Meditações numa taberna

por João Miguel Henriques
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Tik-Tak é nome de kocsma de bairro, ali ao fundo da nossa rua, a ver passar o eléctrico e penar a existência humana. Taberna, quero chamar-lhe, apesar de se apresentar em muito melhor condição e asseio que certos antros onde já tive a curiosidade e desprazer de pôr os pés. Tasca, ou então tasco, numa interessante variação masculina, a pretender denegrir um pouco mais ainda. Antes da febre do tik-tok e da invasão dos tuk-tuk (como os odeio, meu Deus, como os injuriei na minha última passagem por Lisboa), já este Tik-Tak existia, na mesmíssima esquina de hoje, com amplo terraço onde a taberneira se recusa a atender pedidos, deslocando-se apenas para recolher copos vazios e ouvir comentários inconvenientes.

A propósito da taberneira (chamemos-lhe assim, a bem das belas-letras, ainda que “empregada” servisse igualmente), encontra-se hoje de péssimo humor. Está nervosa, agitada. Eu entendo-a: é sábado à noite, tem a casa cheia e está sozinha ao balcão. Destrata-me na hora de pagar, sem paciência para o meu húngaro lento e enrolado. Não levo a mal. Para ser sincero, depois um mês em Portugal até já tinha uma certa saudade deste tipo de rudezas, desta incapacidade ou recusa de ser simpático para os outros em dias de pior humor. A taberneira (pultós, kocsmáros ou ainda kocsmárosné, quando esposa e fiel assistente do taberneiro-alfa) está esgotada, em sofrimento, e por conseguinte, de acordo com a tradição local, faz questão de fazer sofrer os outros. Talvez as suas indelicadezas sejam boas para o negócio. O cliente, deprimido ou indignado com a aspereza da matrona, presta-se assim a beber ainda mais, para esquecer ou acalmar-se. É como os amendoins a puxar a cerveja. E assim passa-se o serão no Tik-Tak, ao sabor dos ponteiros do relógio, como aliás o próprio nome indica. Até que batem as dez da noite e a taberneira chega à esplanada a mandar toda a gente para casa ou para dentro da taberna, que a junta de freguesia não permite barulho ali fora depois daquela hora.

E como tudo o que interessa nesta vida é quase sempre poesia, recupero da estante o belíssimo volume O Taberneiro (Poesia Incompleta, 2010), do meu amigo Miguel Martins, conjunto de fragmentos em que o poeta canta de forma sábia esta fantástica condição. Transcrevo o primeiro desses textos:

 

O TABERNEIRO é da cintura para cima. Poderia ser centauro. Centenário. Milenar. E é-o: pereneterno. Com ou sem laço ou pano pelo braço, de afro-hair-do, azougado tatoo, uma dentição d’ouro reluzente ou “sempre a considerá-lo” – depositando-as-fêveras. Pode chamar-se António, Miguel, Moussa ou Jeanne, qualquer-coisa-de-Bruges-ou-de-Sèvres – decepado por berço, por boteco ou botelha, o certo é ser só busto aos olhos da cangalha.

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