O Brasil e a Hungria ao transcorrer dos séculos: escambos materiais, espirituais e culturais (Sexta Parte)

por Pál Ferenc
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Melinda Kiss e Marcelo Marinho

O Brasil no romance húngaro Chuva em Mato Grosso: imagens ou estereótipos?

Primeira parte

Um personagem húngaro em Mato Grosso

Entre os mais ativos escritores húngaros emigrados após o término da Primeira Grande Guerra e a subsequente formação do bloco comunista liderado pela União Soviética, é preciso destacar o nome de Lajos Füry. Desde 1949, esse prolífico escritor vive nos Estados Unidos da América, em cuja capital, Washington, trabalhou durante décadas, terminando por ocupar a função de diretor da Biblioteca do Congresso Nacional. Ele é o autor de mais de 40 livros baseados em experiências pessoais transcorridas em suas viagens pelo mundo. Um desses livros é intitulado ‘Chuva em Mato Grosso’ (Eső a Mato Grossón), e foi escrito no transcorrer do ano de 1985, nas cidades de São Paulo, Santos, Campo Grande, Paraíso e Costa Rica, durante uma viagem realizada através dos estados de Mato Grosso do Sul e São Paulo, segundo o próprio autor declara nas páginas de sua obra – fato que confere ao livro um certo estatuto documental.

O livro tem como protagonista um jovem húngaro que, decepcionado por se sentir traído pelos próprios compatriotas na Segunda Grande Guerra, decide deixar a Europa. Ele parte para o Brasil como refugiado, e aí pretende recomeçar a vida. No novo país, ele será recebido e empregado como trabalhador rural numa fazenda do então Estado de Mato Grosso. Graças à sua concepção consequente e honesta de viver e de trabalhar, em breve torna-se o capataz da fazenda, posição que lhe permite experimentar suas ideias (trazidas da Europa, por suposto) para implementar as condições de vida daquela gente simples da fazenda. Após longos anos de trabalho naquela grande propriedade agrária, o jovem húngaro acredita já conhecer muito bem a índole e a cultura daqueles brasileiros, gente simples do interior do país. Contudo, toma gradativa consciência de que pouco sabe sobre a gente que vive e trabalha na fazenda que o acolheu. Essa dolorosa descoberta leva o herói a uma desilusão ainda mais profunda do que aquela provocada pelos que o expulsaram da Europa.

Em princípio, pode-se acreditar que o objetivo do autor seria o de apresentar o Brasil e a gente brasileira aos leitores húngaros. Contudo, um aspeto fundamental a ser considerado é o fato de que o livro foi publicado no ano de 1995, pouco depois da queda do Muro de Berlin e do fim das repúblicas socialistas do leste europeu, período em que o capitalismo e a globalização pretendiam-se a panaceia universal para os males da humanidade. A Hungria de então abraçava essas ideias incondicionalmente, e o sonho de um capitalismo magiar triunfante embalava o sonho de milhões de húngaros. Nessa perspetiva, nas páginas a seguir busca-se sondar e perquirir as imagens que se sugerem, nas páginas daquele romance, aos leitores magiares, por vezes incautos e desarmados de um aparelho crítico que lhes permita enxergar além do espelho das letras, vincado, por vezes, sob o peso de questões de ideologia e de identidade.

Descobrindo o Brasil

Em um primeiro momento de seu contato com o Brasil por intermédio do romance, o leitor acolhe uma imagem bastante positiva do país, segundo três aspetos principais: a cidade, as gentes, a gastronomia. Espelhado numa imagem ficcional da cidade de Campo Grande dos anos de 1980, mostra-se um Brasil trabalhador, civilizado e rapidamente desenvolvido (p. 5). Lajos Füry retrata uma cidade pujante, abrigando um grande número de abastadas pessoas que construíram suas fortunas por meio do árduo e permanente trabalho no cultivo das terras de Mato Grosso (p. 5: o autor evitará tratar do desmembramento de Mato Grosso, ocorrido em 1979, e da criação do novo Estado, Mato Grosso do Sul, cuja capital é Campo Grande, apesar do caráter documental que sua obra sugere assumir). As ruas dessa cidade são belas e limpas, bem planejadas e regularmente tratadas. Margeando ruas largas, semelhantes aos bulevares europeus, há muitas árvores e, diante das casas, por toda parte veem-se flores (p. 5).

O romance informa que a cidade e as fazendas circunjacentes – propriedade dos habitantes locais – desenvolvem-se rapidamente: há não mais de 100 anos (espaço de tempo curtíssimo para os padrões húngaros, pois esta nação já completou onze séculos desde sua fundação), no lugar da cidade havia apenas algumas simples choupanas de colonos (p. 6). Com o desmate e a queimada da floresta local (e não da vegetação de cerrado, tão própria à região, como seria de se esperar), a partir dos anos de 1960 Campo Grande torna-se uma cidade próspera, na qual os abastados habitantes vivem em mansões e desfrutam de um nível de vida muito elevado – em seus jardins trabalham atarefados jardineiros, grandes carros americanos são polidos servilmente por motoristas vestidos em uniforme (p. 5). O leitor húngaro tomará essa terra como um paraíso de miliardários fazendeiros, um avatar do Texas dos Bush, e mal poderá supor que essas informações são, no mínimo, enganosas, a exemplo dos automóveis que só passaram a ser importados, no Brasil, a partir de 1988.

Lajos Füry informa ainda que, após a Segunda Grande Guerra, realizaram-se progressos consideráveis naquelas fazendas, em função do rápido crescimento do número de proprietários de carros, tratores e aviões, assim como do facilitado acesso à eletricidade, ao telefone e aos radiotransmissores (p. 9). Nos anos 60, a agrimensura das extensas propriedades já se faz com auxílio de aviões, os tratores já desmatam rápida e eficazmente, enquanto a maioria das fazendas conta com gerador elétrico e radiotransmissor próprios (p. 10). Em termos de tempo de viagem, encurtaram-se as distâncias entre Campo Grande e as fazendas: um percurso que, em carro de bois consumia de 6 (com sol) a 35 dias (com chuva e lama), passou a requerer apenas cinco horas e meia, a partir de 1962, com a aquisição massiva de caminhões e com a construção de estradas pelos militares (p. 13). As pretensas precisões, tanto do tempo de viagem quanto da datação dos acontecimentos, provocam um forte efeito de realidade e reforçam a impressão de texto documental que o leitor poderá experimentar. Também seria interessante observar que o americanizado escritor húngaro sugere que foram os militares os responsáveis por grande parte do progresso da região – e, nesse aspeto, é preciso relembrar o papel do governo norte-americano no fatídico golpe militar de 1964, informação habilmente sonegada aos leitores magiares.

Quanto à culinária local, o romance informa que, acompanhado da (por demais) evidente caipirinha, o churrasco é a comida típica dessa brava gente brasileira que, sobretudo nos domingos à tarde, reúne-se para assar, ao ar livre, carne de frango, de porco e de vaca (p. 7). O leitor também é informado de que o arroz, o milho e o feijão são os alimentos básicos, por serem de baixo custo, assim como a carne de vaca (ingrediente menos frequente nas refeições ordinárias em território magiar), enquanto a batata e a carne de porco (alimentos de base, na Hungria) são mais dispendiosos, razão pela qual os mais pobres não podem consumir tais alimentos (p. 9). Nas fazendas, as refeições cotidianas compõem-se de feijão e arroz, acompanhados de ovos fritos e carne bovina assada, e pão com café muito forte constituem o café da manhã diário dos trabalhadores, enquanto a bebida mais consumida é a (por demais) evidente cachaça, em função de seu baixo custo (p. 68). Ora, o autor generaliza aspetos da cultura brasileira que são caraterísticos apenas de algumas regiões do país, enquanto confere à caipirinha uma ubiquidade que não é própria dessa bebida: gradativamente, os estereótipos tomam o lugar do pretenso (ou pretextual) documento etnográfico.

No que se refere à população, encontram-se nessas terras os descendentes mestiços de portugueses, negros e índios, à maneira de Macunaíma e seus irmãos. O autor frisa que, nas povoações adjacentes à fazenda, as crianças têm pele escura sem serem exatamente negras, pois têm cabelos lisos (p. 11) – precisão talvez necessária ao exotismo que um leitor húngaro espera de obras desse gênero. E o romance ainda fornece a informação de que os primeiros colonos, no início do século, quando desejavam tomar mulheres para si, apanhavam índias no laço, demonstrando também sua destreza no manejo dos instrumentos de trabalho no campo (p. 13). Essas mulheres, que viviam em aldeias às margens do rio Paraíso (e um tal topônimo é extremamente representativo), eram laçadas vivas, enquanto seus homens eram caçados à morte. O romance acrescenta que, se esses indígenas não fugiam, era porque não se dispunham a esforços de natureza alguma, nem mesmo para salvar sua própria vida (p. 13). Assim, os colonos só retinham as mulheres já feitas e as jovens mocinhas, e metade das mulheres da fazenda em que transcorre a história são, por tais motivos, de origem indígena. A despeito da imagem positiva em relação ao caráter multiétnico da formação do povo brasileiro, é preciso observar que tais imagens são eivadas daqueles preconceitos que Ariano Suassuna tão hilaricamente denunciou em seu Auto da Compadecida.

Como resultado da mistura bem brasileira de etnias e culturas, o romance informa que quase toda a gente da fazenda (e, por extensão, quase todos os brasileiros) tem alguma relação com a macumba, quer como praticantes ou devotos, quer apenas como observadores, mas nunca de forma alheia ou indiferente (p. 77). “Macumba”, como se sabe, é o nome vulgarmente atribuído a duas tradições afro-brasileiras distintas, a umbanda e a quimbanda. Na fazenda há muitos praticantes desse ritual religioso de origem africana, e absolutamente todos sabem em que noites realizam-se os ritos na floresta (p. 77). Nas páginas do romance, esses praticantes de macumba são todos negros, com exceção de uma indígena que também comparece à cerimônia, de forma excecional, como se tal prática cultural fosse exclusiva de apenas uma entre as múltiplas etnias que formam a nação brasileira. O caráter exótico dos costumes brasileiros também é acentuado, no livro, pela indicação (errônea) sobre o uso regular de cigarros de cânhamo nos rituais de macumba (p. 83), dando-se ao leitor a impressão de que tudo é permitido nesse país. Por outro lado, todos na fazenda demonstram receio dos efeitos malignos da macumba, e manifestam um supersticioso respeito. É o que se vê quando as pessoas dizem à boca pequena a palavra “macumba”, ao encontrarem bonecos embrulhados em palha de milho, que supõem trazer desgraças ou morte aos desafetos (p. 77). É evidente que a superstição é uma caraterística negativa em culturas fortemente marcadas pelo racionalismo, como é o caso da cultura húngara.

O romance ignora ainda – ou finge ignorar – o sincretismo religioso e o simbolismo de inspiração católica caraterísticos desses cultos nascidos no Brasil. Assim, nas páginas da obra, opõem-se cristianismo e umbanda: os personagens, “mesmo que sejam cristãos e façam o sinal da cruz”, pronunciam o nome da macumba com temor e evitam o lugar em que se encontra o boneco enfeitiçado (p. 77) – mais próximo das cerimônias do vodu haitiano do que da tradicional farofa e cachaça ofertados aos espíritos intermediadores em terras tupiniquins. Contudo, indicam-se também os vários ingredientes indispensáveis ao ritual brasileiro da macumba, como a galinha preta, o fumo e as velas, oferendas trazidas por participantes que se vestem de branco e cantam intermináveis refrões incantatórios (p. 83). O local da macumba é evitado por todos, creiam ou não em seus efeitos. Mesmo nas grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, os carros desviam-se das oferendas (p. 84). Na fazenda, por superstição, nada se faz no momento em que os devotos partem à cerimônia, e mais tarde nada se fala sobre o assunto, por crença na força e no efeito maléficos da macumba (p. 78). Também o médium é objeto de grande consideração por parte dos moradores da fazenda, sendo sustentado pelos devotos que sempre trazem presentes, geralmente provisões diversas, em retribuição a seus serviços (p. 78).

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