Mudar de Vida

por Luís Serpa
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Conheço a história há muito tempo, em francês, que tem duas palavras para «remo»: a dos marinheiros – aviron – e a dos terráqueos (na França dos marinheiros conhecidos por «éléphants[1]») – rame: um marinheiro quer deixar a vida de mar e põe o seu saco ao ombro pendurado num remo. Vai andando terra dentro. Enquanto as pessoas lhe perguntam «Porque é que tens un aviron ao ombro?» ele continua. Quando chega a um sítio e ouve «Olha este, com uma rame para pendurar o saco» decide ficar ali. O meu amigo Carlos Fernandes conta-a doutra forma: o marinheiro vai andando até alguém lhe perguntar «para que serve essa pá que tens ao ombro?» e com outra origem: aparentemente vem de Homero. Não sei de onde é a história – cada país mediterrânico deve ter a sua – mas sei que é verdadeira, tanto na história do remo como na do marinheiro querer mudar de vida e fugir do mar. Fútil e vão desejo, condenado ao fracasso. Como se diz de muitas outras coisas, pode tirar-se o marinheiro do mar, mas não o mar do marinheiro. Eu sei, por experiência própria, vivida e tantas vezes sofrida. Por exemplo: fui parar ao Burundi para deixar o mar e três meses depois de lá chegar comprei um barco para navegar no lago Tanganica.

Mas o tema das mudanças de vida continua a apaixonar-me. A minha vida na Marinha Mercante, por exemplo, que foi uma das mais curtas e das piores, apesar de me ter dado a viver experiências intensíssimas, violentas, apaixonantes. A do humanitário, que foi ainda mais curta e me fez viver ainda mais situações do pior e do melhor que a vida tem, histórias de humanidade e desumanidade, de violência e amor, de bondade e maldade. Não gostei nem da marinha mercante – o meu Pai sempre me disse que não era feito para aquilo e estava inundado de razão – e se gostei do humanitário (gostei) ele não correspondeu e expeliu-me rapidamente – há uma componente burocrática nas grandes organizações que não se adapta a mim, de todo. Tentei viver em Genebra uma honesta vida de empregado e tão pouco consegui. Acabava sempre no mar, na vela, na náutica de recreio, como se tivesse um elástico agarrado às costas – ou agarrado ao tal remo que levo ao ombro. Tentei regressar a Moçambique e foi a pior, a mais gigantesca asneira de todas as minhas vidas.

As mudanças de vida não são bruscas, nem fracturantes. A história do «querida, vou comprar cigarros» não passa disso mesmo, uma história. São movimentos tectónicos que, como os tremores de terra, se vão preparando à velocidade das unhas a crescer até que de repente acontecem. Quando em 2002 decidi deixar Genebra de vez e vir para Portugal demorei um ano a fazer a mudança. Quando, em 2010 resolvi não voltar para Portugal depois de uma experiência falhada no Brasil fiz uma das minhas raras viagens turísticas e fui por terra do nordeste do país até à Guiana Francesa – e dali apanhei um avião para a Martinica, onde não havia estado desde 1984 ou coisa que o valha. Assim começou a minha última vida, até à data: skipper, mais um recomeço, na verdade.

Agora, preparo-me para outra mudança – não de vida, mas de base. Sonho com um casarão no sul da Alemanha, com uma volta ao mundo no S/Y PANDA, um programa na rádio, um concurso de contos marítimos, um projecto grandioso na Guiné-Bissau, regatas de foils no Alqueva, um porto fluvial em Mértola, a organização de colóquios sobre temas da actualidade, do passado e do futuro, um Inverno nas Caraíbas e um Verão na Patagónia, mais um livro publicado, fotografar de novo. «Não é com uma vida que tu sonhas, é com um caleidoscópio», diz-me a rádio interior que me sintoniza com a realidade, com o mundo exterior e com a parte de mim que dá vida a esses sonhos. Porque eles acabam por se concretizar, todos, tarde ou cedo, com ou sem êxito. Como um relógio adiantado que se deixa apanhar pelo tempo e de repente vê que afinal está certo.

Não sou normativo como a minha amiga Isabel, que dizia «Todos devemos mudar de vida de quinze em quinze anos». Muda quem quer e quando quer. Ou, na verdade, nem isso: mudar de vida não é o resultado de uma escolha consciente, de uma análise cuidada. É mais parecido com nascer: quando estamos prontos o útero expulsa-nos. Quando estamos prontos, uma nova vida acolhe-nos.

II

Escrevo estas linhas em Palma (será que isto se vai tornar um refrão? «Escrevo estas linhas em…»). A minha Palma-a-bela, Palma-a-sensual, a-doce, Palma-a-bem-amada, que mo retribui cada vez que cá venho, mesmo sabendo que o meu amor por ela é agora menor, amor de casal velho, amor de quem já deu a volta à beleza e agora pede mais qualquer coisa sem saber o quê.

(«Sou amado por ti» devia fazer parte de qualquer declaração de amor.
– Amo-te e sou amado por ti. Amas-me e isso dá sentido, força e razão ao meu amor. –
Lisboa não me ama, por exemplo. O que sinto por ela é um amor não correspondido, um amor um bocadinho tolo, sem jeito, sem fim.)

Palma resistiu a milhares de invasões, piratas, saques, incêndios. Como Lisboa, é uma resistente e resistirá a esta invasão de absurdo. É uma dor para os olhos ver a cidade que tem uma das maiores concentrações de mulheres bonitas do mundo que eu conheço (inclui a Venezuela) cheia de máscaras. Ver uma cidade da qual a comida é uma das razões de ser – ou não estivéssemos no Mediterrâneo – com os restaurantes fechados ou semi-fechados é revoltante. E, sobretudo, ver obediência em todo o lado. Revolta-te, Palma!, apetece gritar quando me passeio por essas ruas tão lindas, sinuosas, estreitas e surpreendentes.

Verdade seja dita: o Mediterrâneo acaba por vencer. Ontem jantei noutro restaurante aberto «clandestinamente» (aspas porque Raoul, o proprietário francês, me explicou que a janela estava fechada com os taipais corridos por causa da polícia, quando na outra parede tinha uma porta de vidro completamente aberta). Há um jogo com vinte níveis, as pessoas fingem que obedecem, desobedecem, dizem que sim quando querem dizer não e não quando não têm a certeza e pretendem evitar o talvez. Esta cidade – de que num outro texto falei dos três anéis concêntricos mas não miscíveis que a formam – dá-se bem com a ambiguidade, com o movimento de ancas, o jogo de cintura. Nada no Mediterrâneo é o que parece – e é essa uma das suas grandes atracções.

Por muito ferida e magoada que veja Palma – e vejo – sei que num ápice recuperará, mal esta palhaçada acabar. Tal como sei que através de todas as mudanças de vida, duas coisas permanecerão: o mar e o cosmopolitismo. Talvez sejam a mesma, no fundo, não é?

Luís Serpa, Palma, Mallorca, 24-04-2021

[1] A designação tem uma razão de ser. Uma embarcação sendo uma enorme caixa de ressonância, os marinheiros adaptaram uma maneira de andar que evita o barulho dos passos para quem está de quarto em baixo, a descansar ou a fazer outra coisa qualquer. O «tump tump tump» dos passos mesmo por cima é desagradável. Vê-se imediatamente, pelo andar a bordo, quem é marinheiro e quem é «elefante».

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