Do novo normal

por João Miguel Henriques
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Estou em casa. Em linha. É assim que estranhamente passamos grande parte dos nossos dias. Acabo de sair de uma reunião virtual. Estamos todos muito felizes de nos podermos ter conhecido (ainda que só virtualmente, sorriso amarelo). Estamos muito contentes de poder colaborar neste projecto. Será maravilhoso, mas temos de ver se é possível (há sempre alguém que acrescenta). Ou então, conforme a variação preferida: se a pandemia nessa altura o permitir, se as coisas já estiverem melhor, se a nossa vida entretanto regressar à normalidade.

Normalidade. Já não me lembro bem. Há situações do passado que vejo em filmes e já me parecem transgressões perigosas. Fala-se agora do novo normal. Acho que é para nos habituarmos. Há uma passagem em The Handmaid’s Tale em que a monstruosa Aunt Lydia explica: “I know this must feel so strange, but ordinary is what you are used to. This may not seem ordinary to you now, but after a time it will. It will become ordinary.” É isso o novo normal? Um futuro normal, ainda demasiado recente para aceitar por completo?

Com colegas angolanos, brasileiros e húngaros rendemo-nos às evidências e cancelamos quaisquer planos de assinalar presencialmente em Maio o Dia da Língua Portuguesa. Um formato online tem também as suas vantagens, é mais fácil de organizar, permite-nos pensar em conteúdos mais ambiciosos, em desafiar convidados sem ter de orçamentar deslocações e estadias. Sorriso amarelo.

Estou em casa, em linha, de portátil permanentemente ligado. A floresta chama-me, mas há muita coisa a acontecer. Muitas pessoas escrevem muitas coisas. Partilham muitos conteúdos. O encantamento irresistível da floresta, do silêncio do bosque, dos cheiros da nova estação. Mas há muita gente a querer muitas coisas, muita gente ligada em permanência e a não deixar-me desligar.

E assim lá me ligo eu novamente para as aulas da tarde. Problemas técnicos. Tens o microfone desligado, não te ouço. Vou partilhar o meu ecrã, conseguem ver? Vou ter de desconectar-me mais cedo, professor, peço desculpa. Liga a câmara, por favor. Não consigo ligar a câmara. Deixa estar, não precisas de ligar a câmara. Reparo agora que há um nome na lista de inscrições que já há algum tempo não se liga a esta aula. Será que já desistiu desta farsa? Andará já pela floresta? Já longe de tudo isto? Penso na Marcha dos Pinguins, numa cena comovente em que há um deles que simplesmente desiste e abandona o grupo, pondo-se a caminhar sem rumo, noutra direção. Rumo à morte? Rumo à floresta? Para algum lugar também nós teremos de ir, ou então simplesmente esperar, como recomenda a atroz Lydia, que tudo isto se torne normal.

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