1

“Nós na Hungria não acreditamos nos Estados Unidos da Europa”

Em entrevista ao DN, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Hungria, Péter Szijjártó, falou sobre o plano europeu contra a crise criada pela pandemia, as críticas de Bruxelas sobre a situação do Estado de direito e as relações com Portugal.

Leonídio Paulo Ferreira

 

Para a Hungria, a recente cimeira europeia teve bons, médios ou maus resultados?

Nós estamos satisfeitos com o resultado por duas razões. Em primeiro lugar recebemos mais recursos financeiros dos fundos europeus do que o que se esperava, mais três mil milhões de euros, portanto, essa é uma das razões para estarmos satisfeitos. A outra razão é que o governo húngaro deu um mandato ao primeiro-ministro que ele teve de cumprir – a distribuição do dinheiro tinha de ser imparcial, justa e livre de critérios políticos subjetivos. Atingimos isso, o que foi muito importante. Preservámos o nosso orgulho nacional.

É possível dizer-se que, para lá do fator de incentivo económico, há agora também uma melhor relação entre a Hungria e Bruxelas?

Bom, posso dizer-lhe o seguinte: a Hungria está interessada numa União Europeia forte, mas pensamos que a maneira como Bruxelas tem agido atualmente nem sempre tem ajudado na perspetiva de termos uma UE forte. Vou explicar porquê – nós não concordamos com uma aproximação do tipo federalista. Nós pensamos que a UE pode ser forte se os Estados membros forem, eles mesmos, fortes. Assim, a política de Bruxelas de enfraquecer os Estados membros não é uma coisa que nós consideremos útil na perspetiva dos capítulos futuros da UE. Nós não acreditamos nos Estados Unidos da Europa, aquilo em que acreditamos é numa UE forte, baseada em Estados membros fortes. É por isso que Bruxelas deve ajudar os Estados membros e não os deve enfraquecer; e as instituições europeias não devem perpetrar ataques politicamente motivados contra os Estados membros e contra os seus governos.

Quando fala de ataques politicamente motivados, está a falar sobre todas as críticas em relação às ameaças ao Estado de direito. Como é que responde a essas críticas constantes?

A democracia e o Estado de direito são extremamente importantes. Nós somos um país que teve de lutar pela liberdade até há 30 anos. Em 1990 libertámo-nos do regime comunista, até então tivemos de lutar pela nossa liberdade. Nós não valorizamos, talvez não aceitemos, que países que herdaram a democracia nos deem sermões sobre como devemos funcionar como uma democracia, porque tivemos de lutar por ela e sabemos como a democracia é extremamente importante. A democracia húngara funciona, a Hungria é uma democracia. Na Hungria o Estado de direito funciona. Esses ataques contra nós são todos baseados em perceções. Eu representei muitas vezes o governo em debates no Parlamento Europeu, na Comissão LIBE, sobre a situação do Estado de direito, e fui confrontado com todas essas críticas e acusações – liberdade de imprensa, liberdade de expressão, etc. Pedi sempre aos colegas para me colocarem as questões concretas, que me dissessem qual é a lei, que parte da legislação, que regulamento, não permite que os direitos das pessoas sejam respeitados; que me dessem uma razão concreta para os jornalistas não poderem escrever ou dizer o que quisessem, etc. E nunca recebi uma resposta porque não há resposta para isso. São ataques politicamente motivados, e se perguntar o que é que eu acho que está por trás disso, digo-lhe o seguinte: nós somos um governo abertamente democrata-cristão; somos um governo que segue abertamente o seu rumo patriótico; somos um governo que fala abertamente sobre o facto de que, para nós, o interesse nacional está em primeiro lugar. Não o escondemos, não nos envergonhamos disso e agimos em consonância. Portanto, esta é uma política que vai completamente contra a corrente liberal dominante e, além disso, é bem-sucedida, pois ganhámos todas as eleições desde 2010 com grandes margens.

Bem-sucedida também em termos económicos?

Económica, política e socialmente bem-sucedida. É bem-sucedida e vai totalmente contra a corrente liberal dominante, e isso é uma coisa que a corrente liberal dominante internacional não consegue simplesmente digerir. Penso que esta é a razão para os ataques. Outra razão para esses ataques é a nossa forte política anti-imigração. Nós tornámos muito claro que a Hungria não está pronta para receber nenhum tipo de migração e não estamos prontos para abdicar do nosso direito de tomarmos a nossa própria decisão em relação a quem deixamos entrar e em relação a com quem queremos viver. Esta política anti-imigração, a política baseada no interesse nacional e o facto de ser bem-sucedida são boas razões para os ataques.

Dado o vosso sucesso económico dos últimos anos, com um crescimento médio do PIB de 5%, qual será o impacto da covid-19 na economia?

É evidente que a covid vai ter impacto na economia de todos os países e, certamente, não será um impacto positivo, mas nós vemos esta crise como uma oportunidade, porque os países, as empresas, estão cheios de coragem e prontos para investir agora em capacidade, em tecnologia, para terem sucesso no futuro. O que eu vejo é uma competição global para redistribuir as capacidades. O que é que eu quero dizer com isto? As multinacionais fecharam as operações em múltiplas localizações, mas depois da covid e desta situação que vivemos, essas operações serão relocalizadas, as empresas irão procurar por outras localizações que possam ser mais benéficas, mais baratas, mais eficazes para funcionarem. É uma enorme oportunidade para países como a Hungria, pois temos as taxas de impostos mais baixas da Europa, temos o IRC mais baixo, 9%, temos uma taxa de 15% de IRS e uma grande variedade de incentivos para o investimento. Assim, é uma enorme oportunidade para nós atrairmos mais investimento para o país. É por isso que, no que toca ao nosso plano de recuperação económica, nós não damos dinheiro numa base social, o que fazemos é dar o dinheiro àquelas empresas que se comprometem a manter os seus funcionários e, para o fazer, investem. Nesses casos, o governo paga metade do investimento da empresa, com o objetivo de manter o emprego tal com o está. Isso é muito importante, porque nós nunca financiamos o desemprego, financiamos sempre o combate ao desemprego.

© Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Qual é a importância da relação com Portugal? Receberam recentemente em Budapeste a visita do nosso primeiro-ministro e, agora, temos a sua visita também. Há algum tipo de nova aliança de interesses entre o governo socialista de Portugal e o governo democrata-cristão da Hungria?

O que posso dizer é que se olharmos para os últimos anos da política europeia, vemos que as fronteiras entre as famílias políticas se tornaram cada vez menos significativas na perspetiva das cooperações nacionais. Na Europa Central termos uma aliança muito forte, o Grupo de Visegrado – Hungria, Polónia, República Checa e Eslováquia – onde temos quatro partidos no governo, que pertencem a quatro famílias políticas diferentes, e, no entanto, é a aliança mais unida dentro da UE porque, com base nos interesses nacionais, trabalhamos com outros partidos, com outros governos, que representam famílias políticas diferentes. Portanto, o significado deste tipo de fronteiras é cada vez menos relevante. Em relação a Portugal, devo dizer que estamos suficientemente longe um do outro para termos qualquer tipo de questão em aberto, e isso é muito importante. Há áreas em que é do nosso interesse nacional e, presumo, que também do vosso, estarmos juntos. E identificámos três dessas áreas. Hoje, assinei o acordo de cooperação com o vosso ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior sobre a investigação espacial, porque ambos temos vindo a investir fortemente nessa área, os programas de satélites são importantes para nós. Concordámos na troca de dados de satélites, no desenvolvimento tecnológico de novos satélites, portanto é uma nova dimensão da nossa cooperação económica. A segunda é que temos cada vez mais jovens húngaros a estudarem a língua portuguesa nas universidades e escolas secundárias na Hungria, em cooperação com o Instituto Camões, e isso é importante. Assim, aderimos à CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) como observadores, damos bolsas de estudo a esses países e levamos a cabo programas de desenvolvimento nesses países no campo da gestão da água, no campo da metodologia do ensino da música, etc. A terceira área diz respeito à migração, onde temos posições diferentes, mas isso não é uma tragédia, porque vocês são uma nação marítima, uma nação exploradora, tiveram colónias, têm um passado completamente diferente do nosso. Nós somos um país de média dimensão e continental. Assim, compreendemos as posições um do outro e não julgamos, mas há um ponto comum muito importante: a estratégia africana. Se formos capazes de montar em conjunto uma estratégia africana substancial, aí conseguimos melhorar as condições de vida, as circunstâncias em África, de maneira a que os africanos encontrem o seu futuro em África e assim evitarem mais vagas migratórias para a UE. Como a presidência portuguesa tem como objetivo montar uma estratégia africana substantiva, eficaz e significativa, tem o nosso completo apoio.

Em relação à NATO, a Hungria está praticamente em linha com a contribuição de 2% do PIB, o que é bom para a relação com os Estados Unidos, mas às vezes também é criticada pelo tipo de aproximação à Rússia. Como é que lida com estas duas perspetivas?

É mais uma vez a geografia. Aqui, na ponta mais ocidental da UE, poderão não compreender a situação na Europa Central. Não é um julgamento ou uma crítica, é apenas um facto. Nós também não entendemos muito bem a situação na Península Ibérica porque não vivemos aqui, estamos longe, e há coisas mais importantes para nós, certo? Na Europa Central temos uma experiência muito clara forjada na história. E essa experiência mostra-nos que sempre que há um conflito entre o Leste e o Ocidente, independentemente da razão, do tempo histórico ou dos intervenientes, os europeus centrais perdem sempre. Os europeus centrais são os perdedores nos conflitos entre o Leste e o Ocidente. Portanto, é no interesse da nossa segurança nacional termos uma relação mais pragmática, mais racional, com o Leste e o Ocidente. Somos frequentemente acusados de sermos espiões de Putin, agentes pró-russos, etc. Não é verdade. Por favor! Nós vivemos sob uma ditadura comunista… Mas é no interesse da nossa segurança nacional, na Europa Central, termos uma cooperação pragmática com o Leste e com o Ocidente. Claro que fazemos parte da maior e mais bem-sucedida aliança de defesa existente, somos igualmente membros da UE, mas devo dizer que não somos hipócritas, e, infelizmente, a maior parte dos países europeus são hipócritas. Se olharmos para o comércio entre os alemães e os russos, entre os franceses e os russos, entre os italianos e os russos, e se olharmos para as tendências, elas estão em forte crescimento. Basta olhar para a cooperação energética entre as empresas alemãs e as russas. Eu não tenho problemas com isso, tenho problemas com o facto de eles o fazerem e depois falarem contra nós. Os grandes países da Europa fazem grandes negócios com os russos à socapa.

É difícil para o seu governo explicar ao povo húngaro, depois da má experiência histórica com a Rússia soviética, esta abordagem pragmática?

O povo húngaro entende o seguinte: a Rússia fornece agora 100% da necessidade de gás da Hungria. Não é porque é divertido ou porque não queremos negociar com outros, é por causa das infraestruturas – a única grande conduta que chega à Hungria é de gás russo e chega da Rússia. Ponto final. Portanto, até que haja outra oportunidade, o povo húngaro compreende que precisamos de uma relação pragmática, senão não temos aquecimento nas nossas casas, não temos gás para a nossa economia funcionar. Assim, uma relação pragmática é necessária quando um país gigantesco está na nossa vizinhança. Esta é uma aposta pragmática que não tem nada que ver com não respeitarmos a nossa história. O atual primeiro-ministro era o líder da força anticomunista, ele foi a primeira pessoa na Hungria, nos finais dos anos de 1980, a exigir abertamente que as tropas soviéticas abandonassem a Hungria. O nosso partido nasceu como uma organização anticomunista, é esse o nosso ADN, a nossa origem.

Neste ano, faz 100 anos o Tratado de Trianon, que limitou a Hungria a fronteiras bem mais estreitas do que as históricas. Qual é ainda o impacto de Trianon na mentalidade húngara?

Esse é o momento mais triste da nossa história – dois terços dos nossos territórios foram-nos tirados. Penso que ninguém deve ficar surpreendido por considerarmos isso uma tragédia nacional. Entretanto, compreendemos que esse próprio ato que é o momento mais triste da nossa história é um momento feliz para outros, para os que ganharam esses territórios e que ganharam as capacidades e as oportunidades que iam com esses territórios. Mas penso que é uma expectativa legítima nossa que esses países respeitem que nós não podemos ficar felizes com isso. Respeitar a história não é ser-se revisionista. Quando se vê nos Atlas ou nos livros de História a Hungria que costumávamos ser antes, uma Hungria maior, isso não é revisionismo. Quero dizer, porque é que haveríamos de falsificar a história?