Tibor Déry, (18 de outubro de 1894, Budapeste, 18 de agosto de 1978, Budapeste), foi romancista húngaro, escritor de contos, poeta e dramaturgo, uma das figuras mais respeitadas e controversas da literatura húngara do século XX. Foi preso pelo seu papel na revolução de 1956. Nascido de uma família judaica de classe média-alta, Déry formou-se na Academia de Comércio de Budapeste. De 1913 a 1918, trabalhou como empregado de fábrica e escreveu muitos poemas e ensaios. O seu romance Lia (1917) levou-o a uma acusação de indecência. Entre 1917 e 1919 muitos dos seus poemas e contos foram publicados em Nyugat (“Oeste”), uma das revistas literárias mais influentes da época. Durante a revolução de 1918, aderiu ao Partido Comunista Húngaro, e em 1919, sob a República Soviética Húngara, tornou-se membro da União dos Escritores. A sua Szemtől szembe (“Olho no olho”), uma série de três livros, examina os aspetos psicológicos da revolução. Após o colapso da República, foi preso por um curto período de tempo; depois emigrou primeiro para a Checoslováquia e depois para a Áustria, onde trabalhou para o Bécsi Magyar Ujság (“Hungarian News of Vienna”). Mais tarde, foi para a Baviera, depois para Paris em 1923, e para Itália em 1926. Neste período escreveu poemas surrealistas e obras em prosa e completou a sua peça de vanguarda Az óriáscsecsemő (“O Bebé Gigante”). Em 1926 regressou a Budapeste, onde se tornou editor da revista Dokumentum e traduziu obras literárias do alemão, francês, inglês e italiano. Em 1933 Déry regressou a Viena, participou na revolta Schutzbund, e começou a trabalhar talvez na sua obra mais importante, o romance A befejezetlen mondat (“A Sentença Inacabada”), concluída em 1937, mas publicada uma década mais tarde.
Sentença inacabada (Fragmento)
Tibor Déry
Devido ao frio incessante, as ruas tinham sido desocupadas muito cedo, muito antes do cair da noite, e uma vez que nos edifícios, na sua maioria novos, havia ainda andares completamente vazios à espera sem luz, os estores dos quartos habitados retinham a iluminação interior, e lá fora, a cada segundo, uma das lâmpadas de gás era acesa, cujas fracas luzes se escondiam na neblina; a Rua Csáky permanecia escura e sem ser percorrida nesta noite de dezembro como uma via-férrea em descostume. Não se ouviam carros ou passos humanos, apenas o ranger do gelo entre os paralelepípedos, e o denso nevoeiro que, numa forma mais fina, era a continuação da neve negra e suja que cobria completamente as paredes das casas, os postes de luz, os telhados, portas e janelas. Não se conseguia ver dez passos. Nos becos mais arejados, a neblina desintegrava-se em pequenas formas irregulares que, como um papel de parede floreado a cinza, forrava os murais das casas com longos ramos semelhantes a samambaias, e de vez em quando uma brisa passava por elas, como quando se fixa os olhos nos cachos das paredes, pouco antes de adormecer. Onde não era interrompida por esquinas, a rua tornava-se um longo salão, como uma casa abandonada cujas portas estavam todas fechadas, e da qual os homens das mudanças já haviam saído, tendo o último deles deixado as luzes acesas. A sensação de frio e solidão era agravada pelo conhecimento de que algumas ruas mais distantes, não pudessem ser vistas a distância real, devido ao nevoeiro – sobre o Danúbio gelado, esticavam-se paralelamente imensas massas de gelo e neve a transpirar frio como um lençol voador, e atrás do rio, através das camadas sensíveis da consciência, as montanhas familiares mas invisíveis de Buda podiam ser vislumbradas, e através das suas colinas um vento imaginário empurrava a névoa firmemente para baixo em direção ao bairro de Lipótváros. De tempos a tempos ventos mais fortes agitavam os padrões do papel de parede ou arrancavam-no completamente, e o salão vazio subitamente alongava-se, tornando novamente familiar a Rua Csáky. Havia também uma fenda no teto, como se a realidade se tivesse fartado de participar no rudimentar jogo das similitudes, e acima das rendas de névoa o céu de Inverno com a sua cor honesta e estrelas cintilantes espreitava.
A poucos passos, na esquina da Rua Sziget, o nevoeiro voltou a fechar-se, desta vez em formas mais espessas, de modo a dar a impressão não de um telhado plano mas sim de uma colina, e abaixo dela a rua tornou-se um túnel estreito e deserto, sob cujos cofres ainda havia o sabor do fumo e da fuligem já dissipada. O leve cheiro a fumo de padeiro, que na realidade estava a entrar na cidade a partir das fábricas de Óbuda e Újpest, alterou subitamente as imagens causadas pelo nevoeiro. Há um minuto atrás, graças a uma brisa rápida, tinha deslocado a Rua Csáky para as margens do Danúbio, aos pés das montanhas de Óbuda – como na América, onde as pessoas arrastam uma fila inteira de casas de um lugar para outro – e por detrás das ondas negras tinha feito os ventos e a escuridão descer das montanhas acima das estrelas cintilantes dos candeeiros de rua, evocando o ranger dos enormes lençóis de gelo do Danúbio e o seu cheiro imaginário a neve. Agora o cheiro a fumo mais ligeiro, mas real, como agulhas mecânicas, deslocava subitamente as engrenagens e rebocava a rua impotente para as indústrias da rua Váci e da estação do Ocidente. Por detrás do nevoeiro havia vislumbres de armazéns escuros, dentro dos quais se podia ouvir – como antes do murmúrio do vento e dos bosques – os passos dos guardas-noturnos a perscrutar, faziam menos barulho do que o tiquetaque de um relógio. Um comboio agitava-se à distância. Eram dez horas; deve ter sido o expresso de Praga que tinha acabado de entrar sob o vestíbulo de vidro invisível da Estação do Oriente. De uma porta vinha um cheiro indefinível, possivelmente de uma lata de lixo: cheiro de trapos, cascas de ovos, cascas de batata, cinzas e papel húmido. Estes odores distintos, como baldes de um conjunto de construção, criavam imagens desbotadas sobre as casas apinhadas, e projetavam-nas para a rua. O cheiro flutuava à altura do chão sobre as calçadas, tão sugestivo e persistente pelas paredes nebulosas, como imagens projetadas, um pouco desfocadas e cinzentas, mas totalmente animadas, onde apareciam as visões sobrepostas de barracas com camas apinhadas, casernas que serviam de cozinhas, panelas não esfregadas, fardos, e entre elas, sapatos de fuga.
Fonte: Cortesia da Fundação Húngara do Livro (Magyar Könyv Alapítvány) e da Revista Digital Lho.es
Versão Portuguesa: Arnaldo Rivotti