Saúde 2021. Regressar ao futuro?

por LMn
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1- Inverno. É o inverno mais longo. Ao telefone soubemos que morreu um amigo. Quarenta dias de internamento e sofrimentos. Faz-nos falta. E logo, no noticiário da noite: em Setúbal há pessoas que não têm como comprar para comer. É a fome com a vergonha de pedir. À última hora: uma nova variante do malfadado vírus. Uma ameaça mais? E um toque no WhatsApp: no condomínio de 32, “algumas pessoas estão a atingir os limites” – temos de conversar! A vacina chegou, que bom, mas a seu ritmo. A distância protegida continuará como a solução possível, verão adentro. Resistiremos.

2 – Pandemia destapou. A pandemia destapou crónicas limitações nas nossas instituições, comportamentos e formas de governação: respondemos com grande dificuldade aos desafios do envelhecimento. Em parte, porque o SNS não deu ainda o salto qualitativo necessário para superar a sua fragmentação original e gerir bem os percursos das pessoas através dos cuidados de que necessitam. Mas também porque nos faltam políticas e orçamentos de bem-estar que articulem a ação dos vários setores para um mesmo fim; sem uma “política para as profissões da saúde”, estas continuarão a abandonar, crescentemente, o SNS; na saúde pública, à sua versão centralista, normativa e autoritária, igual para todos, que apela à obediência, é necessário acrescentar melhor aquela outra que descentraliza, informa e diferencia localmente, que conta com as pessoas e apela à sua inteligência; fazemos planos de “inverno” ou de “vacinação” que não são acompanhados de quaisquer referências à base científica das opções adotadas.

3 – Oportunidade de desenvolvimento. Não podemos simplesmente esperar pelo verão, sem mais. Queremos começar a recuperar o que perdemos, mas fazê-lo regressando ao futuro. Há 20 anos numa “classificação” envolvendo os sistemas de saúde de todos os países do mundo, promovida pela OMS, ficámos em 12.º lugar. De notar, no entanto, que o índice adotado para comparar desempenhos entre países foi ajustado em função da escolaridade e da capacidade em criar riqueza da parte de cada país. Não tínhamos, propriamente, o 12.º melhor sistema de saúde mundo – o que a análise nos disse foi que, comparativamente, o desempenho na saúde em Portugal excedia o que seria de esperar face ao grau de desenvolvimento do país. Dificilmente poderíamos fazer muito melhor na saúde, se o país não progredisse no seu desenvolvimento económico, social e cultural.

4 – Modelo de governação. Somos capazes, nas diversas dimensões da nossa casa comum, de lidar produtivamente com o desassossego que este desnudar de fragilidades nos traz? Será possível sustentar um sobressalto criativo, para regressar ao futuro, ou começámos já a soterrar apressadamente os incómodos que a pandemia destapou?

Talvez o que mais está em causa seja um modelo de governação, que temos desde há décadas. A extrema complexidade dos desafios habituais ou extraordinários da saúde expõem com suficiente clareza a grande insuficiência do atual modelo: ministro-secretários-diretores-reúnem-despacham-mandam-fazer. Em círculo fechado. Que acrescenta e perpétua, mas não transforma. Que não aparenta cultura e instrumentos de aprendizagem.

5- Conhecimento e decisões políticas. Precisamos de uma governação mais sensível ao conhecimento – um processo de aconselhamento científico contínuo, transparente e independente dos poderes, capaz de fazer uma síntese do estado da arte e vertê-la em propostas de ação, comunicadas ao conjunto da comunidade. Por exemplo, no Reino Unido existe um grupo consultivo para emergências (SAGE) que se reúne regularmente e faz recomendações ao governo. É o SAGE. E, no entanto, um grupo prestigiado de académicos e profissionais, insatisfeito com a sua constituição e desempenho, especialmente na comunicação com o público, criou o independente-SAGE. Este promove, à distância, todas as sextas-feiras, às 13h30, uma sessão de esclarecimento público. O governo sueco projetava constituir uma comissão científica independente para avaliar a gestão da pandemia pelas autoridades, no fim da pandemia. As coisas começaram a correr mal e o governo sueco decidiu antecipar a criação dessa comissão, que emitiu agora o seu primeiro relatório. Este é severo para o governo e fez recomendações claras sobre o que é necessário mudar. Nas culturas do sul, ainda não estamos perto disso. E precisávamos.

6 – Instituições e pensamento estratégico. É necessário traduzir, conhecimento em ação. Sabemos que temos no país “múltiplas competências funcionais, mas que escasseiam capacidades institucionais essenciais”. Na administração pública, temos uma primeira linha que acorre ao imediato, mas falta-nos uma segunda linha que pense o país, mais à distância. Prospetivamente, com análise e planeamento estratégico. Para não chegarmos ao futuro tarde e mal preparados, precisamos de começar de facto a pensá-lo, não ocasionalmente, mas contínua e sistematicamente.

7 – Inteligência colaborativa. As transformações reais fazem-se com as pessoas. São, quase sempre, mudanças adaptativas de proximidade, que implicam múltiplas lideranças locais capazes de fazer a diferença. Não é possível governar hoje sem gerir conhecimento em arquiteturas colaborativas. Transformar requer um elevado grau de inteligência colaborativa – partilhar informação selecionada e personalizada que promova as convergências necessárias para realizar objetivos de interesse comum e aprender continuamente com a experiência. Só assim saberemos onde convém condicionar e normalizar, para que, na maior parte do sistema, se possam promover respostas adaptadas a cada circunstância.

8 – Audácia para transformar. Precisamos de novas respostas. Mas, desta vez, temos de as procurar bem mais fundo na nossa forma de existir. Num momento-movimento de refundação. Mesmo que para tal fosse necessário ouvir o poeta e mandar parar os relógios, silenciar os pianos, empacotar a Lua e esvaziar os oceanos: interiorizar, “inscrever”, das comunidades reais a um Estado mais próximo e menos abstrato, desenvolver “uma relação realista com nós próprios”. Na maior oportunidade depois de abril, teremos agora a audácia de começar, de facto, a transformar?

Constantino Sakellarides

Professor catedrático jubilado da Escola Nacional de Saúde Pública

DN

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