Recomecei a tocar a guitarra clássica há dois anos, mesmo antes da pandemia, após cinquenta anos de só tocar rock e blues, às vezes em bandas. Mas já estava farto das limitações daquela música. Não quero dizer que a música popular não preste forçosamente; qualquer forma de música, até uma forma extremamente simples como o blues, que usa normalmente só três acordes, pode ser interessante, e emocionante, tocada por um mestre. No entanto, improvisar sempre com uma escala pentatónica menor pode ficar chato. De facto, mesmo os mestres do blues como BB King ou Muddy Waters repetiam-se muito.
Claro que, na música clássica, em geral, não se improvisa. Mas tocar com polifonia – o que significa várias vozes ao mesmo tempo, as vezes três – desenvolve não somente a técnica, como também a nossa apreciação para composições mais complexas. Quando nas revistas falam dos melhores guitarristas de sempre, costumam falar de Clapton, Hendrix, Page etc. Mas nenhum deles seria capaz de tocar as composições mais complexas de Albeniz ou Sor. E embora a complexidade não seja tudo na música, tem o seu lugar. É como comparar um soneto lírico com um poema épico. O soneto pode ser lindo, pode nos fazer pensar e sentir emoções fortes. Mas a complexidade do épico, ou dum drama, apresenta uma visão mais completa da existência.
Mergulhar-se numa obra de Bach ou Mozart, por exemplo, é fazer muito mais do que entreter-se; enquanto ouvir uma canção dos Beatles ou de Pink Floyd pode ser muito agradável, penso que para poucas pessoas seja uma experiência muito profunda, mas com os compositores clássicos, pode ser uma experiência espiritual, que nos eleva, que nos transporte à outra dimensão. Quando escuto os concertos de Brandemburgo, por exemplo, ou a sinfonia de Praga, sinto que estou na mente de Deus, e que todas as preocupações da música popular – o amor, o sexo, a traição, os ciúmes, o prazer, a fúria, e o desprezo – são irrelevantes. Existem, sim, mas são emoções infantis, indignos de uma pessoa madura. Afinal, o que conta é o transcendente, uma coisa difícil de explicar, mas absolutamente real. Sei que estou a simplificar. Pode-se fazer objeções – que, nas operas, por exemplo, o Mozart retratava precisamente essas preocupações da música popular. É verdade, e não é. Em Don Giovanni, por exemplo, o tema do libreto (que era de Lorenzo da Ponte, obviamente, e não do próprio Mozart) era a luxuria, a sedução, a infidelidade e a inconstância. Mas a música transcende esses temas mundanos, para não falar no clímax moralizador do drama, quando o Don Giovanni é levado para o inferno.
Reconheço também que há outras formas de música que têm essa dimensão transcendente, como o jazz, mas como muitos disseram antes de mim, o jazz é realmente a música clássica do século vinte. (E menciono neste contexto que, sem duvida não por acaso, o jazz começou a fascinar-me ao mesmo tempo, e ando a tentar aprender a tocar guitarra jazz também.)
O nosso mundo é cada vez mais estressante. Ouvir a música clássica é uma das coisas melhores que podemos fazer para ligar-nos à essência do universo.
Imagem em destaque: Gustavo Pimenta