De máscaras a ventiladores. Como os museus se preparam para contar a história da covid-19

por LMn
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De máscaras a ventiladores, Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto está a recolher os objetos que vão um dia permitir contar a pandemia às gerações futuras. Abrir acervo à investigação é um objetivo.

Por Rui Frias DN

Por muito que a covid-19 pareça, por agora, um pesadelo sem fim à vista, há de chegar o momento em que a humanidade olhará para esta pandemia com o distanciamento histórico que só o tempo permite.

Um momento, talvez, em que um frasco de álcool gel deixe de fazer parte dos objetos obrigatórios de bolso e volte a ser remetido para as prateleiras mais escondidas de qualquer supermercado. Ou que as máscaras sejam de novo acessório de folia carnavalesca, e eventualmente nas épocas gripais, mas não peça essencial de indumentária diária. Um tempo em que os pais irão outra vez queixar-se das festas de aniversário sem fim na agenda social de filhos ainda no infantário, e em que a maioria das pessoas voltará a ignorar se os hospitais estão ou não a precisar de coisas básicas como ventiladores.

Sim, vai chegar o momento em que a atual pandemia será apenas uma história para contar. E, aí, como vão as gerações futuras olhar para este ponto negro na epiderme histórica? Que história vamos ser capazes de lhes deixar? E que objetos e documentos importa preservar para memória futura?

Estas foram algumas das inquietações que assolaram Rita Gaspar, curadora das coleções de Arqueologia, Etnografia e Antropologia biológica do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto (MHNC-UP). Ou não fosse esse “o instinto inato” de um curador de museu, diz.

Quando, há um ano, a pandemia “rebentou” nas mãos de todos, de uma forma tão avassaladora, Rita começou a pensar como iríamos guardar a memória deste “momento único nas nossas vidas”. E como os objetos que de repente se impuseram no nosso dia-a-dia iriam no futuro contar a história da covid-19.

Daí, germinou um projeto que, ao fim de um ano de pandemia, vai ganhando formas no interior do MHNC-UP, com a construção de um repositório “o mais completo e diversificado” possível, desde máscaras caseiras a viseiras criadas em impressoras 3D, luvas, testes, vacinas, ventiladores, cógulas, soluções médicas e tecnológicas ou materiais de comunicação e divulgação, entre outros.

A ideia começou no universo da própria academia em que o museu está inserido, “com o registo de como a Universidade do Porto começou a reagir àquele momento em que todos, sociedade, percebemos o que estávamos a viver e à necessidade de encontrar respostas que pudessem ajudar os profissionais de saúde na primeira frente de batalha”. Um momento em que todas as unidades orgânicas e centros de investigação da UP se esforçaram na recolha de materiais para abastecer os hospitais centrais da cidade (São João e Santo António), então com falta de equipamentos de proteção ou das necessárias zaragatoas para testes de diagnóstico da covid, por exemplo.

Daí, a recolha saltou para fora da academia, e até do país. Fomos atrás dos exemplos de resposta da sociedade. Local a local, quase rua a rua, todos estivemos a tentar encontrar soluções para o que estávamos a enfrentar. Depois do primeiro impacto, que foi a perceção de um problema de saúde, deparámo-nos com a falta de materiais e recursos para combater esta pandemia. E aí a sociedade organizou-se de forma espontânea no desenvolvimento de soluções tecnológicas e outros recursos para dar uma resposta, enquanto comunidade, a este tempo único das nossas vidas”, explica Rita Gaspar.

Contribuições vindas de Itália e até dos EUA

“Mais do que o registo dos diários da pandemia, do registo fotográfico do confinamento ou dos desenhos das crianças, o nosso interesse recaiu nesses objetos que contam a resposta da sociedade civil e do tecido empresarial, desde as máscaras sociais que foram feitas em casa até à empresa de cotonetes que alterou a sua produção para zaragatoas em tempo recorde, ou o centro de investigação que desenvolveu os testes rápidos”, esclarece sobre o âmbito desta coleção que foi procurando esses exemplos, no país e lá fora.

Nos EUA, por exemplo, Rita Gaspar encontrou, nessa primeira vaga, “uma empresa que deu resposta às dificuldades sentidas pela comunidade surda no acompanhamento da comunicação sobre a pandemia, com a produção de máscaras transparentes”.

Em Itália, a empresa Isinova – que na altura mais dramática da crise sanitária naquele país reaproveitou máscaras de snorkeling para adaptação aos ventiladores hospitalares, com a ajuda de uma válvula reproduzida por impressão 3D – disponibilizou os projetos do protótipo que distribuiu pelos diversos interessados em ajudar na produção.

O primeiro objeto, esse, chegou em maio: “uma das primeiras máscaras sociais homologadas em Portugal, da empresa Daily Day.” “Até agora não recebemos um não, as pessoas estão todas emocionalmente muito envolvidas e recetivas a contribuir para contar da melhor forma a história desta pandemia”, resume a curadora do MHNC-UP.

Até agora, “são mais de três dezenas de objetos”, com histórias para contar. Histórias de sofrimento, mas também de criatividade e de resiliência. “Como a dessa empresa [Daily Day], que inicialmente teve dificuldade em arranjar os clips que prendem as máscaras ao nariz, porque todas as produções estavam fechadas, e começou por usar aqueles arames de torção que servem para fechar embalagens, como as do pão”. Sobretudo, diz Rita Gaspar, “histórias que nos retratam essa dinâmica do trabalho em rede, de como a sociedade foi capaz de responder de uma forma muito orgânica e solidária”.

Os timings da história

De resto, que outras histórias deixará a pandemia para contar? “Essa é a grande pergunta. Ainda não conseguimos ter o distanciamento suficiente para perceber como vamos olhar para ela, para as narrativas que vamos querer e poder construir sobre a pandemia”.

Para já, tal como a própria covid-19, também esta coleção é um processo dinâmico em curso. Ainda há objetos por recolher, timings para respeitar. “Enquanto instituição cultural, sentimos que precisamos de registar o momento histórico, mas também não podemos atrapalhar o decurso do momento. Por isso esperámos alguns meses para contactar algumas pessoas. Por exemplo, ventiladores com uso hospitalar aportam histórias pessoais que os novinhos, acabados de sair da produção da FEUP, não têm. Queremos ter ambos na coleção, mas temos de esperar que esses hospitalares não sejam necessários”.

A partir de agora, revela a curadora, a coleção vai abrir-se também às contribuições da comunidade, “objetos que as pessoas considerem de interesse para ajudar a contar esta pandemia”.

Rita Gaspar acredita que esta será “a pandemia mais bem documentada da história” e que esse é um legado que devemos às gerações futuras. E que pode ajudá-las a melhor responder, também, às pandemias dos seus tempos: “Temos de pensar nas coleções dos museus também como espaços de revisitação. As coleções têm de ser constantemente estudadas e revisitadas pela comunidade científica, não servem só para estar fechadas numa vitrina e serem vistas pelo público. Por isso, pretendemos também disponibilizar este acervo à comunidade científica e académica, para a realização de estudos e trabalhos de investigação.”

A próxima etapa será trabalhar a divulgação destes objetos, “através de exposições, ou outros eventos”, acrescenta a curadora. “A recolha não foi logo feita a pensar numa exposição, mas, mais tarde ou mais cedo, teremos de o fazer”, diz, admitindo que “é uma dificuldade, ainda, perceber o momento certo e a abordagem certa para o fazer”.

Uma coisa parece óbvia, concorda: o mundo está desejoso de que esta pandemia passe a ser apenas “história” de museu.

rui.frias@dn.pt

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