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Eu e Euzinho…

Frigyes Karinthy
Eu e Euzinho
1887–1938

Escritor, poeta. O seu pai era um oficial instruído; Karinthy foi educado entre discussões filosóficas, literárias e artísticas. Os seus pais eram obcecados pelo positivismo e pela cultura francesa, pelo que Karinthy cultivou a sátira social e literária: Assim Escreveis (1912). Na obra Em Viagem à Volta do Meu Crânio (1937) descreveu de um modo humorístico um mundo dominado pelo ceticismo e desespero. É atribuída a Karinthy a primeira referência à Teoria dos seis graus de separação, que surge no texto com o nome original ‘Cadeias’, incluído na sua coleção de pequenas histórias ‘Tudo é diferente’ publicada em 1929. O personagem desta obra tenta, através de vários exemplos, mostrar que as pessoas estão ligadas por um pequeno número de ligações, o que veio a dar origem à célebre expressão ‘seis graus de separação’. Fez amizade com Kosztolányi e Géza Csáth, que mais tarde o introduziu no freudismo.

Euzinho é um homem minúsculo, do tamanho do meu dedo mindinho. No entanto, não é um rapazinho, mas um homem minúsculo com o rosto lavado, fugaz e inquieto, com um sorriso manhoso, pretensioso e olhos impertinentes. Usa calções e meias de seda como um pequeno marquês. Ele é alegre, espirituoso, casual, cínico e incrédulo. Os seus movimentos são envolventes e exagerados ao ponto de ser gozado, ele é excessivamente submisso e educado, e por vezes surpreendentemente insolente.

Não me conheço: a palavra “eu” é vaga, misteriosa e trágica, implica tenebrosidade com fogos cintilantes; é dor enfadonha ou alegria triunfante. Os “eus” dos outros vejo-os à minha frente ou atrás de mim, com contornos afiados, ampliados ou encolhidos através da lente do meu próprio ‘eu’, mas essa lente é feita de vidro, invisível, e ao tornar os outros visíveis, ela própria desaparece.

Muitas vezes vagueei à minha procura e lutei comigo mesmo através da escuridão, mas a resposta às minhas perguntas limita-se a sentimentos inexprimíveis de angústia, dor aguda e prazer inquietante. Não me conheço a mim próprio. Mas conheço alguém que vive dentro de mim, com quem nunca conversei, que frequentemente toma a palavra, insolente e gritante, sem se importar que eu nunca lhe responda, que me envergonha e me perturba, como um pai “bem-educado” na companhia do seu filho “mal-educado”.

Agora que estou a falar dele, percebo com espanto que nem sequer lhe dei um nome porque estou tão zangado com ele e sempre insisti em fazer-me acreditar que ele não existe, no entanto, ele existe.

Como devo chamá-lo? Não lhe posso chamar eu, pois ele não é eu, ele é minúsculo. Ele é Euzinho, mas não quero que ele seja identificado comigo.

Não conhece momentos festivos, sem comoção, sem emoção, não gosta de silêncio. Em pausas embaraçosas, ele irrompe em gargalhadas. Não sei onde vive, às vezes instala-se na minha cabeça, senta-se na minha mente, mexe as suas pequenas pernas e assobia. Outras vezes, esconde-se na palma da minha mão e reboca-me os dedos; eu estou sentado à frente de outra pessoa, um cavalheiro “bem-criado” com quem converso de forma séria e formal, e ele continua a puxar-me para tocar na sua orelha ou no seu nariz de uma forma completamente inesperada ou para lhe dar um calduço. Euzinho está sempre acordado, mas normalmente começa a falar quando é mais desagradável e desconfortável para mim. Quando eu precisaria de silêncio, atenção e concentração.

Euzinho fala apenas comigo, ele nunca se aproximou de mais ninguém. Ele parece ter-me escolhido e decidiu que o único projeto da sua vida sem rumo e alegre é irritar-me e desconcertar-me. Já me encontrei algumas vezes com o coração a derreter e a transbordar, cheio de um afeto fervoroso e de um desejo doloroso de contar tudo sobre mim a amigos ou amantes. Dar-me plenamente para que eles tenham amor por mim ou piedade de mim: vês, este sou eu. Nestas ocasiões, mergulhei em mim próprio, chocado, humilde, cândido. E foi ao fazê-lo que me deparei, entre outros, com Euzinho, e comecei a puxá-lo e a exortá-lo: “Vá lá, tu também falas, apresenta-te, faz uma vénia, porque és parte de mim. Ele, porém, permaneceu obstinadamente silencioso, e se abriu a boca, falou apenas comigo, e não com o outro: “Pára, disse-me ele, impertinente e altivo, não percebes o quão ridículo és? Queres enganá-los, não percebes? Mas a mim não me enganas, não tens vergonha de me querer enganar? Mas eu conheço-te, quão sentimental, quão bárbaro, mas vai em frente se é isso que te apetece”. Tenho de o tolerar porque não tenho armas contra ele. Gosto de palavras bonitas, simples e expressivas, verbos profundos, voltas aristocráticas de frase, gosto de palavras trágicas porque estou convencido de que essas são as que exprimem a vida. O seu é um vocabulário vulgar, mesquinho, cínico e impudente. Ele recolhe com perverso prazer a mais grosseira grosseria, os adjetivos compactos, sem vergonha e escabrosos. Recolhe e utiliza sem hesitação a gíria, o vocabulário de vagabundos, velhacos, camponeses e soldados. Entre os seus amigos estão a vil ralé dos bairros de lata, o vendedor de jornais de rua, o judeu urbano impiedoso, o servo corrupto e o agente instalado nos cafés. Euzinho roubou-lhes as palavras a partir das quais compôs o seu vocabulário, essas são as palavras com as quais me aterroriza, me ultrapassa ou me envergonha justamente quando procuro dentro de mim o cristal das palavras mais belas, profundas e sublimes.

Estragou os meus minutos mais profundos, nos quais eu estava prestes a alcançar o sentido da vida: a dor. É verdade, porém, que muitas vezes conseguiu salvar a minha vida árida, brutal e pagã. Quando eu era adolescente escrevi um diário sobre mim e para mim, não queria que ninguém a não ser eu o lesse. Mas quando quis escrever a verdade final sobre mim, foi ele que disse: “Ei, avô, não escrevas isso, o que é que a pessoa que vais mostrar vai dizer? No final ele acabará por ficar desapontado consigo e não acreditará que você é quem quer fingir ser”. “Mas é isso que estou a tentar fazer”, insisti desesperadamente. “Está bem, está bem, meu”, disse ele e eu obedeci para não ser obrigado a discutir com ele.

Foi ele que estragou os meus poemas ao começar subitamente a falar entre duas rimas em voz alta e num tom de brincadeira: “‘Aflição’, parece boa, boa rima”, disse ele numa ocasião. “Embora, claro, não quisesse colocar isso, mas isso não importa. O importante é que tem um efeito direto, como se emanasse do fundo da sua alma, mesmo que não possa emanar do fundo da sua alma, principalmente porque estou ali sentado a fumar e a mover as minhas pernas. Tão ricamente. É ele que se instala na minha garganta enquanto exprimo as minhas condolências pela morte de alguém e começo a contar piadas: “Olha”, diz ele, “que nariz ele tem, como um pepino. Quão graciosamente uma vespa podia andar através dele. E depois o outro tipo teria de o enfiar com a mão, como seria isso? Não sei se os atores conhecem Euzinho. Se eu fosse um ator, seria incapaz de o aturar. Por vezes tenho falado, rezado ou recitado em público. Esses têm sido os seus minutos mais descontrolados: ele não calaria a boca por um momento. Eu falo, peroro, levanto a minha voz, fico apaixonado, fico excitado, fico emocionado, posso até quebrar em lágrimas, enquanto ele não se cala nem por um segundo, fala sem parar e diz o que lhe vem à cabeça na sua voz cínica e desrespeitosa. Não se deixa de modo algum incomodar pelas minhas palavras. Numa ocasião, apanhei-o em pânico a cantar um par de cabarés enquanto disfarçava num tom agudo sobre os objetivos da humanidade e a tragédia de um certo herói. E é o mínimo, que não presta atenção ao que estou a fazer e se entretém com péssimas canções e música de realejos. O pior é quando ouve, presta atenção, controla e critica. Eu falo com o público, e, entretanto, ele fala comigo incansavelmente. “Bem, avô”, diz ele, “isso foi muito bom”. Mas agora tenha cuidado, levante a sua voz e faça tremer a garganta. Agora, fique chocado, como se quisesse rebentar em lágrimas. Isso correu mal. Terás de compensar quando chegares àquela parte horrível com a coisa, a indignação ou não sei o quê. Cuidado com esse na primeira fila, ele não está a prestar atenção, tem de lhe dar um grito. Que tipo de homem é ele? Está numa boa. O que diria se de repente começasse a cantar: “Sariiiita… és a minha parelhiiiita…lá-lá-lá… lá-lá-lá “. Ou esta outra: “Paaaaaaa…papááááá…papapapapáááááá”, o que cantam nos cabarés”.

Não sei se os outros conhecem Euzinho, mas conheço pessoas que sei que não há Euzinho nelas. São os cóleros, os indignados, os covardes sinceros, os movidos pelo instinto, aqueles cujo sangue corre à cabeça, que pegam na faca e a mergulham na outra, ou que caem de joelhos aos gritos. Nenhum Euzinho vive neles, porque Euzinho, se eu pegasse na adaga e rosnasse, “Vou matar-te, mulher traiçoeira”, agarraria a minha mão e diria calmamente, “Vais pensar em matar”, e se eu implorasse pela minha vida, ele irromperia em riso dentro de mim e rir-se-ia de quem me ameaçasse.

Porque ele não se importa com a minha vida, não tenho pena dele. É ele que murmura e murmura quando os meus olhos se enchem de lágrimas de tristeza, dizendo: “Bem, agora põe a mão nos olhos, agora baixa a cabeça, agora mais alto porque te estão a ouvir atentamente. Que estranho é como choras, murmura, murmura, murmura, és muito engraçado, para mim podes morrer, nem sequer te quero voltar a ver, estou farto de ti. A propósito, como está? É ele que fala em paralelo com aqueles com quem falo, mas embora o faça de forma respeitosa e correta, ele atira-lhes com uma rudeza inaudita. É ele que trata o primeiro-ministro como tu, e enquanto eu digo: “Excelência, talvez seja possível…”, ele fala assim: “Ó pá, despachemo-nos, não temos tempo, nem tu nem eu, por isso deixemo-nos de tretas”. Penso que ele vai arruinar até os meus últimos minutos, tirando-lhes toda a solenidade. Enquanto eu me preparo para a grande viagem na minha morte, Euzinho permanecerá sentado no fim do meu nariz afundado, dando ordens: “Vá lá, uma frase espirituosa, velhote, antes de ires para o outro bairro, para que os românticos e pedantes que nunca te conheceram possam citá-la, como eles também nunca me conheceram”. E é ele que tira a caneta da minha mão agora que eu quero falar sobre ele. “Eu sou um bom sujeito, não sou?” diz-me ele. “És compreendido por poucos, e poucos percebem que só me usaste como sujeito porque não tinhas mais nada para escrever”. Diabo de uma criança, o que lhe responder? Devo dizer-lhe que ele está a mentir, que não é verdade que sou apenas um sujeito, que queria desenhá-lo e dizer-lhe que ele vive dentro de mim…? Ele sorri de forma impertinente e presunçosa. “Sim?”, pergunta ele. “Está bem. Mas então porque não me deixa falar da minha própria boca? Então poderia apresentar-me melhor, mais diretamente. Porque me descrevem? Porque me caracterizam? Deixem-me falar por mim mesmo: vou apresentar-me”. Não… não, isso é impossível… É impossível num livro ou num jornal decente… Cala-te, sua criança mimada!

Tradução: Eszter Orbán e Elena Ibáñez

Fonte: Cortesia da Fundação Húngara do Livro (Magyar Könyv Alapítvány) e da Revista Digital Lho.es

Versão portuguesa: Henrique Delmar

Crédito da Imagem: Coraline (Budapest Bábszinház)