Telheiro de Baixo

por Henrique Delmar
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Estava eu no Telheiro, num matagal de juncos, ainda na primavera, em meados de maio. O tempo era inconstante; desde manhã caía, de quando em vez, uma chuvinha tépida, que alternava com um sol esplendoroso. O céu, ora se cobria de nuvens brancas e fofas ora se abria nalguns lugares por um instante para mostrar o seu azul ainda pouco intenso, a querer deixar as águas de abril. Ia muitas vezes para a ribeira de Pias, e por ali ficava à espreita das bogas, que raramente se acercavam do anzol que pendia numa fina linha, a farolar para uma boia de cortiça toscamente modelada. A essa hora costumavam aparecer as rãs-verdes, criaturas muito dispersas e ruidosas durante toda a Primavera, com proeminentes olhos dourados e no seu dorso uma linha verde com pregas a combinar com a cor dos olhos. Chegavam também os pintarroxos e piscos-de-peito-ruivo, acercando-se dos ninhos de folhas secas feitos em tigelas de musgo. Aguardava ansiosamente o final de tarde. Era dia da tia Maria trazer a alcofa com broas de milho branco ainda morninhas, recheadas de cebolas adocicadas, cozidas sabiamente uma vez por semana no seu forno a lenha.

O Telheiro, localizado no declive de uma colina desnuda, com algumas macieiras e erva farta a banquetear tarantas, era cortado de cima a baixo por um terrível carreiro. Abria-se como um abismo pelos silvados, serpenteando aluído e lamacento, nos dias mais chuvosos. Quando fazia sol, assolava-nos de poeira miudinha de terra vermelha a impregnar as sandálias de couro – “Pior que um caminho de cabras!”, bradava o avô Jorge, ilustre encadernador da Biblioteca Nacional, que para ali fora desterrado. É difícil de dizer o que o obrigou a abandonar Lisboa, a que, pelo que parecia, se habituara muito. Maldito carreiro. Nos dias de chuva, era pior que um rio. Os rios ainda têm pontes, mas aquele nem isso tinha. Percorria léguas a pé todas as manhãs, muitas vezes ainda de noite, para chegar à escola. Uma escola modesta, risonha e franca como no antigamente. Abrigava quatro fiadas de carteiras, onde sentavam os alunos, consoante a classe a que pertenciam, da primeira à quarta. Havia apenas duas salas. Uma para rapazes, outra para raparigas – nada de misturas, dizia a Bexiguenta, como carinhosamente era de alcunha apelidada, a professora primária. Um verdadeiro martírio. Imaginem a algazarra. Uma fila inteira a entoar a tabuada, a outra a ler em voz alta, a terceira a redigir um ditado, só para não referir a última, toda ela concentrada no estudo das dinastias. Pior que o carreiro era apenas a cantina, onde propunham todos os santos dias igual ementamento. Tinha telhas em canudo e uma chaminé; uma janela de olho penetrante a dar para o malfadado carreiro. À hora do almoço e nos dias mais invernais, via-se a bruma baça da neblina a cintilar sobre o prateado das oliveiras. Ali passei dois anos a comer sopa de feijão, batata e couve. Acompanhava o caldo um conduto que ainda hoje é o sabor mais hediondo que alguma vez experimentei. O malfadado óleo de fígado de bacalhau, aquela gordura crua e nauseante de um abjeto fígado cru, que nos obrigavam a engolir de uma só vez. Maldito óleo de fígado de bacalhau. Diziam que fazia bem. Mil vezes pior que aquele maldito carreiro.

Pias… era terra de pão. Na Quinta dos Olivais, onde AC era feitor, cresciam da terra fértil boas cerejas e frutos perfumados. Da queijaria dos Olivais saíam também os afamados queijos das Areias. Famoso desde sempre, o seu segredo não é mistério. A qualidade do pasto, a utilização de cardo e as mãos sábias de várias gerações faziam deste queijo uma sagrada maravilha. Era vendido na Feira da Ascensão e vinha gente de todo o lado comprar o famoso queijo. Mas o que mais fascinava era mesmo o milho, que crescia vigoroso e enfeitiçava a cumprir a sua missão, em leiras empoleiradas e sobrepostas. Era então arrecadado, depois de escamisado na eira, nos espigueiros da quinta que faziam lindas sombras ao crepúsculo. Comum era ainda o milho miúdo e o painço, que fazia valer o seu sabor numa forma de polenta firme e cremosa, nunca grelhada ou frita, feita com a mesma receita pois não inventavam muito. O moleiro das Pias andava sempre cheio de serviços a recolher o grão de casa em casa, levado nas albardas dos jumentos para os moinhos da Serra da Forca. Era um homem corpulento e anafado, de cara gorda e branca como a farinha, nuca de boi e uma grande barriga redonda. Quando trazia a farinha em sacas de serapilheira fina acomodava-se junto à Casa do Regedor, ao lado da igreja de São Luís de Tolosa. Olhava com gratidão, orgulhoso, quando a tia Maria o brindava com uma broa de milho, umas vezes com cebola, outras vezes com petingas. A broa nunca vinha só. O moleiro soerguia-se, sempre com a mão na nuca, benzia-se e emborcava o copo. “Que Deus lhe dê saúde!”, pronunciava.

Nesse dia, ao cair da tarde, despedi-me das rãs e dos piscos, recolhi a palamenta e regressei ao casarão esconso onde vivia. Ainda passei ao lado da taberna do Chico onde, sem pedir, me davam quando os havia, uns tremoços mágicos, curados pela água fria da ribeira. Nessa taberna, o vinho era vendido a preço mais alto do que o corrente. Mesmo assim, a Taberna do Chico era o estabelecimento mais frequentado nas redondezas. Quando cheguei a casa fiquei feliz. Em cima da mesa, estava uma broa de milho branco, recheada de cebolas adocicadas que a tia Maria me deixara. Sentei-me à luz do candeeiro a petróleo e deleitei-me a saboreá-la.

Excerto do ensaio sobre a Vila de Pias (Ferreira do Zêzere)

 

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