Pode-se viver dignamente ou também é preciso o cartão de imunidade húngaro?

por Joel Lopes Egas
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“Gostaríamos de informar que desprezamos a última medida do Governo e que, no nosso restaurante, não fazemos, nem nunca iremos fazer distinção entre clientes com certificados e clientes sem certificados”. Regozijei quando vi esta publicação do pequeno restaurante Nokedli, em Nagymaros. Foi um pequeno grito de liberdade e decência contra esta lei draconiana que obriga as pessoas a terem um cartão de imunidade para aceder ao interior de restaurantes, teatros, museus, termas entre outros – criando cidadãos de primeira e segunda classe.

Antes de continuar o texto, gostaria de alertar o leitor para o facto de que não sou contra a vacinação, tendo eu mesmo sido vacinado. Mas recuso veementemente a desumanidade e o “jogo sujo” deste tipo de medidas. Senão vejamos.

Faz algum sentido que, por um lado, o governo diga que ninguém é obrigado a ser vacinado, mas depois, só quem tem o cartão de imunidade é que pode voltar à “vida normal”. Não será isto uma violação flagrante ao princípio de Igualdade que acontece estar plasmado na Constituição húngara, como alertaram vários juristas? Especialmente em serviços públicos ou quasi públicos, para onde todos os trabalhadores deste país descontam impostos.

É também de uma profunda injustiça ética e legal, que se abram estas “licenças vip” num momento em que as vacinas não estão disponíveis a toda as pessoas. Este tipo de medidas causa ainda mais polarização, fazendo quase lembrar episódios do Gueto de Varsóvia, onde os cidadãos com a estrela de david cozida na lapela, tinham menos direitos que os outros.

Mas pior que tudo isto – é que o sistema de atribuição de cartões de imunidade provou ser um fracasso. Cartões que não estão a ser atribuídos a estrangeiros, cartões perdidos pelo Magyar Posta, cartões que demoram 2 meses, erros de registo do hospital e fácil falsificação de documentos – são algumas das queixas mais célebres de um sistema profundamente ineficaz.  Para colmatar este erro, o Governo decidiu lançar a semana passada uma app (Eeszt Akalmazas) com vista a oferecer um certificado de imunidade digital, mas aparentemente também não funciona direito e tem a belíssima pontuação de 1.4 na Google Play.

É justamente o meu caso. Fui vacinado a 16 de abril e o cartão ainda não chegou no meu correio. Porquê? Ora porque “devido a um erro administrativo” os cartões de imunidade não estão a ser enviados automaticamente aos estrangeiros que legalmente aqui residem e descontam para impostos. Tentei aceder a app, mas também não consigo porque aparentemente o hospital registou os meus dados incorretamente.

Sem surpresas, a Hungria é o único país da EU com medidas destas, depois de se inspirar nos “green passes” da Israel de Netanyahu. Mas o governo escuda se na pouco credível consulta pública que fez em março, onde aparentemente uma maioria pouco expressiva de pessoas votaram que deveria haver mais direitos para aqueles que foram vacinados. É bastante chocante este atropelo dilacerador a direitos constitucionais, mesmo para o atual Governo, onde todos os meios justificam os fins. Não pode valer tudo.

Por fim, acredito que voltar à “vida normal” não deve ser nenhum direito elitista, mas sim uma expetativa normal de todos os cidadãos livres que pagam impostos e que durante tantos meses se submeteram a medidas epidemiológicas de uma dureza nunca vista.

 

Budapeste, 19 de maio de 2021

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