Diário de um médico português na Hungria (excertos 3.)

por LMn
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Por José Tajola

Enquanto estudante, deslocava-me com frequência à antiga Jugoslávia. Kecskemét ficava a meio caminho, a cerca de 100 km de Budapeste. Comecei a ganhar empatia por esta pequena cidade, capital de Bács-kiskun, onde o verão é morno e o inverno seco e frio.

Curiosamente foi em Kecskemét, que nasceu Ida Ferenczi, leitora e dama de companhia da Sua Majestade, a Imperatriz da Áustria-Hungria, famosamente conhecida por “Sisi”.

Ida Ferenczi – amiga da Sissi

Comecei a apaixonar-me por Kecskemét e pelas suas gentes. Muitas vezes em viagem, por ali parava para almoçar ou jantar ou tão somente para conhecer os seus monumentos, como o Teatro de József Katona ou o Palácio Cifra, que nos transporta para o universo mágico dos contos infantis, com as suas paredes revestidas por coloridos azulejos da afamada fábrica de Zsolnai.

Palácio Cifra

Uma decisão ganhava cada vez mais em força em mim. Kecskemét era a cidade onde gostaria de viver!

Logo após ter concluído os estudos em Budapeste liguei ao diretor do hospital de Kecskemét. Informou-me que não me poderia garantir vaga no serviço de clínica interna de cardiologia, mas havia vagas nos serviços de anestesia e cuidados intensivos, com a promessa de que passado um ano poderia passar para cardiologia.

Apresentou-me o médico-chefe que conduzia os cuidados intensivos, acho que foi simpatia mútua. Comecei assim a trabalhar no hospital no dia 15 de outubro de 1986.

Aquando da minha apresentação aos futuros colegas, o espanto foi geral. Era o primeiro médico estrangeiro a trabalhar no hospital, ainda para mais vindo de Portugal. Confesso que para esta minha decisão muito contribuiu a formosia das mulheres magiares, o que não andava longe da verdade.

Os primeiros 3 meses no hospital foram de trabalho árduo e de enorme responsabilidade. Pouco tempo depois já fazia serviço de banco. Na altura, tal como hoje, havia muita falta de médicos anestesistas, por quem nutro especial apreço, conjuntamente com a assistência especializada que têm hoje um papel determinante, por estarem sempre na linha da frente, especialmente nos dias de hoje, no combate ao Covid-19.

Hospital de Kecskemét

Aqui utilizei muito a experiência adquirida no ano anterior como oficial de ambulâncias.
O meu chefe tinha muita confiança em mim, sentia que dominava as tarefas práticas do serviço, e colocou-me muita responsabilidade em cima dos ombros.

Tenho de realçar que tive a sorte de ter tido colegas com muita experiência, inteligentes, que dominavam a especialidade, e que me ajudaram muito. Deixo também uma palavra de reconhecimento ao meu chefe de serviço, que foi para mim uma referência pessoal e profissional.

Desde o início foram-me também atribuídas funções paralelas como médico de ambulâncias, dando também assistência médica em atividades desportivas.

Em resultado do meu envolvimento com as pessoas, passado 4 anos já conhecia metade da população de Kecskemét. Já anteriormente no meu trabalho como médico de ambulâncias, era o responsável por uma vasta zona e por tudo o que ali acontecia, como acidentes, intoxicações, suicídios, enfartes do miocárdio, embolias pulmonares, etc,.

Também aqui, registo muitas experiências positivas ao nível da assistência e de colegas com quem trabalhei. Fomos os primeiros médicos em Kecskemét a poder utilizar tratamentos avançados aos sinistrados, medicamentos mais sofisticados que só eram nessa altura utilizados em serviços especiais no hospital.

No último grande nevão na Hungria, em 1986, estava eu de serviço e só podíamos sair em socorro, porque um trator nos puxava de reboque. Na altura eram raras as ambulâncias 4×4, com tração às quatro-rodas.

Em 1987 nasce a minha primeira filha. Quase não tinha tempo para a ver. Muito trabalho, pouco salário. Numa das ocasiões em que fiz serviço de ambulâncias conversei com uma colega que fazia serviço paralelo, como médica de família.

Pedi-lhe que se soubesse de uma vaga numa aldeia ou povoação perto de Kecskemét para me informar.

Qual não foi a minha surpresa, passado uma semana, numa manhã, em meados de março de 1988, quando me procuraram por telefone.

Era a presidente de junta de uma freguesia com pouco mais de 1000 habitantes, a 18 km de Kecskemét. Teve conhecimento que estava interessado numa vaga de médico de família, e nessa povoação já há 3 anos que não tinham médico permanente, apenas substitutos.

Foi como um pequeno choque, não imaginava que haveria uma possibilidade tão rapidamente.
Para todos os efeitos prometi passados uns dias telefonar. Relatei a novidade à minha companheira e no fim de semana seguinte, fomos à aldeia como visitantes-mistério.

A aldeia era muito acolhedora e localizava-se junto a um Parque Nacional. Fomos à taberna, falámos com as pessoas, no pequeno supermercado a mesma coisa…uma pequena sondagem…

Na parede da Casa da Cultura pendia um cartaz onde estava escrito: “Nesta aldeia não é permitido fumar”, e realmente não víamos ninguém a fumar, nem na taberna…. primeiras impressões deveras positivas… pessoas disciplinadas, educadas, todas as casas com um jardim cuidado e bonito… apesar do seu aspeto rural … o que era natural… muitos habitantes trabalhavam na cooperativa ou nos próprios terrenos… .

Na semana seguinte liguei à presidente da junta e marcámos um encontro na junta de freguesia da aldeia.

Os responsáveis e chefias da aldeia estavam todos presentes. Informei-os que nesse momento não podia assumir a vaga porque trabalhava no hospital e até tirar a especialidade de anestesista não me seria razoável deixar o trabalho. Mas há outra alternativa. Disse-lhes que tinha lá estado em incógnito, há uns dias e que tinha gostado do que vira… A alternativa era que até tirar a especialidade, poderia efetuar o serviço de médico de família em regime de meio tempo, depois de terminar o trabalho no hospital, 3-4 dias por semana daria consulta na aldeia…

Pediram-me uns dias para pensar…

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