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O Brasil e a Hungria

A literatura húngara no Brasil

O conhecimento e a divulgação das letras húngaras no Brasil começou relativamente cedo. Temos uma notícia de que já nos meados do século XIX se publicaram onze poemas húngaros no Brasil.

O semanário de Budapeste, Vasárnapi Újság informa no seu número 44, 30 de outubro de 1859, na seção Tárház (‘Depósito’) que “numa antologia geral, publicado no Rio de Janeiro lêem-se onze poemas húngaros”[1],  de Mihály Csokonai (A szerencse – ‘A Fortuna’ –,  A reményhez – ‘À esperança’), de Sándor Kisfaludy (Kesergő szerelem – ‘Amor choroso’), de Károly Kisfaludy (Honvágy – ‘Saudade’ –, Mohács), de Mihály Vörösmarty (Salamon – ‘Salomão’ –, Szózat –  ‘Mensagem’, Fóti dal – ‘Canção de Fót’), de János Garay (Magyar hölgy – ‘Senhora Húngara’), de Sándor Petőfi (Az alföld – ‘A Grande Planície’ –, Szülőföldem – ‘Minha Terra Natal’). Aliás, a literatura húngara, pelo menos por um representante dela, devia ter popularidade no Brasil. Sabemos de uma comunicação da revista literária Nyugat[2], prestigiosa revista de Budapeste da primeira metade do século XX que o Imperador Dom Pedro conhecia e tinha em grande estima a obra dum dos maiores romancistas húngaros do Romantismo, Mór Jókai. No número 5 do ano de 1928 saiu a décima parte da monografia de Gyula Szini, intitulada Jókai: Egy élet regénye (‘Jókai: Romance de uma vida’), onde se pode ler o seguinte:

[Mór Jókai] Tem amigos soberanos. Dom Pedro, o interessante imperador brasileiro hospedou-se intencionalmente no Hotel “Angol királynő”, e não no apartamento oficial, condigno a um monarca, no Castelo de Buda, para poder ter um contacto mais íntimo e fácil com o seu parente espiritual, o bondoso Mór Jókai.[3]

Esta simpatia do monarca brasileiro tenha-o, talvez, merecido o romancista húngaro, além da irmandade espiritual, com as suas histórias românticas, cujo local era frequentemente o continente latino-americano[4].

A receção e a divulgação da literatura húngara no Brasil há de ser estudado e analisado de uma forma diferente que nos outros países. Dado que a partir da segunda metade do século XIX tinham ido para o Brasil grandes contingentes de emigrantes húngaros, e muitos deles ocuparam um lugar eminente na formação mental, cultural e civilizacional da sua nova pátria, o acolhimento da literatura húngara não satisfaz apenas o interesse dos “brasileiros natos”, senão também é uma atividade consciente dos imigrantes húngaros a divulgar sua literatura, torná-la elemento integrante da cultura brasileira e transmiti-la aos descendentes dos húngaros que nem sempre falam e nem sequer lêem em húngaro. A este propósito, surge também o problema dos divulgadores da literatura húngara. Em caso normal, ou seja, quando o meio de chegada é diferente do meio de partida, se conta com um interesse, de início neutral pelos elementos de cultura, literatura etc. do meio de partida, quer dizer são as necessidades culturais, civilizacionais, literárias que determinam a escolha. No caso do Brasil sempre podemos supor que a escolha tenha sido matizada por certo, por assim dizer, dever nacional, tentativa de divulgar as letras pátrias que apresenta um único problema; não permite uma seleção objetiva porque determinada pelas preferências ditadas pela tradição, estudos prévios etc. Contudo, esta atividade pode dar também resultados positivos, como veremos.

Segundo o estado atual das nossas investigações, não dispomos de dados que tivesse saído alguma obra húngara traduzida para o português do Brasil nos finais do século XIX e no início do século XX. Mais tarde, com a atividade, mesmo cultural, cada vez maior da emigração húngara, podemos supor que havia iniciativas de publicar obras húngaras, tanto mais, que nos anos 1930 a 1940 apareceu uma série de romancistas húngaros que tiveram fama internacional e foram traduzidos em Portugal fato que de certa forma podia também exercer uma influência no Brasil. Desta forma nestes anos saíram várias obras húngaras de êxito, como um romance da escritora Iolanda Földes: Mária jól érett (Era uma colegial. Rio de Janeiro, Vecchi, s. d.), de Gábor Vaszary Ketten Párizs ellen (Um pobre amor em Paris. Trad. por Kuntz Hipólito,  Porto Alegre, Globo, 1942), de Zsolt Harsányi Magyar rapszódia ( romance sobre a vida do compositor húngaro Ferenc Liszt: Rapsódia Húngara. Trad. por Vidal de Oliveira. Porto Alegre, Melhoramentos, 1944) e de Lajos Zilahy A két fogoly (Os dois prisioneiros. Trad. por Livinia Viotti. São Paulo, Progresso, 1948), e além disso três antologias de contos húngaros:  Contos Húngaros (Sem nome do tradutor. Edições Brasileira S. A., sine data). Contos Húngaros. (Trad. por Cássio Fonseca. São Paulo, Livraria Martins, sine data). Contos húngaros (Editôra S. Paulo, A Bolsa do Livro Editora, 1944[5]).

Uma divulgação organizada da literatura húngara começa no início dos anos 1940 quando Paulo Rónai, que traduziu dois livros de poemas brasileiros para húngaro, como foi mencionado antes, emigra para o Brasil. Já em 1941 traduz e publica no número de 12 de julho nas folhas do periódico carioca, intitulado Dom Casmurro um conto do seu escritor preferido, Ferenc Molnár, A hóember (O boneco de neve). Nos anos seguintes publica escritos sobre a literatura húngara. Por primeiro, publica recensões, criticando as antologias de contos húngaros que foram publicados nos anos anteriores em Portugal e no Brasil: Cinco antologias contra uma literatura[6] e um ano mais tarde: Uma sexta antologia[7], e depois breves estudos[8] sobre figuras da literatura húngara. Em 1946, num estudo intitulado Do Ér ao Oceano escreve sobre Endre Ady, famoso poeta húngaro dos primeiros anos do século XX, (Rónai 1975: 137-142), um conto deste poeta depois sai na Antologia do Conto Húngaro (1954). Em 1947 no seu escrito intitulado A Tragédia do Homem  apresenta o drama de Imre Madách, famoso dramaturgo do século XIX (Rónai 1975: 122-131), e no mesmo ano com o título O Drama Que Poderia Ter Sido divaga sobre a obra do escritor e dramaturgo coevo,  Ferenc Molnár  (Rónai 1975: 143-147) e no artigo O Poeta de Bor fala sobre o poeta mártir, Miklós Radnóti (Rónai 1975: 152-156). Dois anos mais tarde com título Livro de Crianças em Mãos de Adulto escreve sobre o romance de Ferenc Molnár Pál utcai fiúk, que em 1952 traduz para português: Os Meninos da Rua Paulo. (São Paulo, Coleção Saraiva, 1952). Este romance de Ferenc Molnár obteve um êxito enorme e tornou-se leitura obrigatória nas escolas do Estado de São Paulo, desta forma foi publicado várias vezes nos passados 50 anos, pela última vez em 2001.

Em 1954, Paulo Rónai, em colaboração com Aurélio Buarque de Holanda Ferreira,  publicou na série de “Cadernos Culturais” do Ministério da Educação do Brasil uma seleção de contos húngaros com o título de Roteiro do Conto Húngaro, que contem 12 contos de 12 autores húngaros, acompanhados de uma introdução, notas biográficas e explicações das palavras, expressões húngaras que aparecem no texto. Esta breve compilação serviu de base para a Antologia do Conto Húngaro (Org. e trad. por Paulo Rónai.  Rio de Janeiro, Livraria Civilização Brasileira, 1957) que inclui 30 contos de 19 autores (entre eles Jókai, Mikszáth, Gárdonyi, Krúdy, Móricz, Kosztolányi, Márai, Szerb). Esta antologia foi prefaciada por João Guimarães Rosa.  As antologias do conto húngaro têm uma popularidade no Brasil, e continuam a ser reeditadas (Contos Húngaros, Org. e trad. por Paulo Rónai. Rio de Janeiro, Biblioteca Universal Popular, 1964. Contos Húngaros, Org. e trad. por Paulo Rónai. São Paulo, EDUSP, 1991/1998. Os Melhores Contos Húngaros. Rio de Janeiro, Ed. Expressão e Cultura, 1997. Antologia do conto húngaro, São Paulo, Topbooks, 1998).

Paulo Rónai conseguiu entusiasmar, além de Guimarães Rosa e Buarque de Holanda, também o poeta Geir Campos, que já traduzira do francês um romance de Zsigmond Móricz: Flor de abandono em 1965[9] para a causa da divulgação da literatura húngara. Juntos traduziram para português o drama de Imre Madách Az ember tragédiája (A tragédia do homem. Trad. por Geir Campos és Paulo Rónai. Rio de Janeiro, Salamandra, 1980). Eles dois traduziram também o Himnusz do poeta húngaro, do início do século XIX, Ferenc Kölcsey (Hino, Dos séculos sangrentos do povo húngaro, 1980. Esta tradução foi publicada, entre outros lugares, na revista húngara em língua portuguesa Observador Húngaro, no nro. 5 de 1994, no suplemento Cultura, p. 7.).

Paulo Rónai até a morte divulgava a literatura húngara, com traduções e estudos, e em grande número de revistas e jornais brasileiros encontramos seus escritos sobre a língua e literatura húngaras[10].

Um novo divulgador das letras húngaras aparece só nos anos 1980. Filho de emigrantes húngaros, poeta, crítico e docente universitário, Nelson Ascher, cujas traduções saíram já na Poetas Húngaros. Antologia, publicada em Lisboa (Org. e sel. por Zoltán Rózsa. Lisboa, Moraes Editores, 1983), publica em 1990, numa edição particular em São Paulo, seu livro de poemas traduzidos intitulado Canção antes da ceifa, incluindo poemas de Endre Ady, Dezső Kosztolányi, Attila József e outros poetas húngaros.

Outra divulgadora da literatura húngara é Ildikó Sütő que vive reformada em São Paulo e no seu tempo livre traduz contos e romances húngaros para português e ela mesma custeia a edição de suas traduções. Por primeio publicou do escritor de século XX, Géza Gárdonyi um romance A láthatatlan ember (O homem que não se vê. Trad. por Sütő Ildikó. São Paulo, Ind. Gráf. Editora S. A., 1992/1996), e depois de János Vaszary A macska felugrott az asztalra (O pulo do gato. Trad. por Sütő Ildikó. São Paulo: Ind. Gráf. Editora S. A., 1993), de István Fekete dois romances, Kele e Vuk (Kele. Trad. por Sütő Ildikó. São Paulo, Ind. Gráf. Editora S. A., 1994. Vuk. Trad. por Sütő Ildikó. São Paulo, Ind. Gráf. Editora S. A., 1996). Publicou também um livro de contos (Contos da Hungria. Trad. por Sütő Ildikó São Paulo, Ind. Gráf. Editora S. A. 1997), que contem 28 contos de Gyula Krúdy, Dezső Kosztolányi, Géza Gárdonyi, Frigyes Karinthy, Ferenc Móra, Zsolt Harsányi, Kálmán Mikszáth, Zsigmond Móricz, István Fekete, acompanhados das breves biografias dos escritores.

Temos de mencionar o nome de László Szabó e o de Aleksandar Jovanović que também traduziram obras húngaras para portugués.  Aquele traduziu vários contos do ciclo de Dezső Kosztolányi intitulado “Esti Kornél” reunidos num volume e com o título: O tradutor cleptomaníaco. (Brasília, Editora 34, 1996) e este traduziu a obra de István Örkény, Rózsakiállítás (A Exposição das Rosas. Trad. por Aleksandar Jovanovic. Brasília, Editora 34. 1993).

Temos de mencionar algumas traduções que foram feitas, nos decênios passados, supostamente a partir de edições em outras línguas: Zsolt Harsányi És mégis mozog a föld (A vida de Galileu. Trad. por Vinicius de Morais. Rio de Janeiro, José Olympio, 1957), László Passuth Esőisten siratja Mexikót (O deus da chuva chora sobre o México. Trad. por Maria Luisa Prates. Belo Horizonte, Itatiaia, 1963), Áron Gábor Az embertől keletre (Ao leste do homem. Trad. por Livio Dantas. Rio de Janeiro, Americana, 1972) e Szögletes szabadság (Liberdade Quadrada. Ford. Zita Kubinszky. Rio de Janeiro, Pallas, 1976), e Imre Kertész Kadish egy meg nem született gyermekért (Kadish  por uma criança não nascida. Ford. Rachel Abi, 1995), além destes romances saiu um livro de poemas de Endre Ady, com o título de  Canção do Jacobino Húngaro (Magyar jakobinus dala) na cidade Brasília em 1979, traduzido por Delamare Noel.

Nos últimos anos saíram vários livros do escritor húngaro de maior sucesso dos anos 1930 e 1940, Sándor Márai. Após a publicação de A gyertyák csonkig égnek (As Brasas. Trad. por Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo, Companhia das Letras, 1999) e Eszter könyve (O Legado de Eszter. Trad. por Paulo Schiller. São Paulo, Companhia das Letras, 2001), saiu em 2002 o Ítélet Canudosban (Veredicto em Canudos. Trad. por Paulo Schiller. São Paulo, Companhia das Letras), que elabora um episódio da luta descrita na obra de Euclydes da Cunha Os sertões. Este romance de Sándor Márai foi muito bem recebido pela crítica brasileira, e lêem-se muitas recensões entusiastas nos jornais e revistas brasileiras com respeito a este livro e a obra de Márai está analisada como a de um dos maiores escritores do século XX que prestigia muito a literatura húngara[11].

[1] Vasárnapi Újság, 1854-1860 . Em Cd-rom.

[2] Nyugat 1908-1941, Egy irodalmi legenda digitálisan.

[3] A origem desta referência se encontra na obra de Kálmán Mikszáth Jókai Mór és kora (’Mór Jókai e sua época’) onde o romancista húngaro, discípulo literário de Jókai, fala sobre esta curiosa visita do imperador brasileiro em Budapeste, no início da década de 1870.

[4] A ação do seu conto, intitulado Tíz millió dollár (’Dez milhões de dólares’), desenrola, em parte, no Brasil. O conto saiu em folhetins nos números de dezembro de 1957 do semanário Vasárnapi Újság.

[5] Segundo Paulo Rónai (dele falaremos a seguir) esta antololgia é uma imitação servil, uma cópia da primeira edição da antologia de contos húngaros publicado pela editora Gleba de Lisboa, sem data a publicação e organizada por C. Lima.

[6] Província de São Pedro, 1946. Nro. 6: 52–57.

[7] Província de São Pedro, 1947. Nro. 10: 159–160.

[8] Estes estudos foram depois publicados em seu livro Como aprendi português e outras aventuras. As referências bibliográficas dizem respeito à edição húngara deste livro (Latin és mosoly, Budapeste, Európa, 1980).

[9] Esta informacão foi-me fornecida pelo Dr. László Tóth, ilustre membro da comunidade húngara de São Paulo, que compilou uma lista das obras de ficção húngaras em português. Infelizmente não disponho de mais dados deste livro.

[10] Mencionando seu estudo Um humorista Húngaro, sobre Frigyes Karinthy, publicado na Revista USP, em 1990. Nro. 6 de junho-julho-agosto, queremos dirigir a atenção dos que se interessem por sua obra para a Internet porque nela encontram-se muitas referências à mesma.

[11] Em lugar de enumerar estes artigos, pedimos o leitor consultar a Internet onde, depois de teclear o nome de Márai ou o título de sua obra, encontra dezenas de referências.