O acupunctor não é chinês. Nem tão pouco é originário de qualquer outra parte da Ásia mais remota. Sendo de talha e cepa local, ostenta porém formação oriental, comprovada por certificado devidamente emoldurado e fotografia oficial de formatura, onde o seu rosto ocidental se destaca de uma homogénea multidão de coleguinhas asiáticos, todos vestidos de fato escuro, rigidamente sentados em filas desenhadas a régua e esquadro.
O acupunctor tem um olhar suave de perdigueiro grato e envelhecido. Todo ele transmite tranquilidade e mansidão. Sabe bem que a natureza invasiva da sua especialidade terapêutica exige um ambiente de descontração e confiança, para que o paciente submeta por completo o seu corpo à penetração das agulhas. O paciente, digo, para não lhe chamar cliente ou até mesmo vítima. Pensei também em acupunctado, mas não parece que haja verbo para semelhante particípio.
O paciente toca à campainha do consultório (estúdio, clínica?) e por alguns instantes aguarda que lhe seja concedido solene acesso ao espaço sagrado da acupunctura. Pela música e decoração, imagina estar a entrar numa casa de ópio, nos inícios de outro século, com menos luz e em diferente companhia. Antes fosse. O acupunctor o conhece bem e por isso reservou-lhe o cantinho do costume, a cama onde o convida a deitar-se. Retira-se por alguns minutos, e quando regressa já o paciente preparou corpo e mente para o assalto. Trocam os dois o costumeiro palavreado, quase tão ritual quanto o ritual em si mesmo, e enquanto o acupunctor lhe introduz as personalizadas agulhas em meia dúzia de diferentes pontos do corpo (cabeça, pés, um ventre exibido com pudor), procura o paciente respirar descontraidamente, ao mesmo tempo que contempla pela enésima vez três estampas orientais que lhe decoram a parede do espaço a que está confinado. Tigre, panda, raposa, por entre pinceladas de arbustos e canas de bambu. A antes de adormecer tranquilamente, ao som de uma já familiar orquestra de cordas, sopros e um outro instrumento ainda não identificado, permite-se o paciente divagar sobre o amável acupuntor.
O acupunctor joga dardos com os amigos, todas as sextas-feira à noite, numa barzinho lá do bairro, longe dos turistas, onde o korsó ainda custa quinhentos forints. O acupunctor é inconfesso podólatra, fetiche revelado e bastas vezes satisfeito durante os seus anos asiáticos e motivo maior da sua opção profissional. O acupunctor sabe muito menos mandarim do que parece, e todos aqueles apontamentos tirados em oriental alfabeto são na verdade sequências ilógicas e arbitrárias dos vinte ou trinta caracteres que realmente domina. O acupunctor não é capaz de estar na presença de balões de ar sem que lhe sobrevenha indomável desejo de os rebentar à agulhada, algo que aliás já deu origem a algumas situações bem desagradáveis em festinhas de aniversário e feiras de Verão. O acupunctor sonha amiúde com a Grande Muralha da China. Sonha que a tenta escalar com uma urgência desesperada e à custa de um enorme esforço físico. E que depois, quase a chegar ao topo, um grupo de turistas lhe dispara umas quantas flashadas fotográficas para os olhos, e o acupunctor cai desamparado, aos gritos, para um abismo de agulhas.