaginávamos. Aquele olhar de curiosidade ou espanto. A energia de uma sala de aula. A linguagem dos gestos e posturas. Todo o ambiente, enfim, que faz de uma aula algo completamente diferente de uma sessão numa qualquer plataforma de comunicação virtual.

Vou para casa, vamos todos para casa, ligar-nos à máquina e desligar-nos um pouco da essência do ensino e aprendizagem. Vou para casa e já começo a ter saudades de algumas coisas. Do segundo café tomado na rua, antes da primeira aula, aos preços cada vez mais caros da nossa caríssima capital. Da saudação da porteira de serviço, aí metida num cubículo encimado pela palavra „porta” („portaria”, em húngaro, mas uma vez que a palavra surge exibida na própria porta da portaria, sempre me entreti a imaginar um mundo alternativo onde todos os principais objectos se apresentassem etiquetados pela palavra que os designa). Do rumor e movimento dos corredores do nosso Departamento, a principal comunidade de língua portuguesa do país. Da falta de alguns pratos na cantina da faculdade, logo pelas 12:30, pois entretanto já devorados por quem tem por hábito (e são tantos, meus senhores) de almoçar antes do meio-dia. Das palavras trocadas com colegas, sobre aquele livro recomendado ou aquela dúvida da língua portuguesa, a que a minha já longa ausência da terra pátria já só me permite responder hesitante, eu próprio já (ainda?) com tantas dúvidas minhas. E já começo a ter saudades também do caminho que me leva a casa depois de um dia de trabalho, porque se vou para casa, se agora vamos todos para casa, já também a casa passa a ser outra coisa.

Crédito imagem: Unsplash

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