Um mês depois de fazer 94 anos lançava “Da Pintura”, textos inéditos cujo título está longe de dizer tudo. Foi o pretexto para uma conversa que, como ele diria, percorreu vários lugares ou nenhum. Esta é uma entrevista de 2017 que o Expresso republica no dia em que se soube da morte de Eduardo Lourenço.
Fala como escreve. Com a sintaxe viva de imagens e derivações. Não há frase que não tenha peso, textura, cor, densidade. Ou humor puro e leve. Recebeu-nos no seu gabinete da Fundação Calouste Gulbenkian para meia hora de conversa, que triplicou apesar do cansaço, porque o professor gosta de contar, gosta de pensar. E de pensar no que pensa. Desta vez havia um livro em cima da mesa. “Da Pintura” (ed. Gradiva), organizado e prefaciado por Barbara Aniello, cujo conteúdo são anotações soltas, fragmentos, textos curtos — a maioria não datados, embora situados entre 1946 e 2013. Todos inéditos. Observações sobre arte, pintura, beleza e estética que estavam no fundo do baú e com as quais, por vezes, do alto dos seus 94 anos, nem sempre concorda. Está a folheá-lo — o cheiro de um livro novo — quando entramos. E esse gesto determina o rumo da conversa.
Recebeu-os hoje?
Fui surpreendido pelos livros esta manhã. Este é composto por notas, papéis, agendas que eu tenho. Como esta [tira do bolso um pequeno caderno]. Não consigo desfazer-me dela nem passar o que está aqui escrito para uma outra, onde possa começar de novo.
Agarra-se aos objetos?
Mais do que eles a mim.
Como é reler fragmentos escritos espontaneamente há tantos anos?
Tive várias surpresas, umas agradáveis e outras de um tipo diferente, que é ver coisas com as quais já não estou de acordo ali registadas para minha vergonha.
Momentos em que não concordou consigo mesmo?
É que o tempo não passa em vão. São notas que não estão eivadas de espírito crítico, antes são a reflexão habitual de um ensaísta com pretensões filosóficas.
Usando a distinção do livro, há os homens que pensam e os que fazem pensar. Nalgumas destas notas estava nessa transição?
Pensar, pensamos todos. Não só os humanos mas, segundo os antropólogos, todos os seres viventes. Pensar é ser um eco do que o Cosmos tem para nos dizer. É saber o que somos como tempo passado, como História; termos uma imagem mais ou menos objetiva do nosso percurso — o que é absolutamente inviável, mas uma pretensão como outra qualquer. Pensar é um diálogo que temos connosco próprios. E é sempre qualquer coisa que acontece em função de um espectador possível, mesmo que não tenhamos pensado ou escrito com o propósito de ter uma escuta, como acontece com estas notas. Elas estão condicionadas pelo meu interesse na arte em geral e na pintura em particular. Antes desta compilação houve uma outra sobre música. Coisa de amador, de alguém que não tem aptidão. Reflexões sentimentais causadas por uma arte que é provavelmente a que resume todas as outras.
Lembra-se do momento em que a arte entrou na sua vida?
Não sei quando a arte entrou no meu horizonte de aprendiz de filósofo. Mas se houve algum momento em que me marcou pela primeira vez, isso aconteceu em França. Eu tinha estado antes em Hamburgo, e aí não tive grandes descobertas. Quando casei, voltei para França, primeiro para Montpellier e depois para Grenoble, passando pelo meio um ano no Brasil. Ao regressar a Grenoble, nas férias, vi uma exposição de Paul Klee — que para mim não passava de um nome. Foi uma revelação, porque é difícil imaginar alguém que possa fazer do conceito puro uma realidade pictural. Como se escrevesse por hieróglifos.
Uma espécie de pensamento representado?
Sabemos que a arte abstrata não tem de se autojustificar — qualquer risco o pode ser. Porém, aquilo era a abstração humana em figura, em representação. Klee era um pintor e ao mesmo tempo um filósofo. E não representava o real, mas a nossa essência de seres menos imaginantes do que pensantes. Outro momento importante em termos de descoberta da arte foram os dois anos em Itália como conselheiro cultural da Embaixada em Roma. Como em quase todas as cidades italianas, ali somos confrontados com o espetáculo de um passado eternamente presente, que dialoga connosco mesmo sem sabermos dialogar com ele. Lembro-me da primeira vez que visitei a Galleria degli Uffizi: aquela sala onde estão os Botticelli é qualquer coisa de inesquecível. É como ser transportado para um outro mundo. Para o mundo real.
Concebe a arte como mundo real?
A experiência fundamental da Humanidade é imediatamente de ordem artística. O primeiro objeto de adoração humana é o Sol, a realidade solar. Os homens transformaram em deuses tudo aquilo que condicionava a sua própria existência e nada terá sido mais enigmático do que a realidade mesma: o Sol que nasce, que tem uma curva, um percurso. Os egípcios fizeram logo uma fábula divina disso, com Osíris a percorrer o horizonte à procura de uma outra coisa que seria a Lua.
Vivemos, portanto, rodeados de deuses.
Veja que uma das coisas mais difíceis de aceitar é a destruição de obras de arte. Sentimos isso como um ato de barbárie. Barbárie é aquilo que afeta o nosso destino enquanto pessoas e aplica-se à destruição daquilo em que a Humanidade se reflete ou é a sua expressão mais alta. Não sendo equivalente aos massacres humanos, não tem desculpa de espécie alguma.
Inédito. O livro agora publicado contém notas sobre arte registadas ao longo de décadas. Faziam parte do Acervo Eduardo Lourenço, que está a ser inventariado por João Nuno Alçada
ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
Escreveu que a arte é a negação do bom senso. Porquê?
Descartes, pai do racionalismo moderno, diz que o bom senso é a coisa mais bem distribuída no mundo. O bom senso é outro nome para a razão. Somos pessoas racionais, animais racionais, se bem que a nossa animalidade seja discutível. Porém, os artistas não criam em função da razão ou do bom senso. Criam em função de um estímulo de qualquer coisa, que os ofusca e interroga. E, se tem uma tradução imagética, essa tradução é a primeira manifestação de arte propriamente dita. A essência da arte é a mimesis. Estamos cercados de objetos e tentamos perceber de que é que eles nos falam. Com exceção da música, as artes são imitativas e nasceram de uma cópia da própria natureza.
E nasceram para quê?
Penso que, num sentido arcaico, nasceram como imagens que suscitaram nos homens das cavernas talvez já um sentimento estético. Mas também como uma tentativa de capturar magicamente os animais representados, antes de serem mortos e utilizados para fins humanos ou infra-humanos. A Estética é um conceito posterior a este tipo de experiências — somos nós que, mais à frente, vemos nessas primeiras figuras uma espécie de panteão antes de todos os panteões. Um renascimento numa idade menos sofisticada ou hipersofisticada e da qual já não temos capacidade de imaginar seja o que for.
A dada altura, a respeito da fruição da arte, diz que “ver é ser visto”. O que quer dizer?
É como se a obra de arte fosse um espelho. Não um espelho de que nos servimos para fins comuns e úteis — de ter uma imagem, de estar dentro de uma imagem. Mas um espelho onde ocorre uma identificação com a imagem que está à nossa frente e que é, no sentido profano do termo, sobrenatural.
A arte devolve-nos qualquer coisa de nós?
Pelo menos interroga-nos, põe-nos em causa, diz-nos quem somos. Dá-nos uma emoção diferente de todas as outras emoções.
E a obra nasce no ato de criação ou no olhar?
O ato do olhar é o ato que a recria. Mas ela nasce no criador — num sentido metafórico e não no sentido que refere o Criador como transcendência absoluta. Se, como afirma a mitologia bíblica, os homens foram criados, não o foram para serem um eco da criação, mas para serem os criadores da sua própria história. E o primeiro dom que lhes é concedido é o de nomearem o que está à sua volta. Deus encarrega o homem de nomear, e o que ele nomeia fica com esse nome. Somos, logo na origem, investidos de uma função poética.
Gostava de ter tido alguma prática artística?
A única arte que teria gostado de praticar é a música. Parafraseando Baudelaire, invade-me como o mar — tem esse efeito devastador. Mas a minha incapacidade nesse domínio é absoluta e tanto mais estranha quanto uma parte da minha família gostava de música. Nunca vi o meu pai tocar, mas sei que tinha um violão. E todos os tios de Lisboa pertenciam a pequenas orquestras ou bandas. Eu nada, coisa nenhuma. Max Scheler usava esta expressão: “Ser cego para os valores.” Cego é não ter a capacidade de sentir, ser insensível. O meu problema é paradoxal: sou hipersensível a todas as artes mas incapaz de imitar seja o que for. Sofro de uma cegueira total nesse capítulo. E talvez isso me tenha levado a tentar perceber porque é que aquilo a que chamamos ‘arte’ parece uma coisa tão inacessível, um mistério que queremos descobrir.
Será pelo facto de a arte existir para compensar a nossa luta contra o tempo?
A arte não é algo de que os homens do princípio, de há milhares de anos, tivessem tido consciência. É provável que não soubessem que estavam a querer reconquistar qualquer coisa perdida. Ou, em todo o caso, a reconhecerem-se como seres que, sendo mortais, têm consciência de que essa mortalidade é ao mesmo tempo terrífica e pede uma solução, algo da ordem do inconcebível — do não concebível.
A tal negação do bom senso?
Não apenas, mas algo de positivo, como o espetáculo do Sol. A primeira razão de espanto é a contemplação da natureza. Todas as cosmogonias eram formas de os homens se situarem no mundo e saberem o que os esperava. A cultura egípcia é um ritual permanente para substituir esse mundo de uma morte inevitável, fatal e comum. Um mundo paralelo, superior a este, uma permanência — daí a invenção da múmia —, uma afirmação do sonho mais radical da Humanidade, que é ser eterno.
Fala de espanto. A arte tem uma origem semelhante à da filosofia?
A filosofia é um grau mais sofisticado do que a arte. Mas é uma resposta à mesma consciência de que somos mortais e, sobretudo, ignorantes de um outro destino que nos permitisse vencer esse desafio.
Escreve que “a grande ilusão é conceber a Estética como uma radiografia da arte”. Acha que a Estética como disciplina pretende explicar a arte?
A Estética é a tentativa de tornar inteligível aquilo que na realidade não o é: o ato criador, o ato poético, de qualquer natureza que ele seja. Somos poetas por definição porque somos falantes, criadores de ficção. Falar é ficcionar, essa é a nossa primeira relação com o mundo. E a Estética, já nos gregos, dá conta da harmonia que reina no mundo e das razões por que essa harmonia é para nós algo próximo do divino. De uma maneira racional, dá conta daquilo cujo conteúdo é uma emoção.
Trava uma batalha perdida?
É quase pleonástica, porque o importante é a autorrevelação em que consiste, de facto, a realidade ou o objeto a que chamamos estético. E o estético não vem dizer “eu sou um objeto estético”. O estético é a nossa relação com ele, o sentido implícito disso que nos submerge de emoção ou nos interroga.
Vários filósofos, como Wittgenstein, sentiram-no como algo que está fora do mundo, de que não se pode falar.
Essa era também a ideia de Schopenhauer: que o enigma de que a Estética pretende ser a decifração não é resolúvel. Porque a essência do que nos ofusca é não ser racionalizável. Mas existem outras interpretações. No meu tempo havia um filósofo italiano, Benedetto Croce, para quem a reflexão mais profunda da filosofia era de ordem estética. Ele tentou um discurso o mais compreensivo possível sobre aquele fenómeno, que é, tirando os fenómenos vitais, o mais surpreendente de todos — o da beleza.
Há décadas registou que “toda a Estética é a morte da arte.” Concorda consigo próprio neste ponto?
Sem dúvida. É uma reflexão que vem de Hegel, para quem a própria filosofia é a morte da arte. Porquê? Porque é aquilo que transcende a arte. A filosofia é uma provocação superior a tudo o que somos capazes de criar.
“Agora é como se o mundo mudasse mais rapidamente que os homens.” É interessante ver como esta frase sua, sem data, se adequa ao presente. É este o mundo em que vivemos?
Cada vez mais. Porque, provavelmente, a atividade humana mais radical, e a única que tem efeito sobre o real que nos foi dado, é aquela que encarna o conhecimento científico. Estamos hoje confrontados com desafios e respostas que significam quase uma vontade de nos darmos um mundo criado por nós. Um mundo que se afasta cada vez mais desses tempos em que a natureza comandava os imperativos do homem. Hoje, a Humanidade está dividida não só entre os que dominam e os dominados mas sobretudo entre os que sabem e os que não sabem. É um paradoxo: ao mesmo tempo que o saber é cada vez mais universal e eficaz, isso não se traduz numa Humanidade mais humana e mais sábia. É uma espécie de desafio do Fausto, de Goethe, uma personagem da ciência moderna dividida entre a capacidade de modificar positivamente as coisas e o poder de as destruir. Antigamente preocupavam-nos os destinos individuais, hoje não estamos certos de que o destino coletivo, daquilo a que chamamos ‘mundo’, esteja garantido.
Vida. “Fui mais vivido do que vivi as minhas escolhas. Queria estar entre e não em”, reconhece o filósofo
ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
É a tal “corrida estática” que nos ocupa? Corremos para continuarmos parados?
Durante séculos, os atores da mudança eram minoritários — profetas, sábios, cientistas. Hoje é a Humanidade inteira que faz parte desse projeto de dar uma nova forma ao mundo que herdámos. Às vezes isso tem um sentido positivo, noutras somos confrontados com perspetivas apocalípticas. Pensava-se que depois de um século infernal como o século XX estaríamos a entrar numa era menos violenta, com uma paz perpétua mais ou menos aceitável. Porém, o que hoje temos é a noção de um futuro imediato que de repente pode sofrer uma alteração irreversível. Os homens sempre fizeram mal à natureza, durante séculos devastaram as florestas para trabalharem a terra, mas agora não se trata apenas disso. Trata-se de uma ameaça que diz respeito à existência desta herança a que chamamos Terra.
Fala no pós-guerra e na expectativa da paz. E emigrou para França justamente nessa altura.
Essa França que conheci no final dos anos 40, ocupada e vencida, já não existe. Hoje, a Europa é quase uma exceção no planeta. Ainda não é aquilo que os europeus desejam, ou pelo menos os europeístas, mas é o continente mais pacificado que conhecemos.
Mesmo assim, tem as suas convulsões.
São convulsões caseiras. O que é novo é que este continente, que dominou parte do mundo durante milénios e onde a ciência teve as suas realizações mais precoces e importantes, é objeto de uma contestação inédita na sua história. É a primeira vez que a cultura europeia deixou de ser mítica aos olhos dos outros e passou de ser invejada a ser contestada na sua pretensão de ser um modelo. Isto é tão recente que ainda não fomos capazes de o pensar. Veio ao de cima com o ataque a Nova Iorque em 2001, a um país que é um filho da Europa e vencedor da II Guerra Mundial. Os outros continentes já não estão fascinados, como estiveram durante séculos — à força ou pela natureza das coisas —, pelo esplendor europeu. Por sua vez, a Europa atravessa um período de alguma má consciência.
Gosta deste mundo?
Não há outro, não tenho escolha. Mas é quase escabroso ser europeu e estar preocupado com o destino europeu.
Porquê?
Porque aquilo que acontece fora da Europa é muito mais preocupante e dramático. Este é um continente privilegiado, não por ter feito tudo o que era necessário para que o fosse mas porque é assim. E, pelo facto de não ter problemas de gravidade extrema, deveria estar mais disponível para reagir às consequências, por exemplo, dos conflitos no Médio Oriente, em que gente sem culpa nenhuma é objeto de coisas apocalípticas — como as pragas do Egito. Não se percebe esta paralisia perante uma situação como aquela a que assistimos, enquanto nós vivemos numa sociedade de espetáculo permanente, de festa.
Viveu em vários lugares, mas sempre se viu como um migrante em vez de um emigrante. Qual a razão?
Emigrantes foram aqueles que, nos anos 60, foram para França com muitas dificuldades. Eu não fiz parte deles — fui para fora porque quis e lá fiquei por várias razões. Mas estar em França, como pode imaginar, era não estar em Portugal. Não me posso gabar de ter sido um militante. Havia muita gente que tinha saído só por essa razão, porque o ambiente no país era intolerável e dificilmente vivível. Eu não gostava do que se passava no país, mas não foi essa a razão por que saí.
E qual foi a razão? O que procurava?
Olhe, posso até revelar um fait divers. Não sou rico nem filho de pais ricos ou cosmopolitas, e a ideia de ir para fora não teria surgido por minha iniciativa. Acontece que um professor de filosofia de Bordéus foi convidado para vir a Coimbra fazer uma conferência e pediram-me para lhe mostrar a cidade. Ele percebeu que eu tinha pouco mundo e que falava muito de França, então perguntou-me se estaria interessado em ir para lá com uma bolsa. Eu não sabia o que fazer de mim, já estava aqui em fim de linha, e respondi que sim.
Que fim de linha era esse?
Tinha acabado o meu tempo de assistente sem ter concluído a tese. Precisava de uma saída de socorro, airosa. E esta bolsa mudou a minha vida, porque, na primeira vez que visitei a faculdade, encontrei no corredor uma jovem com quem nada se passou nesse momento mas com quem mais tarde me casei. Foi a primeira loira com que me cruzei — a mitologia mais banal que se pode imaginar.
Teve muita sorte.
Neste caso, sim.
Como foi marcado pelas viagens que fez? França para começar, mas também Alemanha, Itália e Brasil.
São uma série de peripécias que foram reais mas não escolhidas. Deixei-me viver.
Como é deixar-se viver?
É o que eu chamo feitio ou, por outra, não-feitio. A coisa mais difícil para as pessoas é serem capazes de uma escolha determinada, acertada e única. Eu pertenço àquela raça de pessoas que quereria estar ao mesmo tempo entre coisas diferentes.
Mas deve ter havido escolhas.
Bom, eu fui primeiro para a Alemanha, a pátria da filosofia europeia, em especial de Hegel. Não estive lá muito tempo, apenas dois anos, e não aprendi o alemão. Com isto desisti do instrumento mais importante para ser um filósofo consequente e a par do que nessa altura se passava de interessante na filosofia. Portanto…nunca tive uma finalidade muito assumida e precisa, nunca soube o que queria. Fui mais vivido do que vivi as minhas escolhas. Queria estar entre e não em. Como isso é impossível, não estive em parte nenhuma.
Ou esteve em muitos lugares.
Relevo essa contradição a Pessoa, aos poetas. Ou a essa gente da poesia popular que nos festivais da canção, de repente, põe este país de novo no mapa.
Divertiu-se com isso?
Muito. Ele [Salvador Sobral] tem graça e humor. E assumiu tudo com uma grande naturalidade. Veja que uma revista fez uma lista de personalidades importantes, e ele vinha antes do Papa! Quando eu vivia lá fora, também via a Eurovisão. E já estava farto de ficar nos últimos lugares. Lá fora sofre-se mais.
Sofre-se porquê?
Sofrermos ou não, não depende de nós. Acontece ou não acontece. Mas o ‘lá fora’ em Portugal é muito interessante, porque é onde sempre estivemos. Portugal é um país pequeno e o primeiro a sair da Europa para o vasto mundo. É algo, quase um mito, do qual nos podemos gabar: fomos os primeiros a chegar com a nossa bandeirinha a um sítio mágico chamado Oriente. Isso deu-nos um lugar na história da civilização e na nossa própria memória. Ainda hoje, os portugueses que estão lá fora, e participam nos desfiles da comunidade portuguesa, o que trazem? A caravela. Mesmo quem está fora há muito tempo sabe que essa história existe e dá-lhe uma identidade aos olhos dos outros.

ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
Não há um conflito entre a admiração pelo passado e a falta de autoestima que por vezes afeta os portugueses?
Esse complexo cultural que foi o nosso é relativamente recente. Não o vemos em épocas como a Idade Média. Porquê? Porque nessa altura estávamos inscritos numa cultura católica que era a do resto da Europa. Até à Reforma, toda a Europa pertenceu ao mesmo mundo, e nós, enquanto país, não estávamos isolados. Devemos o início dos nossos complexos à geração de 1870, que teve dificuldade em acompanhar o progresso científico. Passou a haver duas Europas: a que inventava e descobria e tinha grandes cientistas — os Descartes, os Leibniz e, antes de todos, o Galileu; e outra, a que inclui Portugal, que tinha uma atitude mais prática do que teorizante. Por outro lado, com a Reforma desenvolvemos uma desconfiança em relação à influência protestante e encerramo-nos na nossa própria casa. Veja-se aquela fatal e extraordinária Conferência do Casino, de Antero de Quental, em que ele questionou quem é que pensa e concluiu que não somos nós, não é Portugal e a Espanha; é a Alemanha, a França, a Inglaterra. Ora, isto era dito por gente que estava a pensar.
Ainda nos debatemos com este complexo?
Penso que não. Era bom que terminasse o tempo do nosso masoquismo. Este país anda tão contente de ter sido visto, uma vez pelo menos, no mundo inteiro! E agora, durante algum tempo, não vai ser esquecido que existe, que é visível, que tem pessoas extraordinárias e que não são arrogantes.
Voltemos ao livro. Escreveu que “na vida todas as faltas são faltas de amor”. É a isso que tudo se resume?
Mas há algum assunto mais importante neste mundo que não seja o da relação com o outro? Há pessoas misóginas, hipocondríacas, que dispensam aquilo que a Bíblia chama o ‘adjuvante’. A Eva era o adjutório do homem. Mas o adjutório faz parte, se não fizesse o mundo seria de uma tristeza infinita.
É um homem crente?
Esta é uma questão que, uma vez posta, não pode ter uma resposta. Porque é ‘a’ questão. Não concebo uma explicação do mundo que dispense a referência a uma ação transcendente. Nós figuramos como sendo de um ente que criou o mundo, e isso pode ser uma coisa infantilizante. Mas faz parte das nossas referências na tradição ocidental.
Concebe então um mundo criado.
Só mesmo um Deus poderia explicar o que aconteceu. Que palavra foi pronunciada. Essa é a questão para a qual não tenho resposta e em que a educação que tive pesa mais. Porém, sei muito menos hoje do que quando esse ensino era para mim claro como a verdade e absolutamente essencial como referência. Não há questão mais importante do que esta: ter uma resposta para o enigma do que existe e que essa resposta contenha ou não todo o sentido que podemos dar à vida e a nós mesmos.
Fez 94 anos. Como é olhar para o caminho que percorreu?
Há uma frase do Eclesiastes que diz que a nossa vida é como uma sombra que passa. Há muitos séculos, a Humanidade já tinha sobre si própria um sentimento certo, profundo, daquilo que é o destino não deste ou daquele mas da Humanidade inteira. Porque a única coisa que nos distingue é sermos conscientes. Não só morremos como temos consciência disso. Por conseguinte, não podemos fazer nada senão aceitar o que não está em nosso poder evitar.
Mas que imagens surgem ao ter nove décadas para lembrar?
Na minha idade, esse olhar retrospetivo incide particularmente sobre aquilo que durante este tempo todo fazia o sentido da minha vida e já não faz. Portanto, é um sentimento de aceitação e de ausência, de peso por aquilo que perdi e que é irrecuperável.
E a “paisagem da infância”, como lhe chamou, continua presente?
Está inclusa. É ainda um espaço sem aquele tipo de sentimento mais doloroso da vida, sem tragédia. Um espaço, como disse Pessoa, onde “ninguém estava morto” — o que é uma mentira muito poética. Os mortos da infância eram mortos que nós aceitávamos, eram mortes esperadas. Depois, a morte passa a ser vista de outra forma: quando outros morrem, é a nossa morte perspetivada que está inscrita no horizonte.
Tem algum arrependimento?
Sim, arrependimento de uma ordem que não é pública. Daquelas coisas em que falhámos, em que não estivemos à altura, que devíamos ter feito e não fizemos.
Gosta de pensar em si como alguém que faz pensar?
Gostava de fazer pensar era a mim mesmo. Bem preciso, nesta fase da vida em que estou. Não sei fazer outra coisa a não ser pensar.
Consegue explicar porquê?
Pensar é estar em diálogo com toda a informação que recebemos, desde o mais superficial aos mais altos referentes a que temos acesso — os romancistas, os pensadores, os criadores de todas as áreas. Somos muito modelados pelas coisas que lemos, e no meu tempo ainda estava presente a tradição romântica de leitura do mundo. Eu também tive autores que me levaram, e um deles chama-se Pessoa. Não encontro mais alta filosofia nos filósofos que leio, por mais complexos que sejam, do que encontro num poema de Pessoa. Problematizou tudo o que é problematizável e o resto. [O professor consulta o relógio. São horas. Porém, fica sentado, sem pressas. Ele, que um dia escreveu que todos os filósofos têm pressa.]
O que vai fazer hoje?
Daqui a pouco vou acompanhar o meu amigo Guilherme d’Oliveira Martins numa visita à exposição do Almada. Que é um senhor com quem pelos vistos partilho um pequeno episódio. Eu era assistente em Coimbra e fui convidado para fazer uma palestra sobre poesia no Centro Nacional de Cultura. Era uma sala modesta, mal iluminada, havia umas quantas pessoas, duas ou três conhecidas minhas, e lá fui eu falar de poesia diante daquela gente. No fim, viemos todos passear pelo Rossio. E a dada altura alguém se vira para o mais velho do grupo e diz: “Sr. Almada Negreiros…” Senti-me como numa história que me contaram na escola, de um caçador em África que tinha saído de noite, bêbado, e lutou contra alguém. No dia seguinte quis saber o que lhe tinha acontecido, e ao refazer o caminho percebeu que tinha morto um leão. Fiquei com esta impressão e só me queria meter pela terra abaixo, porque eu sabia quem era esse grande senhor mas não o reconheci.
Já reparou que alguém poderá dizer o mesmo em relação a si?
A quem tiver acontecido, não perde nada com isso.
Fonte:
Jornal Expresso