Neste país, como em qualquer outro, qualquer excursão pela natureza, digna desse nome, deve ser acompanhada de um conhecimento mais ou menos profundo da paisagem e povoados circundantes. É verdade que não deixa de ser maravilhoso deixar simplesmente que os passos, um após um outro, como é seu costume, nos levem por sendeiros desconhecidos, de bosque, colina ou campo aberto, ao melodioso som da passarada. Vale a pena porém procurar alguns dados e curiosidades sobre as regiões percorridas, e estes caminhos panónios estão realmente pejados de nascentes, memoriais e até segredos que só uma dedicada pesquisa permite descobrir, para enriquecimento cultural do caminheiro.
Serve esta introdução para justificar a contratação de Gyula. Foi ideia dela e eu concordei, claro. Aprendi com o tempo que perante sugestões deste tipo, apresentadas com a obstinação dos grandes generais antes da vitória ou derrota finais, tenho nada mais que duas opções: concordar imediatamente e sem reservas ou resistir e contra-argumentar, à custa de longos debates e de um enorme desgaste psicológico, antes de por fim concordar sem reservas. Ando ultimamente a optar quase sempre pela primeira possibilidade. É uma questão prática. Daí Gyula. Convenceu-me ela, acho, que não temos suficiente tempo para nos informarmos devidamente antes das longas caminhadas a que a rota azul nos motiva. E o Gyula sabe tudo. A troco de almoço, transporte e razoável remuneração (eu cá acho-o carote), acompanha-nos nos passeios e vai-nos contando um pouco sobre os lugares por onde passamos, recuperando muitas vezes episódios da história local e fazendo-nos notar preciosidades que sem ele nos passariam naturalmente despercebidas. Eis no topo daquela colina as ruínas de antigo castelo, erguido em defesa do avanço turco. E aqui passava modesta ferrovia, para transporte da bauxite, extraída da montanha, até aos barcos que a esperavam no Danúbio. Reparem, esta flor é a primeira a florescer na primavera, a lindíssima branca de neve. Em breve toda a floresta ficará coberta de verde e poderemos colher para a sopa molhos de cebola selvagem. Bebamos agora desta fonte natural a água riquíssima em minerais e tenhamos ouvido atento ao resfôlego do javali, que por esta altura nascem-lhes as crias e anda a mãe atenta e perigosa. O pertinente, Gyula. O ponderado. Um pouco excêntrico, é certo. Não come de tudo, é preciso perguntar-lhe. Mas indivíduo em excelente forma física para idade, jamais aborrecendo com verborreia desnecessária.
Ahmed é de invenção completamente diversa, sugerido espontâneamente por um spray ambientador a fazer lembrar o perfume intenso e enjoativo de um jovem numa discoteca de Verão em Agadir. Quando entro na casa de banho e me invade o odor a macho magrebino, indigno-me, confronto-a. Um pouco embaraçada, ela confessa-me que sim, que Ahmed passou lá por casa (eu nunca o encontro). Fico furioso porque sei que no passado houve qualquer coisa entre eles, mas ela garante-me que ele só passou para pedir algum dinheiro, que está em dificuldades, que precisa de ajuda. Dei-lhe, cinco mil, diz-me ela. Teve de ser. Apesar do ciúme, condoo-me um pouco pelo pobre Ahmed, cujos traços apenas imagino, nas suas elegantes roupas contrafeitas, à deriva pelas ruas de Budapeste.
Gyula e Ahmed. Não têm propriamente o potencial de heterónimos pessoanos, mas também não me venham dizer que na pandemia não dá para conhecer gente nova.