Leitura
Havia luz em uns instantes surgidos
na minha vida,
que a mesma vida apagava.
E a pobre realidade
era uma cinza…
…já nada me recordava
se, de entre ela, uma faúlha
não me queimasse os sentidos.
O fogo das queimaduras
é dor que nunca me passa!
E é esta que me ressurge
um pouco dessa luz-alma
de tantos momentos idos…
A inquieta luz, sempre de agora,
que ao mundo nada desvenda,
a mim diz certa verdade,
a chã naturalidade
nas coisas vãs da legenda.
Talvez ninguém me acredite,
e se ria,
quando grave eu me recite.
Mas recitar-me, cantar,
mesmo cansada a memória,
teria de acontecer:
é comigo,
bem viva enquanto eu viver,
a minha inútil história.
Edmundo de Bettencourt nasceu no Funchal em 1889. Sua obra poética é breve, circunscrita a três livros: Poemas surdos, O momento e a legenda e Poemas de Edmundo de Bettencourt, este último uma antologia saída com sua obra completa e prefácio polémico e histórico de Herberto Helder. Reconhece-se na poesia de Bettencourt originalidade imagética e mesmo pré-surrealista. Foi um dos fundadores da revista presença a que deu nome e que posteriormente abandonaria com Miguel Torga e Branquinho da Fonseca. Morreu em Lisboa em 1973.