Digam-me lá se não é assim, talvez eu esteja a ver mal as coisas, mas quem melhor para entender um texto em húngaro ou um enunciado oral em húngaro do que precisamente um nativo (ou nativa) desse belíssimo e ao mesmo tempo inalcançável idioma? Pois parece que nem sempre é assim. Falo hoje do curioso fenómeno da incomunicabilidade no seio do universo de falantes nativos do húngaro, a única que língua que o diabo fala, entende e respeita.
O meu húngaro continua algo limitado, confesso-o não sem alguma vergonha, pois uma década já passada por estas férteis bandas da Europa daria já para algo mais. Mas também para muito menos, diga-se de passagem, pois conheço bastantes ex-patriados que, por preguiça ou simples pragmatismo, jamais se aventuraram na distinção entre conjugação verbal definida e indefinida, ou nos mistérios do aparentemente inocente vocábulo “meg”. Assim sendo, não tenho problema em pedir ajuda a nativos próximos e disponíveis para decifrar um e-mail mais oficial ou interpretar imediata e consecutivamente uma abordagem oral mais elaborada. E depois descubro, mais vezes do que seria normal, que os próprios húngaros não se entendem uns aos outros. Não se trata naturalmente de desconhecer o léxico ou não perceber um determinado sotaque ou discurso obstaculizado por defeito de fala. Não é isso, trata-se de algo mais complexo, algo proventura útil numa eventual reflexão sobre o povo e o país. É que certos discursos, escritos ou orais, são consciente ou inconscientemente elaborados de forma críptica, quase codificada. Julgo que o objectivo é não comprometer o autor com nenhuma posição absolutamente clara, como se de uma calculada precaução se tratasse. Quem lê ou escuta determinado enunciado deste tipo fica com a desconfortável sensação de abarcar apenas um vago e geral sentido da coisa, sem porém poder dizer ao certo o que acabou de ser (in)comunicado. Exemplo extraído do contexto laboral: recebo e-mail em húngaro sobre possível colaboração em evento cultural, peço à minha colega que o resuma, de forma a clarificar as principais informações (querem colaborar?, estão interessados?, têm orçamento disponível para juntar ao nosso?), e ela então anuncia-me então que não sabe dizer, que pelo texto não se entende, que há ali um verbo ou uma construção curiosa que tanto pode querer dizer uma coisa como o seu contrário. Incomunicabilidade. Divirto-me então na fantasiosa hipótese de que esta língua de facto não existe e que por conseguinte todos a falam e ninguém a compreende. Um mundo caótico em que toda a gente se tivesse posto de acordo em emitir sons arbitrários e fingir comunicação.
Ponho-me a pensar nas eventuas causas e raízes deste extraordinário problema. Será por ser uma língua relativamente recente do ponto de vista oficial e burocrático? Talvez as palavras necessitem do seu tempo para amadurecer devidamente, como a fruta antes da pálinka, e depois do labor criativo de Kazinczy e seus amigos ainda tenhamos de esperar algumas décadas para que certos termos cristalizem o seu significado inequívoco. Ou então é possível que décadas de ditaduras, com os seus obscuros aparelhos burocráticos, tenham criado o mau hábito do discurso velado, da posição nunca totalmente assumida até se perceber que reacção terá do outro lado, da palavra sempre pronta para um recuo, mais interessada em adaptar-se às circunstâncias do que em afirmar-se sem rodeios. Como vos disse, isto daria para pensar também toda sociedade e até que ponto tantas pessoas, para não comprometerem o sustento, comprometem a sua integridade.
E por falar também em incomunicabilidade ou, melhor dizendo, suspensão temporária de comunicação, entram estas cartas hoje de férias estivais, para andanças e repousos merecidos, com a promessa de um regresso para Setembro.