Retratos

por Luís Serpa
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S. é um inglês desenhado pelo modelo da fita métrica: comprido e fino. B. diz que ele lhe dá na coca, mas nunca o vi mais excitado do que um caracol bêbedo. É barbeiro de profissão e – diz ele – já foi fotógrafo, trabalhou num yacht broker (agência de venda de embarcações de recreio. É difícil encontrar alguém em Palma que não esteja ou não tenha estado em contacto com o mundo do yachting). Quando o primeiro confinamento chegou era funcionário da TUI. Está sem trabalhar regularmente desde o início da pandemia e aparentemente ainda não recebeu um tostão de ajuda do governo – não é o único, tanto quanto sei. De vez em quando vai fazendo uns biscates – ontem veio cá uma rapariga cortar o cabelo e às vezes oiço-o combinar os pormenores de um trabalho no interior da ilha, para o qual não sabe como deslocar-se. Se bem esse seja o menor dos problemas: tão pouco sabe como lhe hão-de pagar, porque o banco fechou-lhe a conta. É para uma produtora de filmes. Trabalha em cinema, também. Tem uma filha de doze anos, um filho de quarenta e quatro e uma neta de treze. Tanto o B. como eu ajudamo-lo discretamente na comida.

B. é canadiano e marinheiro. Tem cinquenta e nove anos. Acabou agora um trabalho de três meses e meio como o day worker num veleiro de trinta e tal metros e diz que está reformado. Tem mais dois jobs alinhados, mas como sempre nesta vida não sabe quando. Já navegou para um armador português bastante conhecido. É muito histriónico quando fala, faz a cada três frases um trejeito com a maxila inferior que abre e projecta para a frente, como a gaveta de uma caixa registadora que se abre. Bebe desalmadamente (mas não toca na coca: «só cerveja»). Foi através dele que arranjei esta «casa» (aspas para acentuar a generosidade ou o exagero do termo). B. viveu alguns anos na Patagónia – onde tem um terreno – e está em Palma há mais de dez anos. Não fala espanhol e de vez em quando vai a um bordel. Não sei se visita sempre a mesma senhora ou se muda, se as escolhe pela língua que falam ou se por outras competências. Gosto muito dele. Usa a cerveja para esconder sensibilidade e inteligência, que só muito raramente deixa escapar da caixa onde resolveu escondê-las, vá lá saber-se porquê. Toca harmónica, mas só o ouvi uma vez, há muitos anos.

M. é uma alemã da mesma idade. Diz-se enfermeira geriátrica, mas penso que enfermeira é um lapso de vocabulário. É o dragão da casa. A sua principal actividade, para além do trabalho, é partilhar a infelicidade na qual vive permanentemente. Ela é a única que… Acrescente-se seja o que for, ela é a única. Deixei de lhe ligar ao fim de uma semana e meia: é a única que se preocupa com os sacos de lixo, com a ecologia e – muito provavelmente, não sei – com o problema de tratamento de águas usadas nas ilhas Kerguelen.

A casa é um horror, mas como todos os horrores cada vez menos: habituamo-nos, fazemos o nosso canto, o nosso território, por assim dizer. Na verdade a convivência é agradável: M. vive fechada no quarto e só é vista quando vem cozinhar – ocupa a cozinha horas a fio -, S. só sai para ir passear o cão – um desses mini-cães, demasiado velho para sequer ladrar –, B. volta do trabalho a queixar-se de dores, cansaço e tensão a bordo (deve ser muita, a julgar pelo que ele conta) – e poucas vezes estamos todos juntos («todos» sendo nós os três. M. vive noutro planeta).

No rés-do-chão do prédio ao lado há uma mercearia de um argentino. Segundo B., também lhe arrefinfa nos cheiros. Se tal é o caso, também não se nota. Abre sete dias por semana, trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Para nós é uma sorte: tem o mini-mercado mais bem fornecido que vi até hoje e faz crédito se não temos dinheiro líquido (não aceita cartões).

Não muito longe está o bar Rita, de que já tantas vezes falei, a praça de santa Eulália, uma das minhas favoritas em Palma – ainda no outro dia lá fui comer almôndegas ao Toni, as melhores da cidade. São feitas pela mãe dele, abençoada seja a senhora, mai-las almôndegas, a tortilha e tudo o que ali se come.

Nunca mais terei uma casa como a Volta Dos, cujo terraço enorme propicia uma vida social a sério e cujo preço filtra a clientela. Lá passei muitos meses, mais de um ano certamente, se juntarmos todos os bocadinhos. Vivi em muitas casas partilhadas, verdade seja dita; e gostei da maioria delas. São uma maneira de se conhecer gente, de não se estar sozinho quando se quer companhia e – sobretudo – de se poder estar sozinho quando se quer estar sozinho, coisa que nem todas as famílias propiciam. Aqui em Palma é a norma para quem, como eu, trabalha em barcos e por uma razão ou outra não pode dormir a bordo ou não tem bordo onde dormir.

Penso em todas as pessoas que conheci nas casas partilhadas ou nas crew houses (a versão marítima dos albergues de juventude, agora conhecidos por hostels) por onde passei. Não me queixo, por más que tenham sido algumas experiências – e algumas foram-no. Uma vida é feita disto, não pode ser só crème chantilly em cima de morangos. Há dias em que o creme azeda, os morangos são uma porcaria, o prato parte-se a caminho da mesa. Também são dias e ensinam a relativizar e a valorizar, lições só aparentemente contraditórias.

 

II

É sábado e os cafés não podem reabrir às oito da tarde, como durante a semana. É óbvio – sempre foi, mas agora devia sê-lo ainda mais – que estas «medidas» não têm qualquer objectivo sanitário. Servem de capa aos governos, para quem reconhecer a fraude que isto tudo foi é impensável, aos jornais (ditto) e continuam a embalar os crentes na sua crença. Alguém imagina o Papa vir dizer que a Virgem não o é, que a Santíssima Trindade não passa de uma construção do espírito ou que a transmutação de água em vinho é a expressão de um desejo há muito ancorado no imaginário da humanidade? Que seria, da santa madre igreja? E se alguém dissesse aos terroristas muçulmanos que não há virgens no paraíso? Acresce que a senhora que governa as ilhas Baleares é da escola Sánchez & Costa (se bem, admitidamente, este esteja dois ou três patamares acima, coisa que à primeira vista parece impossível mas não é). De modo fui fazer a soirée ao fim da tarde: um gin tónico no Toni, um extenso passeio de bicicleta, flores na Rambla – é importante ter flores em casa, dão cor, cheiro e alegria visual mesmo à pior das fealdades. Na Rambla – que está muito longe de ser feia, note-se – há sete ou oito floristas seguidos, como em Barcelona mas para melhor, porque é mais pequena do que a irmã da península. Às vezes vou lá comprar um girassol, uns malmequeres, flores simples, rústicas, baratas. Não servem para impressionar ninguém se não o tempo que passa: «Este gajo ainda gosta de flores?»  Sim, gosto. Como gosto de pedalar naquele passeio tão bem cheiroso, tão lindo, tão apaziguante.

Continuo a gostar de tudo como sempre gostei, mesmo que o «tudo» seja outro.

Luís Serpa, Palma, 01-05-2021

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