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Turismo de massas deu lugar a cidades desertas e em crise. O que se prepara para corrigir excessos do passado no pós-covid?

Multidões nas ruas é um cenário que se inverteu drasticamente com a pandemia. Voltar a ter turistas é de momento a prioridade das cidades, mas há alguns sinais de mudanças que se antecipam quando vier a recuperação

Era o tema ‘top’ que dominava as atenções do mundo até ocorrer a pandemia: o crescimento em flecha do turismo nas cidades, que atingia níveis de massificação excessivos e a trazer efeitos preversos para os próprios habitantes, ameaçando até o seu afastamento.

O cenário virou-se do avesso com a covid-19: as cidades que mais viviam de turismo são agora as primeiras a sofrer uma crise sem paralelo, tendo ao contrário as ruas desertas e a economia suspensa com a falta de visitantes. Mas, segundo os especialistas, vale a pena nesta fase de turismo parado as cidades não perderem de vista as metas de sustentabilidade e planearem estratégias mais ajustadas para o momento da recuperação, corrigindo excessos cometidos no passado.

“O tema da massificação excessiva de alguns destinos turísticos encontrava-se já na ordem do dia antes da pandemia, sendo que esta pode ter acelerado a reflexão sobre o tema”, considera Eduardo Abreu, sócio da Neoturis, consultora nacional especializada em turismo. O analista frisa que “momentos disruptivos como aquele que atravessamos levam naturalmente a refletir sobre estratégias de desenvolvimento futuro, nomeadamente as que dão resposta às necessidades de um turismo mais sustentável no longo prazo”.

De momento, e face à crise económica que enfrentam, o foco das cidades está mais virado para voltar a ter turistas do que para criar restrições. “O paradigma inverteu-se, e em bom rigor está tudo em pânico, a querer os turistas de volta, e rápido, não só em Portugal”, faz notar o consultor.

A verdade é que o turismo não poderá regressar nos mesmos moldes e volumes que até aqui vigoravam nas cidades que, mais cedo ou mais tarde, terão de pensar seriamente em ter estratégias para o novo normal – e nesta fase mais dura de crise ainda não se vêem exemplos consistentes com esse objetivo, até porque a recuperação nas cidades se prevê mais lenta do que em outro tipo de destinos, mesmo com a chegada de uma vacina.

Seguem-se alguns sinais de mudanças que se antecipam, em Portugal e lá fora, muitos dos quais derivando de medidas que vinham a ser pensadas de trás.

VENEZA VAI TER TAXAS DE ENTRADA A PARTIR DE 2022

Era algo que já vinha a ser pensado na cidade italiana, apontada como um dos piores exemplos do mundo a nível de massificação do turismo, antes de ocorrer a pandemia: criar uma taxa de entrada aos visitantes diários que não pernoitam em hotéis, e que ascendem, ou ascendiam, a mais de 30 milhões por ano. A taxa localmente designada de ‘contributo di acesso’ ficou adiada em 2020 devido ao surto, mas Veneza decidiu este mês que a vai implementar a partir de 1 de janeiro de 2022.

 

Antes da pandemia, já se pensava em criar taxas aos visitantes que não pernoitam em Veneza, e que eram mais de 30 milhões por ano

Antes da pandemia, já se pensava em criar taxas aos visitantes que não pernoitam em Veneza, e que eram mais de 30 milhões por ano

KIT SUMAN/UNSPLASH

Veneza é, assim, uma das primeiras cidades a tomar medidas concretas para o pós-covid-19. “À luz da corrente situação com a pandemia, decidimos tomar um gesto importante na ótica de encorajar o refresso dos turistas”, explicitou Michele Zuin, responsável pelos assuntos económicos da cidade, ao anunciar as taxas.

As taxas de entrada em Veneza irão variar consoante os dias em que a cidade tiver maior movimento, no objetivo de dissuadir as pessoas de chegar quando está mais concorrida. Os valores ainda não foram acertados, mas estavam a ser equacionados preços à volta de 10 euros.

LISBOA SÓ RECEBERÁ CRUZEIROS A ATRACAR COM ENERGIA ELÉTRICA A PARTIR DE FINAIS DE 2021

Voltar a ter turistas é, de momento, a prioridade de Lisboa, o destino nacional mais fustigado pela pandemia covid-19 e onde mais de 70% dos hotéis estão de momento fechados devido à falta de hóspedes. A prioridade da câmara de momento é ajudar o comércio local a sobreviver neste período mais duro sem turistas, através da isenção de taxas e de apoios a fundo perdido, aos quais os estabelecimentos se podem candidatar num portal que estará disponível em dezembro.

Mas nesta fase já estão a ser tomadas algumas medidas de correção relativamente a impactos negativos verificados num passado recente. Um exemplo são os cruzeiros. No final de 2021 só irão atracar em Lisboa navios turísticos movidos a energia elétrica, na sequência de um protocolo celebrado este verão entre a câmara e o porto de Lisboa. O objetivo da restrição aos cruzeiros é mais de caráter ambiental, dado que “era uma fonte de poluição muito grande na cidade, quase tanta como a que é gerada no aeroporto”, segundo avança um porta-voz da câmara, referindo que a medida também irá produzir impactos no turismo, tendo em conta que nem todos os navios estão equipados com alternativas ao uso de gasóleo no momento de atracagem. E sendo certo que, para a indústria de cruzeiros, se prevê uma recuperação complexa no pós-covid.

A câmara de Lisboa também irá manter a proibição de mais alojamento local nas zonas do centro histórico – um dos temas mais contestados antes de ocorrer a pandemia, pela concentração turística gerada nos pontos mais batidos da cidade e os efeitos perversos ao nível de afastamento de residentes e sucessivos despejos de habitantes que tradicionalmente viviam nestes bairros, processo que também ameaçava descaraterizar a cidade.

O panorama entretanto mudou radicalmente com a redução de turistas devido à covid-19, mas a autarquia prossegue a estratégia de conseguir que alojamentos locais se reconvertam para arrendamento normal, o que já totaliza mais de uma centena de casos. “Não prevemos que o turismo nos próximos anos tenha os valores de 2019, mas esperamos que o segundo e o terceiro trimestres do próximo ano já sejam um pouco diferentes”, resume a mesma fonte da câmara de Lisboa, frisando que a capital portuguesa sempre esteve longe do ponto de massificação atingido em Veneza ou em Barcelona.

PORTO REFORÇA CICLOVIAS PARA DISPERSAR A CIRCULAÇÃO E PREPARA MEDIDAS PARA O PRÓXIMO ANO

A “sustentabilidade” do turismo na cidade quando se iniciar a recuperação para o momento ‘pós-covid’ é algo que já está na mira da câmara do Porto, que está a elaborar uma série de propostas e medidas que prevê apresentar em janeiro ou fevereiro do próximo ano. Tal como Lisboa, também a câmara do Porto sublinha que o seu caso não é de todo comparável ao volume e ao ponto de massificação atingido em destinos como Veneza ou Barcelona antes de ocorrer a pandemia.

A câmara do Porto está ainda focada no projeto de expandir as ciclovias na cidade, o que também tem o efeito de dispersar a circulação de pessoas e aumentar os percursos que podem ser feitos em bicicleta, em alternativa a outros circuitos mais concorridos. O município espera fechar o ano com 54 quilómetros de percursos cicláveis finalizados na cidade, quando o ponto de partida eram 18 quilómetros.

Melhorar a mobilidade e incentivar a utilização de transportes públicos em vez de carros próprios era outro projeto que mobilizava a câmara do Porto, o que sofreu um retrocesso devido às circunstâncias da pandemia. Mas o principal ponto crítico enfatizado pela autarquia vira-se nesta fase para conseguir voltar a atrair turistas, e não tanto o de criar restrições.

BARCELONA MANTÉM PROIBIÇÃO DE NÃO TER NOVOS HOTÉIS

A cidade catalã marcada pela arte de Gaudí – cuja obra maior é a Sagrada Família, um dos monumentos mais visitados do mundo – tem sido uma das mais massacradas pelo excesso de turistas, e um caso de estudo da forma como gera anti-corpos na população local. Mas a economia de Barcelona vive sobretudo de turismo, sector onde trabalham 120 mil pessoas, e a paralisação gerada pela covid-19 está a gerar uma crise sem precedentes na cidade.

Ruas desertas passaram a ser o cenário dominante em Barcelona, onde a paragem da covid-19 está a gerar uma crise económica sem paralelo

Ruas desertas passaram a ser o cenário dominante em Barcelona, onde a paragem da covid-19 está a gerar uma crise económica sem paralelo

COLLINS LESULIE/UNSPLASH

Barcelona mantém a lei urbana criada desde 2017, traduzida numa moratória que procura limitar o número de camas hoteleiras e em apartamentos turísticos e que proibe a emissão de licenças para construção de novos hotéis ou alojamentos. Mas face ao cenário de desertificação agora gerado pelo surto epidemeológico, o foco da cidade está virado para não ter os hotéis vazios e aliviar a crise económica e social que a pandemia está a criar.

MACHU PICCHU E OUTROS DESTINOS JÁ TINHAM CRIADO LIMITES ANTES DO SURTO

Diversos locais no mundo que atraem multidões de turistas já tinham criado restrições antes de ocorrer a pandemia covid-19. É o caso do sítio arqueológico Machu Picchu, visitado anualmente por mais de um milhão de pessoas, cujas entradas foram limitadas a 2500 por dia por decisão conjunta do governo do Peru e da UNESCO – e desde o início de 2019, quem quiser fazer caminhadas de vários dias é obrigado a contratar um guia oficial e a percorrer os trilhos em tempo restrito.

Também o Taj Mahal, na Índia, ficou com as visitas limitadas a 180 minutos para reduzir a aglomeração de turistas dentro do templo. No reino asiático do Butão cada turista tem de pagar uma taxa diária de 200 dólares (€162), o que inclui alojamento, refeições, transporte e guia, revertendo parte substancial das taxas para melhorias do sistema educativo e de infraestruturas do país.

A ilha de Santorini, na Grécia, já tinha imposto um limite de oito mil entradas através dos cruzeiros, e Cinque Terre, na Riviera italiana, tinha adotado um sistema de contagem de visitantes, limitando-os a 1,5 milhões anuais. O arquipélago de Galápagos, no Equador, decidiu limitar os desembarques de navios turísticos a quatro no espaço de 14 dias como medida de proteção das ilhas.

Os exemplos de restrições recentes, mas ainda antes do surto, estendem-se à Antártida, onde foi proibida a entrada de cruzeiros com mais de 500 pessoas e apenas 100 passageiros podem estar em terra de cada vez. E na Nova Zelândia foi decretado que apenas 100 pessoas podem caminhar em simultâneo pelos trilhos da ‘Milford Track’ na zona dos fiordes.

QUE TENDÊNCIAS SE ESPERAM NAS CIDADES QUANDO A PANDEMIA FICAR CONTROLADA

O que as cidades agora têm pela frente é a perspetiva de meses duros até à primavera de 2021, altura em que se prevê alguma recuperação no turismo, e de forma mais lenta nos destinos urbanos.

“Ninguém está a acelerar medidas de restrição, está tudo muito focado em chegar a março e abril e conseguir ter turistas, com a vacina a chegar ao mercado e haver alguma alguma regularidade nos aviões”, faz notar Eduardo Abreu, consultor da Neoturis.

Nos casos de Lisboa e do Porto, “cidades onde o tema do número ‘excessivo’ de turistas se tem colocado”, de momento a principal prioridade “na agenda dos decisores públicos e empresários é recuperar o fluxo de turistas perdidos, quando resulta clara a sua importância para a economia das cidades”, segundo frisa o consultor. E na fase atual, com todas as disrupções, ainda é prematuro assistir-se a “modificações estruturais no modelo de desenvolvimento”, apesar de poderem ser tomadas medidas pontuais de correção, e que já vinham a ser anteriormente pensadas.

Acresce-se que o turismo de congressos, que em muito alimentava as cidades, também saírá duramente afetado “não só pela pandemia, mas pela recessão económica das empresas, que irão ficar mais frágeis em 2021 e 2022, prevendo-se que os eventos e viagens de negócios fiquem reduzidos”, aponta ainda Eduardo Abreu.

Mas segundo a Neoturis há algumas tendências que estão a ser aceleradas com a pandemia, e no futuro próximo podem melhorar situações de excesso de turistas concentrados em pontos específicos das cidades, e que são:

1 – Desconcentração da oferta dos centros históricos para zonas periféricas

As cidades tendem a deslocalizar os atrativos turísticos para outras áreas fora dos centros históricos para dispersar a circulação dos visitantes e criar outros pontos de interesse. “Em Lisboa essa aposta já é clara em zonas como o Parque das Nações ou Belém, onde se pensa abrir os tesouros da Coroa no Palácio da Ajuda”, nota Eduardo Abreu, referindo que “os turistas que vêm de fora podem passar um dia inteiro em Belém sem pressionar a zona da Baixa e do Chiado”. Frisa ainda que levar mais gente “para zonas que não eram tão tradicionalmente procuradas como os bairros históricos é importante para fazer com que os turistas fiquem na cidade por exemplo três noites em vez de duas, conseguindo-se assim aumentar a estada média e o volume de dormidas sem a necessidade de trazer novos turistas”.

2 – Maior investimento no espaço público e áreas ao ar livre

É uma tendência que já se desenhava, mas que promete acentuar-se na sequência da pandemia, tendo em conta até o clima favorável em Portugal: investir em formas de usufruir melhor e criar maiores focos de interesse em espaços públicos de exterior, “e retirando também, por esta via, pressão a zonas fechadas”, conforme nota o consultor da Neoturis. Lembra ainda que “as taxas turísticas deixadas nas cidades servem justamente para investir nestes espaços públicos de forma a que sejam vividos pelos turistas e também pela população, compensando assim alguns efeitos predatórios gerados localmente por haver maior volume de visitantes”.

3 – Melhor gestão do número de visitantes nas atrações turísticas

A pandemia trouxe à tona a necessidade de uma organização mais eficiente das visitas a monumentos e outras atrações turísticas, com bilhetes e programas combinados ou horários alargados, uma tendência que veio para ficar segundo os especialistas em turismo. “Não se trata de obrigar as pessoas a ver os Jerónimos em 10 minutos, mas as visitas podem ser mais rápidas e mais fluentes com circulações bem feitas, entradas e saídas diferentes, de forma a evitar filas e que as pessoas se amontoem, tornando assim melhor a própria experiência da visita”, explicita Eduardo Abreu.

4 – Digitalização de bilheteiras, compra presencial a tornar-se mais cara

Esta é apontada como a grande ‘revolução’ que o surto sanitário levou à prática, quer do lado da oferta, quer da procura: o acelerar de formas de pagamento via eletrónica ou sem contacto, e a predisposição das pessoas para o fazer. As bilheteiras ‘online’ tendem a ser o novo normal em museus, monumentos ou outras atrações turísticas, e a compra presencial a tornar-se mais cara. A digitalização estará também “no centro das políticas de desenvolvimento sustentável que se procura atualmente, e será talvez o impacto mais rápido que se observará ao nível do desenvolvimento dos destinos”, nota Eduardo Abreu.

5 – Cross-selling de Lisboa e Porto com destinos adjacentes

As principais cidades estarão mais viradas para o objetivo de “espalhar os turistas por uma área geográfica de maior dimensão”, e incentivar os visitantes a complementar a estada indo para territórios nas suas proximidades, promovendo ativamente as suas atrações e lançando iniciativas de venda cruzada. “Na mesma viagem ao Porto pode-se ir visitar o Minho, no caso de Lisboa pode-se ir à Arrábida, e o turista globalmente também fica mais noites, o que multiplica o volume de dormidas e receitas, retirando mais uma vez a pressão dos centros históricos”, adianta o consultor.

6 –Princípio do utilizador-pagador a imperar no turismo

Com as taxas turísticas que já são aplicadas em hotéis e outros alojamentos, “os destinos ficam dotados dos fundos necessários para investir em políticas que atenuem a pressão do turista sobre a cidade e, ao mesmo tempo, não onerar os seus habitantes por via de mais taxas ou impostos para fazer face aos impactos negativos da procura turística”, salienta Eduardo Abreu, frisando ainda que “com as cidades com níveis de turismo mais baixo, pode ser um bom momento para refletir sobre formas onde podem ser aplicadas as taxas turísticas”.

7 – Mais turistas nacionais nas cidades

Mesmo com as previsões de vacinas à covid-19 no horizonte, “é natural que a recuperação de destinos de cidade seja mais lenta que destinos costeiros ou áreas rurais de baixa densidade”, conforme salienta o especialista da Neoturis, adiantando ser aqui que o esforço de promoção turística se deverá concentrar. “É também previsivel que o turismo doméstico seja objeto de investimento adicional em promoção nos próximos anos, no sentido de atenuar uma recuperação mais lenta por parte do turismo internacional”, conclui.

Fonte: Expresso