E se for assim a verdade, que tudo tem apenas dois caminhos
E se for verdade que cada escolha seja feita por medo ou amor
Que em suma, a dualidade do bem e mal seja resultado dessa decisão
Se o for, talvez não viva na louca cadência que pensava viver
Mas exista, numa opaca predestinação tal cinzento mar sem ondas
E para mim que não acredito que tudo está traçado, estraçalho-me
Cai por terra o meu mundo, o meu sonho e até a vontade de ser
Contorce-me a mente em espasmos de um pânico sufocante
Não sou a singularidade pensava, não sou eu a empedrar o meu passeio
Pedra a pedra, criando formas, desníveis e irregularidades
Já não se vêm calceteiros é verdade, mas sonhadores também poucos
Ainda ontem uma tempestade caiu forte sobre a cidade
Corri à minha varanda, ávido de ver e sentir toda essa pura natureza
Mas logo uma tristeza me abraçou… era eu o único à janela, ninguém
Nem uma criança, nem um gato, ninguém veio ver a tempestuosa noite
Eu sei que o conforto é bom! Mas também o cheiro molhado da chuva
E nesse momento decidi debruçar-me em fé, levar com a chuva na cara
Sentiria por todos os que não a sentem ou que a preferem ignorar, sonharia!
E sei que há no mundo quem não se possa abrigar dela e com isso sofra
Mas também imagino que haverá alguém que nunca a sentiu
E isso também me entristece! Por isso sentirei por essa pessoa e por todas as demais
Que nunca é demais sentir o bem, especialmente se for pelos outros, e de novo sonhar…
Sonhar que temos sim uma vontade que é só nossa, que de facto podemos ascender
Ascender acima do bem e do mal, não ser este nem aquele, mas talvez ser um outro
Ultrapassar esta barreira de ter de pertencer, que apenas nos tira a genuinidade
Não ser o estabelecido nem os que são contra o estabelecido, e aí, talvez ser livre
Livre na mente, no sonho, na esperança, talvez não ser mais deste mundo, ser de outro
Mas sem nunca abdicar das mais terrenas, simples e transcendentes oportunidades
Como a de cheirar as páginas de um velho livro que nos passe pela mão
Ou de viver intensamente um beijo perdido que se encontre nos nossos lábios
Tudo com o mesmo sentimento daquele último vivo mas subtil dedilhado nocturno de Chopin,
Nascido certamente de inspiração divina, cósmica ou mais provavelmente apenas humana,
Esse mesmo momento que encerra na sua aparente simples brevidade o complexo universo,
Um universo composto de quase nada, vazio, como o vácuo que sempre rodeia o seu piano
E é nesse extremo perceptível silêncio, que encontramos a tal sublime nota que ascende
Indivisível à vida, ao sonho, ao corpo físico e quântico e todos os demais infinitos deste mundo
Talvez seja, estou quase certo, que essa imortal nota, é isso a que humanidade chama de Alma
Essa subtileza tão ternamente desenhada, em algo tão meticulosamente finito
Como o punhado de teclas que a compõem ou o tempo que temos para viver.
Budapeste, 31 de maio de 2021