Lubutu

por Luís Serpa
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Estritamente falando, Lubutu não era da nossa jurisdição. Portanto, não tínhamos nada que lá fazer. Mas o Governador (auto-intitulado “La Force Tranquile du Manyema“) queria absolutamente visitar o sítio, começando a fazer pressões cada vez mais pesadas: proibir (ou pelo menos dificultar) a saída de víveres, ficar com uma parte cada vez maior “para os soldados: também são seres humanos, também merecem assistência”. O facto singelo e irrefutável de os nossos estatutos, que conhecia melhor do que muitos de nós, proibirem explicitamente a assistência a soldados no activo deixava-o indiferente.

Um dia cedemos: alguém nos dissera que a situação em Lubutu estava insustentável e mesmo sabendo que não podíamos fazer nada decidimos ir ver in situ o que se passava. Avisámos o Governador – um gordo enorme, detestável, que se deslocava numa liteira artesanal transportada por quatro desgraçados – e ele reuniu a sua comitiva: tínhamos que limitar o número de pessoas que queria trazer consigo, pois a ideia de que no avião havia uma quantidade limitada de lugares, mesmo que ainda houvesse espaço, era-lhe totalmente incompreensível. Lá fomos, no Dakota, um avião justificadamente mítico.

Comecei por me aborrecer com a Força Tranquila porque o chefe da segurança dele vinha armado e nós tínhamos-lhe pedido – e ele acedido – que não houvesse armas a bordo. Depois, porque ele nos disse que ia fazer uma visita à área e eu sabia o que isso significava: sua majestade (de resto como qualquer gestor português que se preze) gostava de se fazer esperar.

O quadro que nos tinham descrito também não era muito animador: cento e vinte mil pessoas alimentadas por um Dakota diário que vinha, se não me engano, de Kisangani e não chegava a carregar três toneladas de alimentos – para cento e vinte mil pessoas é pouco, confrangedoramente pouco. A “pista de aterragem” era um bocado de estrada alcatroada com quatro metros de largura e mil e duzentos metros de comprido – exactamente, ao metro, a distância necessária para um Dakota àquela altitude -. Para além do avião diário, operado já não sei por quem, havia uma presença reduzida da MSF e era tudo. Estávamos, portanto, preparados para o pior – ou seja, estávamos muito tensos -.

Quando chegámos à vertical da pista não queríamos acreditar no que víamos: era sem dúvida recta, mas não plana, pois fazia uma espécie de V invertido. Numa das extremidades (aquela onde devíamos aterrar) havia árvores de trinta metros de altura. E o pior: as pessoas, alertadas pelo barulho de um avião que lhes era familiar e onde normalmente vinha a comida, começaram a aglutinar-se ao longo da estrada. Como os nossos pilotos nunca aterravam numa pista que não conhecessem sem a medir primeiro, ainda tiveram mais tempo para se aproximar, esfomeadas.

A técnica de aterragem era simples: passadas as árvores, deixar cair o avião o mais possível na vertical. Eu estava sentado no lugar do engenheiro de vôo, entre os dois pilotos. A estrada ou pista ou o que lhe quiserem chamar estava completamente atulhada de gente, com a primeira linha a tentar resistir aos empurrões dos de trás – comia quem estava mais perto do avião, quando o avião era o da comida. A poucos metros do solo, o co-piloto, Andy, disse-me nos interfones:

– Luís, já viste um co-piloto borrar-se de medo? – O Andy era forte, jogador de rugby, orgulhoso (uma vez utilizei o termo braai – Afrikaans para “churrasco” – e ele perguntou-me com que direito é que eu usava aquela palavra. Tive que lhe dizer que vivi em Moçambique para acalmá-lo e me aceitar. Depois tornámo-nos quase amigos).

– Não, Andy, nunca.

– Então olha para mim. Já imaginaste quantas pessoas matamos se um pneu rebentar quando aterrarmos?

Não respondi: sabia o que nos fariam se aquilo acontecesse. Mas enfim, lá aterrámos numa pista da qual só víamos metade, o Andy e o piloto (creio que se chamava John, mas não tenho a certeza) quase de pé nos travões, os flaps a saltar das asas, o reverse no máximo e nós a avançar sem vermos metade da pista; depois, vimo-la e pensámos que nunca pararíamos a tempo – mas acabámos por parar, mesmo no fim, a meia dúzia de metros da areia onde nos tinham avisado para não ir porque ficaríamos enterrados.

Saímos todos do avião: o Governador para a sua volta – avisámo-lo que tinha quinze minutos, quinze, ele pediu 30, dissemos que não – e que partiríamos sem ele se não estivesse lá; os pilotos ficaram perto do avião: as pessoas não queriam acreditar que não tínhamos comida e os Dakotas eram iguais. Fui falar com a tenda da MSF, no alto do V invertido, cume de uma pequena colina de onde se via o espaço todo à volta – pelo menos até à floresta. Até onde se viam só viam cabeças e mais cabeças, eram milhares, aglutinados como só os africanos sabem, a ponto de me interrogar como fariam para respirar.

A situação descrita pelas duas enfermeiras do MSF – não havia médicos – correspondia à que nos tinham descrito em Kindu: três toneladas por dia eram obviamente insuficientes para cento e vinte mil pessoas; não havia medicamentos; elas não aguentariam muito mais tempo porque temiam pela segurança; as pessoas morriam como peixes num aquário sobrepovoado e envenenado. Depois fizeram-me uma lista de pedidos para a qual seriam necessários cinco ou seis Dakotas; de qualquer forma, Lubutu ficava muito longe de Kindu e a capacidade de carga seria mínima; além disso, precisávamos do avião para as operações que tínhamos em curso; lamentava muito mas não havia absolutamente nada que pudesse fazer.

Vinte minutos passaram e do Governador nem sombra. O outro Dakota, o da comida, estava quase a chegar, e nós queríamos sair antes de ele aterrar – as chegadas a Kindu à noite eram desagradáveis porque tínhamos que pedir, explicar de onde vínhamos, uma litania chata e humilhante – além de que era perigoso e proibido andar à noite na cidade. Mas o Governador não aparecia, e o T., chefe da operação em Kindu / Shabunda, opôs-se terminantemente a que saíssemos sem ele. O Andy e o John foram falar com o outro piloto e chegaram à conclusão de que ele conseguiria aterrar – bastaria empurrar o nosso avião um bocadinho para trás, mesmo para o limite da pista.

O que se passou a seguir foi, como sempre, indescritível. O nosso avião, já de volta dada, nariz todo empertigado, numa das extremidades da pista; o outro, depois de fazer a mesma aterragem que nós mas com a massa de gente ainda mais compacta, a avançar contra o nosso, que estava parado; ninguém sabia se pararia a tempo: ficariam pouco mais de cinco ou seis metros entre os dois aviões quando aquilo acabasse. A minha conversa com as enfermeiras esmoreceu até parar de todo e creio que o mesmo aconteceu a todas as conversas à beira da pista. Só se ouvia o barulho do avião, eu a ver claramente a força que os pilotos estavam a fazer nos travões e a tentar manter o avião direito. Via os dois aviões cada vez mais próximos, a olhar de alto um para o outro.

Est-ce qu’il va s’arrêter, ce con? – perguntou uma das raparigas. – Est-ce qu’il va s’arrêter?

Parou. Na distância prevista – mas agora ficávamos condicionados à saída dele -; o Andy e o John, que durante meses tinham sido reféns do John Garang no Sudão estavam cada vez mais nervosos; o Governador não aparecia; não havia mais nada para fazer ali. Defini uma hora limite com os pilotos, à qual descolaríamos com ou sem Força Tranquila do Manyema. Mandei alguém buscar o gordo ou avisá-lo de que nos iríamos embora sem ele (coisa que ninguém lhe diria, porque toda aquela gente tem um medo danado da autoridade).

O outro avião acabou a descarga; os nossos foram pôr os motores a trabalhar para o aguentar firme no sítio quando o colega descolasse; dentro de 10 ou 15 minutos descolaríamos nós. Como nos filmes, o Governador apareceu no último segundo do último minuto – mas trazia alguém com ele que queria, a todo o preço, embarcar -. Os pilotos recusaram; o chefe da segurança (que eu sabia ainda estar armado, apesar de ter fechado os olhos) começou a dar sinais evidentes de impaciência; o John e o Andy recusaram positiva, obstinadamente, embarcar uma pessoa a mais, fosse quem fosse – podres de razão, claro. A muralha de árvores que nos esperava do outro lado da “pista” não era para facilitismos; o Governador tentava puxar o outro para dentro do avião; eu tentava fechar a porta – disse-lhes para arrancarem com a porta aberta, que a fecharia a tempo da descolagem, o que era, claro, impossível. O amigo do Governador corria ao lado do avião. Eu pisava-lhe as mãos. Instalou-se uma confusão total. Finalmente, ajudado pelo Andy, que deixara a cabine e viera cá atrás consegui fechar a porta. Corremos os dois para os nossos lugares, com o avião já a rolar. A descolagem foi muito mais impressionante do que a aterragem porque agora avançávamos em direcção a uma parede de árvores – para a qual avançávamos a descer e que sobrevoámos a rasar, a rasar – .

Semanas depois, soubémos que a MSF tinha deixado Lubutu e que os IDP tinham recomeçado a marcha para Sul; para a morte, a maioria deles.

Excerto do livro Avenida da Liberdade, nº 1

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