Saímos de manhã cedo para a varanda a beber o café e dar os bons-dias ao pinheiro de Natal (sim, este resiste firme e feliz num vaso robusto, ao contrário dos milhares de abandonados pelas ruas da cidade, nas primeiras semanas de Janeiro). Diante de nós, o pátio da escola apresenta-se estranhamente vazio e silencioso. Estão todas em casa, as crianças. Acho que sentimos um pouco falta dos miúdos, apesar do ruído ensurdecedor com que animavam as nossas jornadas de teletrabalho. Eram por vezes gritos lancinantes, injúrias demasiado grosseiras para aquelas idades, mas também muito riso, muito vigor de recreio, muita promessa de bons contribuintes fiscais para a nossa reforma. Ela aponta-me umas quantas bolas do lado de cá da vedação da escola, lançadas para fora dos limites do recreio por algum chuto mais violento e menos certeiro. Uma delas está já meio vazia, as outras duas simplesmente furadas, para sempre esquecidas por entre a erva alta. Ponho-me pensar quanto tempo precisaria a natureza para degradar a borracha, o cauchu, de acordo com aqueles cartazes informativos com que as autoridades de proteção ambiental nos costumam pretender indignar. Cem anos? Um milhão?
Dormi muito bem, estou de ideias soltas e rápidas associações. Lembro-em de como também eu, com os meus primos, muitas vezes nos víamos obrigados a saltar muros e vedações para resgatar bolas de futebol de propriedades privadas. Por vezes, cheios de uma coragem impossível, tínhamos de tocar à porta de desconhecidos e pedir a bola de volta. Em certa ocasião, arrombámos a pontapé uma velha porta de madeira apodrecida, para aceder ao terreno onde se havia perdido uma bola, só para encontrar diante de nós e para nosso absoluto terror o furioso proprietário, de braços cruzados e dez metros de altura, pronto a castigar o trespasse e a insolência.
E logo de seguida, a propósito de medos e bolas perdidas, diverge-me o pensamento para um belíssimo poema do catalão Joan Margit, recentemente falecido aos 82 anos. Não me lembro imediatamente do título, mas sei que tenho o livro dele ali guardado na estante, adquirido na Casa Fernando Pessoa aquando da passagem do poeta por Lisboa. Folheio o volume à procura desses versos. Margit dizia que um bom poema, por mais belo que seja, tem de ser cruel. Vai assim, “O sapateiro”:
Costumávamos jogar ali à bola.
A praça da igreja erguia-se
uns dois metros acima de umas pequenas hortas
que estavam ao lado de um sapateiro.
Quando a bola caía, algum dos nossos
tinha de ir rápido dependurando-se.
Se o sapateiro chegava lá antes,
cortava-a com o seu cutelo.
Não sei que pescoço cortava na bola
de borracha daquelas crianças. Dava-me medo.
Um medo que já não era o mesmo
que o dos contos ou do quarto escuro.
Era um medo mais duro. Mais real.
Como quando tu estavas com outro,
ou quando morreu a nossa filha.