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A merenda do Bom Deus: o mau gosto resulta em mau julgamento

Ensaio de Hamvas Béla – Tradução: Arnaldo Rivotti

Junho é o mês vermelho. Tal como maio é verde e agosto amarelo-dourado. Em junho as papoilas florescem. Vermelho é o Pentecostes, quando o Espírito Santo aparece na terra sob a forma de língua vermelha de fogo. É o mês dos frutos vermelhos: cerejas, ginjas, morangos, framboesas, groselhas. É um infindável deslumbre, pois esse vermelho é ávido e arisco. Estes frutos não lançam desafio algum, pelo contrário, há neles algo semelhante à pureza do riso. É vermelho delicado e pueril, a cor da primeira messe do ano.

Deve ser comido em junho. Para cerca de meio quilo de morangos completamente maduros, deve-se contar cem a cento e cinquenta gramas de açúcar de confeiteiro. A opinião mais consensual é a de que o melhor é dispor a fruta e o açúcar em camadas e espremendo um pouco os morangos, para que libertem mais sumo. Quando estiver pronto, vertem-se duzentos gramas de natas ácidas sobre eles. A quantidade pode ser ligeiramente aumentada ou reduzida, mas o exagero deve ser evitado. Muitos preferem usar natas, mas essas pessoas não percebem a essência dos sabores.

Junho não é um mês de açúcar pungente, mas de fruta suavemente fresca e ligeiramente acidulada. Usar natas é um desacerto. Mais tarde, para o final do mês, já é admissível usar as natas com morangos silvestres, e há quem não coma nada, mais além das natas com framboesas – especialmente com a compota de framboesas que acompanha o arroz-de-leite. O mau gosto resulta em mau julgamento, o que por sua vez leva a má conduta, por isso algo assim deve ser evitado.

Quanto ao modo de os preparar, há quem disponha os morangos, o açúcar e as natas ácidas em camadas, fazendo previamente um pequeno corte nos morangos. Outros deixam os frutos inteiros, cobrindo-os de natas ácidas para que escorra, dissolva o açúcar e extraia o sumo dos morangos. Uma bebida rosa acumula-se no fundo do pote, e o mais apropriado é comer os morangos, não com uma colher, mas sim bebê-los. É o final perfeito para uma merenda. O homem penitente põe os morangos com natas ácidas num frigorífico e arrefece-os de forma não natural. Devemo-nos insurgir contra essa prática com a maior firmeza possível.

Abaixo de uma certa temperatura, a fruta perde o seu sabor, tal como o vinho. A medida correta é a temperatura da adega. Na ausência desta, é possível colocar o recipiente (de preferência uma talha de cerâmica: os de metal devem ser evitados) num poço e deixá-lo descansar no interior por algumas horas.

O ideal é apanhar os morangos frescos pela manhã, prepará-los por volta das dez, e mantê-los num local fresco até às três e meia da tarde. Porque a altura clássica para saborear morangos com natas ácidas é quando o calor do meio-dia se esvanece e o ar começa a arrefecer, o que normalmente acontece após as três e meia.

O Bom Deus, ao acordar da sesta, come os morangos nesse horário. São colocados à sombra no terraço, com a nogueira  inclinando-se por sobre a mesa, e lá o Bom Deus come-os com uma colher de sobremesa, antes de tornar aos vinhedos.

Para quem não saiba, Deus é a obra mais suprema do universo, ou seja, um viticultor. Depois da merenda, Ele sai de barriga e espírito tranquilos, pendura a ráfia no cinto, coloca a tesoura de poda no bolso, pega na sachola e parte rumo às vinhas, para podar os rebentos irregulares, endireitar as cepas frouxas e capinar as ervas daninhas que encontra pela frente.

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Béla Hamvas (1897-1968) era um pensador húngaro dotado de uma sensibilidade intensa. No seu último livro, leva-nos pela mão numa viagem infinita através de oliveiras e campos de jasmim, traçando as estações das sementeiras e da colheita com a calma e a sabedoria de alguém que sabe decifrar a língua da abóbada celeste. Num estilo simples, digamos cristalino, ele diz-nos que a realidade, com todo o seu peso, tende para a ilusão naquele ponto do espaço onde os números vivem. Porque, com o sinal matemático que expressa o número, os quilos de matéria que a realidade contém são convertidos num conceito abstrato. Desta forma, as nossas perceções das cores e sons da natureza podem ser contadas como se as cores fossem números visíveis e os sons fossem números audíveis. Com a profundidade da sua escrita, Hamvas consegue uma forma poética e bela de nos transportar para o brilho da criação, para o calor primordial, aquela temperatura que hoje se conserva no além. É sempre uma boa altura para abordar este pensador que foi capaz de mostrar os aspetos mais profundos do mundo orgânico, como mais ninguém.

HAMVAS BÉLA:

A JÓISTEN UZSONNÁJA

Június a piros hónap. Mint ahogy a május a zöld és az augusztus az aranysárga. Júniusban nyílik a pipacs. Piros Pünkösd, amikor a Szent Szellem a földön piros lángnyelv alakjában megjelenik. A piros gyümölcs hónapja, cseresznye, meggy, eper, málna, ribiszke. És amin nem lehet eléggé csodálkozni, ez nem a sóvár és megvadultl piros. E gyümölcsökben semmi kihívó nincs, ellenkezőleg, valamennyi csupa nevetés. Derült és gyermekpiros ez, az év első termésének színe. Júniusban kell enni. Az ember körülbelül fél kiló teljesen érett eperre számítson tizenkét-tizenöt deka porcukrot. Az általános vélemény, hogy a gyümölcsöt és a cukrot legjobb rétegesen elhelyezni és az epret kicsit megtörni, csak azért, mert így bővebb levet ereszt. Mikor ez elkészült, két deci tejfölt kell ráönteni. A mennyiség lehet valamivel több vagy kevesebb, ízlés szerint. A túlzástól tartózkodni kell. Sokan a tejszínt részesítik előnyben, de ezek az emberek az étel lényegét félreértik. A június nem az átható cukor, hanem a gyengéden friss és enyhén savas gyümölcs hónapja. A tejszín alkalmazása tévedés. Később, a hónap végén a szamócához már megengedhető, és vannak, akik a málnához, főként a tejberizshez készített friss málnakompóthoz nem hajlandók mást enni, mint tejszínt. Ez így helyes, de a tejszín az eperhez hibás ízlésre vall. A hibás ízlés hibás értékeléshez, ez pedig hibás életrendhez vezet, ezért ilyesmit kerülni kell. Az elkészítés módja lehet, hogy az ember egy réteg epret, egy réteg cukrot és egy réteg tejfölt helyez el egymás fölött, és a gyümölcsöt éppen csak hogy egy kicsit megnyitja.

Mások a gyümölcsöt épen hagyják, és a tejfölt a tetejére öntik, hadd szivárogjon le, oldja fel a cukrot és vonja ki az eper levét. Az edény fenekén rózsaszínű ital gyűlik össze, s a leghelyesebb, ha az ember, miután az epret megette, úgy ahogy van, nem kanállal eszi meg, hanem megissza. Ez az uzsonna tökéletes befejezése. A bűnbeesett ember a tejfölös epret jégszekrénybe teszi és természetellenesen lehűti. Ez ellen a leghatározottabban tiltakozni kell.

Bizonyos hőfokon alul a gyümölcs ízéből éppen úgy veszít, mint a bor. A helyes mérték a pincehőfok, vagy ami ugyanaz, az ember az edényt, tulajdonképpen az eszményi a cserépedény, a fém elvetendő, a kútba ereszti és néhány óráig ott tartja. Legjobb az epret délelőtt a friss reggeli szedésből, délelőtt tíz óra tájban elkészíteni és délután három-fél négyig hűvös helyen tartani. Mert a tejfölös eper elfogyasztásának klasszikus ideje, amikor a déli hőség már fölengedett és a levegő enyhülni kezd, vagyis fél négy. A Jóisten, amikor ebéd utáni szundikálásából felébred, az epret ilyenkor eszi uzsonnára. Odateszi az árnyékos teraszra, az asztal fölé a diófa hajlik, ott eszi meg kiskanállal, mielőtt ismét a szőlőbe megy.

Mert aki nem tudná, a Jóisten a világon a legmagasabbrendű munkát végzi, vagyis szőlőműves. Uzsonna után megnyugodott gyomorral és kedéllyel a rafiát övébe dugja, a metszőollót zsebre teszi, a kapát megfogja és kimegy a tőkék közé, hogy a szabálytalan hónaljhajtásokat levagdossa, a lazult vesszőket megigazítsa, és ahol gyomot talál, azt kikapálja.

 




Passeio histórico pela avenida principal de Pest: sobre o livro de Judit N. Kósa Nagykörút

Qual foi a primeira casa da avenida? Quem construiu aqui e quais eram as condições de um apartamento aqui? Há quanto tempo circula o elétrico n.º 6? O livro premiado de Judit N. Kósa, Nagykörút, lança luz não só sobre estas questões, mas também sobre o grande dilema de Tafler.

Não foram publicados muitos livros sobre a via mais obscura, o Grand Boulevard, por incrível que pareça: um pequeno volume de Rezső Ruisz na série Monumentos de Peste, em 1960, um pequeno volume de bolso intitulado Passeios – Na Linha do Elétrico n.º 6, em 2008, e depois o livreto de passeio casual Budapest 100, intitulado Grand Boulevard – Redesign, em 2016, quando o boulevard foi o tema de um popular fim de semana turístico. O livro de Judit N. Kósa é o resumo mais completo e sério do Grand Boulevard até à data. De acordo com as medidas da própria autora, pesa 1,1 kg. Tem 400 páginas, com pelo menos esse número de fotografias e, claro, muito material de leitura.

Na primeira metade do livro, há capítulos sobre a história da construção e os vários temas do boulevard no seu conjunto, como a restauração, o comércio, a habitação, os transportes e a história do cinema, e na segunda metade, percorremos o percurso de 4,5 km de um troço do boulevard ao outro, quase de porta em porta, com Judit N. Kósa como nossa guia cintilante. A autora confiou dois capítulos do livro a colegas escritores, encarregando dois excelentes investigadores de Budapeste de os escreverem: Noém Saly, para passar em revista os antigos restaurantes da avenida, e Tibor Legát, para traçar a história dos transportes.

No primeiro capítulo analítico, analisamos a história turbulenta da construção da avenida, e não podemos negar a nossa simpatia por Ferenc Reitter, que foi o primeiro a formular a visão de uma via que circundasse Peste, rompendo as áreas semi-construídas dos subúrbios.

Mas ele estava a pensar numa via fluvial.

Em 1865, publicou na imprensa o seu grande projeto de um canal navegável ao longo da atual avenida. Judit N. Kósa relata, com uma sensibilidade política subtil, a erosão gradual do conceito de canal, que inicialmente suscitou grande entusiasmo. Em vez disso, em 1868, surgiu “inesperadamente” um novo conceito de cruzeiro pelo canal, inspirado no de Paris, apoiado por uma força superior a Reiter, presumivelmente o Primeiro-Ministro Gyula Andrássy. O próprio Reiter deve ter visto a futilidade da sua luta: após o fracasso do seu próprio projeto, começou a trabalhar no projeto da avenida com uma humildade e determinação exemplares. Agora era membro do Conselho de Obras Públicas da Capital, criado em 1870, ao lado de Lajos Lechner, responsável pela elaboração do plano. Talvez tenha sido uma satisfação para ele o facto de o traçado ter seguido mais ou menos a sua ideia.

Também podemos ver em pormenor como o novo traçado atravessou edifícios antigos, quarteirões e outros obstáculos, ou como seguiu o curso de ruas existentes.

Muitas pessoas estavam céticas quanto à ideia de uma via metropolitana que atravessaria os subúrbios industriais de má reputação a norte do centro da cidade e os bairros rurais a leste e sudeste. Durante algum tempo, o ímpeto da construção estagnou, mas a avenida foi finalmente construída em 1906. Qual foi a primeira casa da avenida? – O autor confronta-nos com esta questão fascinante. Acontece que, numa competição renhida, o primeiro edifício a ganhar não foi o da avenida, mas o do lote da Rua Miksa 21 (atual Rua Osváth), mas devido ao ritmo dinâmico das expropriações e demolições ao longo do traçado planeado, quando este ficou concluído, encontrava-se na Erzsébet körút – o local onde hoje se encontra o Teatro Madách, em 1872.

As três casas na József körút, construídas no lado par da avenida entre as ruas József e Baross (depois Stáció) (József krt. 46-48-50), formando uma fila contínua e harmoniosa de casas (a primeira fila de casas na avenida), constituíram um exemplo para as casas construídas posteriormente, já em 1873. É diferente o facto de este belo e precoce exemplo de harmonia e enquadramento não ter sido muito seguido pelos construtores posteriores da avenida. Nem a unidade estilística dos quatro palácios do Oktogon, que, aliás, também estão entre os primeiros, construídos em 1874.

Concluído na sua totalidade em 34 anos, entre 1872 e 1906, o boulevard foi uma realização fantástica, mas não obteve uma aclamação unânime.

As avenidas Oktogon e Teréz em direção à estação de Nyugati, numa fotografia tirada por volta de 1897. Foto de Tibor Somlai / Fortepan

Os críticos, como se pode ler, sentiram falta dos terraços, dos edifícios públicos e da limpeza dos cruzamentos das ruas principais. Muitos também criticaram o desequilíbrio estilístico da avenida, a sua ornamentação excessiva. Estas críticas são justificadas, mas apesar de todas as críticas, a avenida provou ser muito habitável. Judit N. Kósa cita o artigo de Gábor Preisich de 1964, que foi escrito do ponto de vista da posteridade: “O rácio de espaço aéreo entre a altura dos edifícios e a largura da estrada é agradável, as curvas e contracurvas da estrada proporcionam a variedade necessária. O desenho arquitetónico das casas ao longo da estrada, independentemente de quantas estão agora classificadas como monumentos, reflete os princípios arquitetónicos da época e é de alto nível para os padrões europeus.”

Quem construiu aqui? – é a pergunta que figura num dos títulos dos capítulos.

A resposta geral é que a rotunda foi construída por capitais privados, maioritariamente a crédito. Com, claro, grandes investimentos em serviços públicos, como o enorme coletor de esgotos que passa por baixo da estrada e o coletor de água. Foi um dos melhores investimentos da altura para comprar terrenos baratos aqui a tempo, construir e tornar-se proprietário com muitos anos de benefícios fiscais. Aqueles que podiam, faziam-no. Todos beneficiaram, os bancos, os investidores e, claro, a cidade. O livro dá-nos uma boa visão da composição social dos construtores, o que é importante, por exemplo, para compreender como a avenida difere da elegante e aristocrática Avenida Andrássy. A aristocracia histórica não construiu muito na avenida, sendo as poucas exceções as famílias Batthyánys, Károlyi e Nádasdy. Aqui foram construídos cortiços e os construtores pertenciam principalmente às classes média e média alta. Toda a diversidade de ocupações será revelada na segunda metade do livro, à medida que percorremos a avenida.

Algumas famílias, no entanto, são destacadas: três exemplos típicos, três famílias, recebem atenção especial e um capítulo separado na primeira metade do livro, sob o título do capítulo mencionado acima. Gostaria agora de citar a história do casal de investidores Tafler-Ehrenfeld. Estes dois cidadãos de Pest colaboraram na aquisição de uma casa e estavam também ligados por laços familiares. Segundo as contas do autor, em 1900, eram proprietários de vinte e oito casas, em conjunto e separadamente (Kálmán Tafler possuía cinco na avenida e Ignácz Ehrenfeld quatro, no todo ou em parte). Eram mestres da criação de riqueza discreta, sem escândalos e sem publicidade. Quando o nome de Ehrenfeld foi mencionado no parlamento, em 1909, entre os proprietários das maiores rendas domésticas, Tivadar Batthyány ficou espantado: “Nunca vi este Ignácz Ehrenfeld”. Foi particularmente difícil para a posteridade dar sentido à sua teia de propriedades e interesses familiares. Judit N. Kósa resolve o grande dilema dos Tafler com a bravura de uma verdadeira historiadora.

Na altura, havia não um, mas dois (!) Tafler Kálmáns em Budapeste, e ambos tinham um parente chamado Ehrenfeld.

Até à data, a historiografia local não conseguiu separar os dois Tafler. Aqui, graças em parte à base de dados Arcanum, uma importante fonte de investigação, conseguiram-no.

Há um capítulo separado sobre as mudanças na habitação e no estilo de vida da avenida, interpretando ainda mais a avenida como um fenómeno. Por exemplo, sobre as condições de habitação, revela que em 1906 mais de metade das habitações de Budapeste eram apartamentos de um quarto, mas aqui os apartamentos de 2-3 quartos eram a esmagadora maioria. Além disso, havia alcatifa nas escadas, pelo menos até ao primeiro andar, água corrente, gás e esgotos nos apartamentos e, mais tarde, iluminação elétrica. As casas de banho e os autoclismos eram inicialmente um luxo. Para além do portão, os confortos da vida incluíam uma varredura de rua quase militar, a varredura diária do pavimento pelo porteiro, várias casas de banho públicas conhecidas como o “elétrico verde” e as muitas lojas, cafés, restaurantes, cinemas e teatros que tornavam a vida aqui tão agradável. Na analogia espirituosa do autor, a avenida funcionava também como um centro comercial que se estendia horizontalmente.

Num capítulo sobre hospitalidade, Noémi Saly, um autor convidado, guia o leitor desde o Luxor, na Szent István körút, até ao Hébel Café, na Ferenc körút, com uma riqueza de pormenores culturais e históricos.

Com outro autor convidado, Tibor Legát, apanhamos um elétrico puxado por cavalos, depois mudamos para um elétrico e entramos num autocarro para traçar a história dos transportes públicos na avenida. Hoje em dia, é quase inacreditável que, durante muito tempo, os transportes públicos na avenida tenham sido o resultado de uma luta entre duas grandes empresas (a BKVT, que operava os elétricos castanhos, e a BVVV, que introduziu os elétricos amarelos), com a estação de Nyugati quase como linha de demarcação. Em 1900, se se quisesse viajar ao longo do percurso circular, era necessário mudar em Nyugati para um comboio da companhia oposta e continuar a viagem. Esta situação manteve-se mesmo depois de 1918, quando as duas companhias deixaram de existir e os transportes públicos passaram a ser geridos por uma única empresa. A linha mais famosa da avenida, a linha n.º 6, funcionou a partir de 1910, mas apenas entre Nyugati e Boráros tér, até 1941, altura em que foi alargada até Széll Kálmán tér e, a partir de 1959, até Móricz Zsigmond körtér, na outra extremidade.

E depois de tudo isto, na segunda metade do volume, começamos realmente a digressão. O objetivo aqui já não é a apresentação temática, mas a exploração livre e pedestre. As casas contam uma história atrás da outra, tecendo um conto colorido. Construtores e arquitetos, habitantes famosos, histórias memoráveis emergem por detrás das fachadas para ganhar vida por algumas linhas. E vemos desenrolar-se esta longa e colorida tapeçaria, com 170 páginas para percorrer. Quem, o quê, poderíamos destacar desta multidão extremamente colorida? Gustav Mahler, Mór Jókai, Blaha Lujza, Klára Küry, István Örkény, Jancsi Rigó, Ferenc Molnár, Zoltán Latinovits, para citar apenas alguns dos grandes nomes. Encontramos a maior parte dos antigos construtores, incluindo aristocratas, novos proprietários de terras ricos, mas sobretudo a classe média – de industriais, comerciantes, médicos, arquitetos e advogados a talhantes, fabricantes de café, tipógrafos, funileiros e fabricantes de pão de gengibre.

Ou seja, os Weisses de Csepel, os moleiros e cervejeiros, os Haggenmacheres e os destiladores Gschwindts, os fabricantes de tijolos Drasches, os comerciantes de produtos Herczogs, os comerciantes de gado Lőwy e o comerciante de ótica Ferenc Hopp, construíram aqui. Dos maiores proprietários de terras János Ráth, Jakab Sváb, Henrik Schossberger. Da ordem dos médicos, Frigyes Korányi, Izidor Weisz, Lajos Szelényi (Stessel) e Ferenc Molnár, pai de Mór Neumann. Entre os advogados, Károly Baumgarten e Zsigmond László. Antal Schöja, Ferenc Szabó e Edéné Hebelt, que fizeram fortuna no sector da restauração e do café. E houve muitos arquitectos que não só desenharam para outros, mas também construíram aqui para si próprios: Bertalan Gaál, Alfréd Wellisch, Zsigmond Quittner, Gusztáv Petschacher, Vilmos Freund, Adolf Feszty, Rezső Nay, Muki Strausz e muitos outros. O autor chama a atenção para a relação persistente entre alguns construtores e arquitetos: por exemplo, o facto de Henrik Schmahl desenhar habitualmente casas para a família Politzer, enquanto a família Sváb confiava em Vilmos Freund.

Depois, objetos famosos na avenida, que já não existem: o velho e infame clube noturno New World ainda existia quando o Vígszínház foi construído, a “torre das bananas” numa ilha de pavimento em Nyugati, a primeira lâmpada da avenida num telhado em Oktogon (estava em funcionamento desde 1927!), a estátua de Jenő Rákosi na pequena praça em frente ao New York Café.

Temos até algumas jóias da velha gíria da avenida, como o já mencionado “elétrico verde” (casa de banho pública), “universidade de fios” (escola de têxteis para mulheres) ou “Kurvaleria” (café conhecido pelas suas senhoras). E por falar em linguagem, para além da informação fantástica, a grande virtude do livro é que, para além das suas pretensões académicas, é também escrito com uma espécie de espírito pestiano, com uma piada subtil em quase todas as páginas.

As últimas páginas do livro são confissões pessoais, uma reminiscência libertada. Um punhado de confettis coloridos de memórias de colegas jornalistas, amigos e estudantes. Prensas, praças, apartamentos, lojas e pessoas antigas ganham vida num “tom amanteigado”. É aqui que a nostalgia, a relação afeciva com a digressão, ganha o seu maior espaço. O testemunho pessoal do autor limita-se às notas de rodapé. Quem ainda não sabia que ele próprio tinha crescido no cruzeiro e que, por isso, estava a escrever sobre a sua terra natal, pode aprender com isto.

Para quem gosta, este livro é uma grande dose de amor ao Circuito.

Cs. L.

Original aqui

 

Foto de abertura: o cruzamento da Nagy körút com a Rákóczi út, visto da atual Balha Lujza tér em 1898. Fotografia de György Klösz. Fonte: Fortepan / Arquivo Municipal de Budapeste. Referência de arquivo: HU.BFL.XV.19.d.1.08.146




O Infante D. Henrique na história e na arte – diário de viagem de Éva Bánki a Portugal (Parte 4)

Por Éva Bánki

O navegador Infante D. Henrique (1394-1460) é uma das figuras mais enigmáticas da história europeia. Nasceu numa família onde a maioria das pessoas se destacava na literatura, escrevendo tratados, poesia e versos.

Henrique O Navegador deve ter sido um homem reservado, que não revelava os seus sonhos, desejos e desígnios ao público através de meios artísticos.

O Infante D. Henrique era um verdadeiro “suplente” ou abjugado, com poucas hipóteses de suceder ao trono português ao lado dos seus vigorosos irmãos. Como é que um príncipe que não se interessa por mulheres (era supostamente virgem) nem por poesia se ocupa? Portugal é um país pequeno, sem grandes províncias como a nossa Transilvânia, longe do centro, onde os príncipes podem “exibir-se”. Henrique recebeu o “mar” dos seus irmãos, ou seja, o direito de organizar campanhas para sul.

O que é que levou o Infante D. Henrique a avançar? Queria ele um reino independente em África ou nas Ilhas Canárias? Seria movido por uma inquietação de carácter, como os cavaleiros em busca do Graal, os heróis dos contos dos cavaleiros? Queria derrotar o Islão? Queria organizar uma cruzada que envolvesse o misterioso padre João em África? Andava atrás dos fabulosos tesouros do Oriente? O Infante D. Henrique organizou muitas expedições, manteve sob controlo as viagens de descoberta portuguesas, mas ele próprio não viajou muito, ao contrário do seu irmão, o Infante D. Pedro, que de facto agarrou o mundo pela nuca e foi a Bizâncio, a Inglaterra e à corte húngara de Segismundo do Luxemburgo.

Suposto retrato do Infante D. Henrique (ao centro) no retábulo alado de São Vicente do pintor português Nuno Gonçalves (século XV). Reproduzido de: Wikimedia Commons

Terá o Infante D. Henrique sido apenas um amante platónico do oceano? Sem esperança, com saudade, com desejo…? É óbvio que o horizonte infinito o fascinava, mas não há registo de que ele próprio quisesse navegar.

Pouco se sabe sobre este homem carismático que fez da exploração uma causa nacional em Portugal. Não é verdade que tenha fundado uma escola náutica em Sagres, mas coordenou cruzeiros durante toda a sua longa vida. Povoou os Açores e os seus navios chegaram a Cabo Verde. As suas expedições exploraram a costa da África Ocidental, chegando até ao Golfo da Guiné e foi graças aos seus esforços que, trinta anos após a morte do Príncipe, os navios portugueses, que se dirigiam para sul, conseguiram contornar o Cabo da Boa Esperança. Henrique colecionou mapas, convidou cartógrafos para a sua corte e formou uma geração de excelentes navegadores. Foi também durante a sua vida que foi desenvolvida a caravela (um tipo de navio adequado para longas viagens marítimas).

Tudo isto não deve ter sido barato. Onde é que o príncipe terceiro filho de um pequeno país pobre, uma “reserva”, foi buscar o dinheiro para tudo isto? É evidente que, ao fim de algum tempo, estas viagens eram rentáveis, mas onde é que ele foi buscar inicialmente o capital para lançar estas explorações?

Convento de Cristo em Tomar. Foto de Shutterstock/Joaquin Ossorio Castillo

O Infante D. Henrique era o Grão-Mestre dos Templários portugueses, a Ordem de Cristo. Que recursos (portugueses? europeus ocidentais?) poderia ter nessa qualidade é assunto para teóricos da conspiração e investigadores ponderarem… Em Portugal, é um facto, os Templários não foram banidos, apenas rebatizados e foi assim que se espalhou a lenda de que o Santo Graal estava guardado no seu mosteiro em Tomar… E onde o Santo Graal está escondido, ninguém tem de se preocupar com dinheiro…

O Infante D. Henrique continua a ser uma instituição nacional: é um modelo para o esoterismo, o nacionalismo português, os adeptos incondicionais do globalismo. Para não falar do facto de a sua personalidade reservada e “misteriosa” ter comovido poetas de todas as épocas.

O próprio Henrik o Navegador não gostava de viajar, mas no século XX chegou à Hungria, mais concretamente à Transilvânia. O poeta português, sonhando com uma distância inatingível, foi escolhido por um grande poeta da Transilvânia, Ferenc András Kovács, para ser o seu alter-ego. O que não é de admirar. A ambição do príncipe Henrik, misturada com a timidez, tem algo de humano.

Todos nós queremos muito viajar, mas não nos atrevemos.

O poema “Admoestações do Infante D. Henrique” é uma curiosa criação da personagem húngara: nele, o príncipe português admoesta Andrés da Costa (pergunto-me quem será o autor do poema, não o autor do poema, mas o infante D. Henrique). Será o autor do poema, Andrés Kovács?) para os perigos da navegação. A palavra “admoestação” soa-nos familiar, a nós, leitores húngaros, pois homens sérios e com autoridade, como Kölcsey ou Santo Estêvão, costumavam admoestar os mais jovens.

O Padrão dos Descobrimentos, nas margens do rio Tejo, em Lisboa. Foto de Shutterstock/Tsuguliev

O mar do poeta da Transilvânia András Ferenc Kovács é o verdadeiro mar húngaro, um lugar perigoso, corrupto, quase submundo: os destroços “esperam aqui” até se tornarem “o ibikoko do vento”, “as hastes sinuosas de Satanás”. Nenhuma pessoa sã e prudente desejaria entrar neste antro horrível do subconsciente, do desejo de morte e da sexualidade desenfreada.

O mar era temido pelo “homem ilustre”, o Príncipe Henrique, mas é claro que ele não conseguiu escapar ao seu destino. Navigare necesse est?

 

Como ele diz ao seu discípulo:

 

“…eu também não fui para o mar, mas como se fosse

Estava preso com pedras

ouvia-as a empurrarem-me para lá

“os remoinhos eram musicados, as sereias puxavam-me

as orquestras das profundezas são as orquestras”.

 

Ninguém consegue escapar à atração do mar.

 

Leia as três primeiras partes do diário aqui, aqui e aqui.

 

Na foto de abertura, uma secção do Padrão dos Descobrimentos em Lisboa, com uma estátua do Infante D. Henrique em frente. Foto de Shutterstock/Visual Cortex

Fonte: kultura.hu




Estilo manuelino, arte atlântica – diário de viagem de Éva Bánki a Portugal (Parte 3)

Por Bánki Éva

Devemos tentar absorver o maior número possível de influências? Ou devemos esforçar-nos por ser autónomos? Como húngaro, não é fácil responder a estas perguntas. O auto-abandono total e o isolamento total conduzem igualmente ao suicídio intelectual, mas por vezes vale a pena distanciarmo-nos um pouco dos grandes centros culturais e procurar caminhos separados.

Os séculos XV e XVI foram um regresso febril à Antiguidade, com o humanismo a triunfar em quase toda a Europa Ocidental. A expressão “triunfante” não indica, evidentemente, uma espécie de controlo ideológico, mas apenas uma tendência. É sabido que Leonardo da Vinci, por exemplo, era quase completamente indiferente ao passado e à Antiguidade, mas esta atitude deve ter sido bastante excecional na Itália renascentista.

Em Portugal, pelo contrário, era bastante comum: aí, no século XV, prevalecia um estilo e um sentido de vida diferentes do humanismo, a que poderíamos chamar “estilo atlântico” ou, depois de D. Manuel, “manuelismo”. Num país em plena febre de descobertas, os artistas inspiraram-se não nos ídolos antigos, mas no mar e nas viagens. Mesmo nas igrejas, encontramos motivos marinhos, cordas esticadas, velas ondulantes, conchas, caranguejos, todo o tipo de “maravilhas marinhas”, frutos e flores tropicais.

O estilo manuelino distingue-se do renascimento europeu não só pelos seus temas. A família real portuguesa exerceu também uma forte influência na vida intelectual. Neste país pobre e pequeno, não existiam “mecenas burgueses”, pelo que os reis e príncipes reais tiveram uma grande influência na arte da época como encomendadores, criadores e idealizadores. O rei D. Duarte foi um dos melhores prosadores da era atlântica, obcecado pelo globalismo, o Infante D. Henrique foi um verdadeiro ídolo que cativou a imaginação dos artistas ao longo dos tempos, e o seu irmão, o Infante D. Pedro, não só foi um viajante lendário e o herói de um romance de cavalaria bastante estranho, mas também um escritor e tradutor por direito próprio.

O mosteiro dos Jerónimos, construído em estilo manuelino. Foto de Wikimedia/Marshall Henrie

Mas mesmo assim, esta época atlântica não é aristocrática. Os artistas mais importantes da época eram autodidatas de origem popular, como Fernão Lopes, talvez o melhor historiador do final da Idade Média e Gil Vicente, que também escrevia em castelhano e que passou de artesão da corte portuguesa a dramaturgo e intelectual de renome, independente dos centros culturais humanistas.

Esta “excentricidade” cultural (porquê o latim?, pensavam eles, uma vez que o português seria em breve o “latim” do mundo) era obviamente inspirada por uma febre de descoberta. Na ausência de uma burguesia séria, a família real e o próprio Estado feudal seriam os maiores empreendedores capitalistas – e a bordo do navio, todos eram necessários: pequenos, grandes, pobres, ricos: a “missão atlântica” não podia ser cumprida sem comunidade. A dramaturgia, as pinturas e as crónicas portuguesas da época tentam captar esse “todos”, essa multidão, balançando de um lado para o outro, entusiasmada ou relutante.

Parece que é precisamente esta “excentricidade” artística que mais precisa de comunidade. A mensagem destas obras é clara: a missão atlântica, a exploração do mundo, não pode ser realizada sem a unidade da sociedade.

Em Lisboa, o terramoto de 1755 destruiu muitos edifícios de estilo atlântico, incluindo o Palácio do Rei D. Manuel. Se quiser ver o que é considerado o mais nobre, o mais português dos estilos, deve fazer uma peregrinação a Belém.

Não é longe, o pequeno comboio leva-nos até lá a partir de Lisboa. A Torre de Belém, uma caixa de joias branca como a neve, quase desaparece entre a multidão de turistas, casais apaixonados e lisboetas à procura de ar fresco. Esta bela e esguia torre é um memorial dos marinheiros que aqui rezavam antes da sua longa viagem marítima, que os levava em procissão desde a baixa de Lisboa até ao porto de Belém. Tudo isto sabendo que a maioria deles não regressaria a casa durante a maior aventura das suas vidas.

No Mosteiro dos Jerónimos, junto à Torre de Belém, podemos continuar a admirar o deslumbramento da imaginação dos artistas da época. Este templo fantástico é como um navio subaquático, só que as conchas, as cordas e os leques marinhos foram domesticados em rendas arejadas sob os cinzéis dos artistas. Rendas brancas como a neve, uma visão leve e de fada.

O estilo atlântico é mais apelativo pelo seu carácter lúdico, inventivo, fresco e otimista. Quase nos sentimos a “navegar” quando passeamos entre os edifícios manuelinos.

Permanecemos jovens enquanto navegamos.

Pode ler as duas primeiras partes deste relato de viagem aqui e aqui.

Na imagem de abertura, a Torre de Belém. Foto de robertharding via AFP/Alexandre Rotenberg

 

Fonte: kultura.hu




Como começar a conquistar o mundo? – diário de viagem de Éva Bánki a Portugal (Parte 2)

Para saber mais sobre a história dos descobrimentos, temos de viajar até à capital, Lisboa. Foi a partir daqui, no coração do reino, que os exploradores partiram para as costas de África.

Sabemos, pelos seus poemas medievais, que os portugueses sempre tiveram uma relação afetiva com o mar. Mas porque é que foi preciso esperar pelos séculos XV e XVI para sentirem que tinham uma missão “além-mar”? Após a expulsão dos árabes, os portugueses ficaram obviamente sem um objetivo e sem nada para fazer. Mas o ideal das cruzadas, o desejo de descobrir parentes cristãos, permaneceu profundamente enraizado nas suas almas.

Pai, filho, irmão, parente – o homem medieval tinha tendência para pensar o mundo em termos de laços familiares. A maior viagem de exploração do reino húngaro medieval, a expedição de Juliano, tinha também por objetivo encontrar “parentes”. Imaginem que, durante mais de trezentos anos, não se esqueceu que os nossos irmãos e irmãs do leste ainda estavam vivos! A maioria dos habitantes da bacia dos Cárpatos deve ter sentido que lhes “devíamos” alguma coisa.

Os portugueses não ficaram imunes à febre da “procura de parentes”. Procuraram nos céus João Baptista e o seu país misterioso. Por terra e céu, por mar e terra. Não foram só os portugueses que o procuraram, mas quase toda a Europa – e foram os portugueses que o encontraram: o governante abissínio (etíope) era aquele que “reconheciam” como o lendário rei-sacerdote dos contos medievais.

Representação de João, o Sacerdote, no trono, num mapa da África Oriental do atlas de Diogo Homem (cerca de 1555-59). Foto: Wikimedia/British Library

É claro que os portugueses não estavam apenas a perseguir um conto medieval através de mares e terras desertas. O “Frei João” – se fosse tão poderoso como as lendas sugerem – teria sido capaz de unir forças com ele para lançar uma operação total contra o Islão que estrangulava a Europa. A sorte do pequeno Portugal teria sido reforçada por uma tal aliança.

Estas aspirações de grande potência talvez não fossem estranhas ao reino húngaro, que olhava para leste. Hoje sabemos que a maioria dos húngaros permaneceu no Leste. Se tivéssemos conseguido aliar-nos a eles, os húngaros poderiam ter sido a principal potência da Europa Oriental. Essas aspirações, se é que existiam, foram definitivamente anuladas pela invasão tártara. Os húngaros do Leste foram varridos pela maré tártara e o Reino da Hungria ficou enfraquecido.

Mas, para além dos sonhos de grande poder, havia obviamente outras razões para que Portugal dedicasse quase todos os seus recursos (sem precedentes para a época!) às descobertas. Durante a maior parte da sua história, o país esteve dependente da importação de cereais. Os reis portugueses eram tão pobres que nem sequer podiam cunhar dinheiro. Sendo pequenos e insignificantes, quase não tinham voz ativa nos assuntos da Europa. Além disso, o seu “irmão mais velho”, Castela (mais tarde Espanha), isolava-os dos mercados e da influência europeia.

Os portugueses sentiam que só o mar estava aberto para eles – monopolizar o comércio de especiarias era a única solução para os seus problemas.

Estamos no parapeito do Castelo de São Jorge, o palácio real medieval português, e admiramos a vista panorâmica do rio Tejo a desaguar no oceano. É nestas salas que os reis portugueses sonhavam com a conquista do mundo. Foi aqui que planearam expedições de espionagem para explorar o comércio asiático de especiarias e expedições de reconhecimento para explorar a costa de África. Foi nestas salas que Cristóvão Colombo, o capitão genovês que queria chegar às Índias por outro caminho, foi recusado (e que era, aliás, considerado muito impopular pelos portugueses).

Este castelo medieval já era exíguo e pobre para o rei Mano (1469-1521), que ambicionava, entre outras coisas, o trono imperial do Império Romano-Germânico, tendo sido batizado com o nome de Mano, ou Emanuel, mas era conhecido pelos seus contemporâneos como Mano Sortudo. Este rei, convicto da sua missão histórica, construiu um novo centro de poder em Lisboa, o Palácio da Ribeira. Este era agora um verdadeiro centro imperial, situado junto ao estaleiro e perto das grandes casas comerciais. Tipicamente, a Casa da Índia, sede da administração colonial portuguesa, também se situava dentro das muralhas do palácio. Dos armazéns de especiarias que se encontravam nas proximidades, o cheiro a especiarias era tão forte no palácio que o pobre Mano era ridicularizado pelos seus contemporâneos como o rei das especiarias.

Mas por muito que tentemos visitá-lo hoje, o Paço da Ribeira desvaneceu-se, tal como a glória do Império Português. O novo palácio real, admirado pelos seus contemporâneos, foi arrasado pelo terramoto de Lisboa de 1755. Atualmente, é o local da principal praça de Lisboa, a Praça do Comércio. No meio do trânsito, no meio de uma multidão de mochileiros a tirar fotografias, podemos tentar imaginar como deve ter sido este palácio de conto de fadas. Não é fácil.

Mas as descobertas não foram, ou não foram apenas, postas em marcha pelo invejado rei Mino. Os portugueses acreditam que foi um grande príncipe, o Infante D. Henrique (1394-1460), que “sonhou” a conquista do mundo para além da imaginação, o Império Mundial Português. Este príncipe lendário e, em muitos aspetos, misterioso, que também desempenhou um papel importante na poesia húngara, será abordado mais tarde.

 

Leia a primeira parte do diário aqui.

 

Imagem de abertura: o Castelo de São Jorge, o palácio real medieval português. Foto de NurPhoto via AFP/Manuel Romano




Ao mar! – diário de viagem de Éva Bánki a Portugal (Parte 1)

Dos vocábulos às palavras. Da misteriosa planície húngara ao mar. Do mar ao oceano. Do oceano à imaginação – explorando o mundo através dos olhos portugueses e húngaros.

Viajando até ao Porto, podemos refletir sobre como é o mar húngaro. Afinal, a nossa palavra “ao mar” nada tem a ver com o mar das línguas ocidentais. A palavra mar é uma palavra de origem turca, que sugere algo incomensuravelmente grande, incontável. Em húngaro, não é só o mar que é “do tamanho do mar”, mas também o problema, a dor, o trabalho a fazer.

O mar português, mar, é também infinito. Mas nesta palavra há também a cintilação do amor e da morte. Quantos poetas portugueses brincaram com palavras desta forma! Mas este infinito é de um tipo muito diferente do azul cintilante, mais suave e amigável do Mediterrâneo, o mare nostrum. O Atlântico é mais frio, mais hostil, mais perigoso – não é por acaso que o mar português (ao contrário do francês e do espanhol) é uma palavra masculina. O mar. Curto, quase cliché. Ninguém pensaria em chamar-lhe isso.

Mas os portugueses também se voltam para o mar com saudade. A saudade, que também é comum na poesia portuguesa, indica um estado de espírito melancólico, quando nos sentimos atraídos pelo infinito, quase cativados pelo horizonte. Quando nos sentimos quase estonteados com o brilho quase sobrenatural do oceano.

Fotografia de Eszter Bognár

Esta atração não é apenas poesia, mas também história. As explorações portuguesas tiveram motivos económicos, políticos e religiosos, é certo, mas muitos camponeses pobres portugueses fizeram-se ao mar por espírito de aventura, por saudade, por instigação da saudade. O Renascimento português não se centrou na Antiguidade, mas no mar (veremos mais adiante), reforçando assim o mistério do mar que sempre esteve presente no pensamento português.

Enquanto o avião se aproxima do Porto, tento fazer um balanço dos poemas sobre o mar na literatura húngara.

Não são muitos. Dos antigos poetas húngaros, apenas Miklós Zrínyi, a Syrena do Mar Adriático, conhecia intimamente o mar – é estranho pensar que a grande maioria dos nossos poetas do século XIX nunca tenha estado no estrangeiro. Nem Vörösmarty, que escreveu de forma tão irresistível sobre o oceano na Ilha do Sul.

Conhecemos e amamos quase só os poemas religiosos de Pilinsky, que é o descobridor do mar na literatura húngara moderna. Durante a sua curta viagem de estudo a Roma, deambulou muito por Óstia. Os seus poemas evocam não só a água sem fim, mas também a vida na praia: a areia, as cabanas, os guarda-sóis, as belas raparigas na praia. Não pensamos neste Pilinsky quando ouvimos o seu nome, pois não? Claro que, para além das raparigas e das crianças, há também cravos adormecidos na “areia gelada”.

Em húngaro, não há géneros – no entanto, o mar é um elemento feminino nas letras de Pilinszky. Está ligado ao ciclo da vida, ao nascimento, ao amor e à maternidade. No poema “O Mar”, recorda a morte da sua mãe: “O mar, disseste, morrendo, / e desde então, essa tua palavra significou o mar para mim, / e talvez quem tu és. // E talvez quem sou eu? / Vales de ondas, cristas de ondas. / A tua agonia, como o mar, / libertar-me-á e enterrar-me-á”.

Esse mar maternal, como berço e túmulo, esse elemento feminino (em Itália, a “estrela do mar” é a própria Virgem Maria), é algo que procuramos em vão em Portugal. O oceano nunca é brando. Nem sequer se ouve a própria voz no seu rugido incessante. Não se pode nadar nele confortavelmente, só se pode dar um mergulho ou “cavalgar as ondas”. Não há um único momento em que esta água enorme não nos faça sentir que é muito mais forte do que nós. Que é feroz e imortal e que nós somos pequenos e perdidos.

Este oceano continua a faltar na literatura húngara. Não temos poemas sobre ele.

Talvez por isso me pareça sempre tão elementar.

O “infinito” ainda troveja quando encontramos o nosso alojamento perto da costa, nos limites do Porto. Mas eis-nos finalmente aqui! Ainda não é a época, os preços estão baixos, a dona de casa mostra o nosso quarto com pouco entusiasmo. A nossa janela não dá para a praia, mas não importa – o som das ondas ouve-se no nosso quarto.

Já durante os meus anos de bolseira, reparei que os portugueses não gostam de ir à praia. Ainda hoje só vejo famílias com crianças, adolescentes e estrangeiros deitados na praia. Também sinto falta da vida de praia desarrumada e alegre do Lago Balaton, com as suas muitas padarias, bancas de doces e bebidas alinhadas umas ao lado das outras. Apesar disso – é segunda-feira de Páscoa – metade da população do Porto passeia pelos passeios marítimos ao longo da costa. Ainda há poucos turistas; este é o mês em que o oceano pertence aos portugueses.

Estão bem vestidos, com rostos festivos, olhando sonhadoramente para a distância. É fim de tarde, a hora da saudade. Os rostos estão coloridos, os olhos brilham – a brisa do mar dá vida a tudo e a todos. Num minuto o céu está azul, no outro – que teatro! – nuvens enormes erguem-se por cima. Os casais de idosos encostam-se à barreira que separa a praia do passeio marítimo, sonhando acordados.

Os casais mais descuidados aventuram-se até ao cais do farol – cuidado, as ondas batem de vez em quando e salpicam toda a gente com um enorme jato de água. As crianças gritam alegremente, os mais velhos permanecem dignamente silenciosos. Observam a costa mais além, como se pudessem ver as caravelas que regressam do século XVI ou, de alguma forma, pressentissem o contorno da Florida ao longe.

Ou será que o outro lado que estão a observar não pode ser descrito pelas nossas coordenadas geográficas?

 

Foto em destaque: um farol na foz do rio Douro, no Oceano Atlântico, com a cidade do Porto ao fundo. Foto de Daniel Malinowski / Shutterstock

Fonte: kultura.hu




Dóra Vöröskéry: A autora natural de Csaba está a trabalhar no seu terceiro livro

Por VÁGVÖLGYI NÓRA

Dóra Vöröskéry tem escrito contos grotescos desde a infância. A sua primeira coleção de contos foi publicada em 2019 sob o título “Pássaros que não voam”, com o qual ganhou o Prémio de Estreia da Associação de Escritores Húngaros e se tornou membro da Associação de Escritores. O apelido da jovem autora é um pseudónimo, uma combinação da sua cor de cabelo e um fragmento do apelido da sua bisavó.

– Qual foi a primeira história que pôs no papel?

– Quando andava na escola primária, escrevi uma história para um concurso de contos sobre uma fada que ia salvar a princesa. Pelo caminho, ela luta contra ouriços espinhosos, mas quando lá chega, a princesa liberta-se a si própria. Essa foi a primeira história que pousei no papel, e depois disso não houve nada que me impedisse. Adorava escrever, divertia-me a inventar histórias e a escrevê-las. Por exemplo, escrevi sobre um trabalhador de uma fábrica de pasta de dentes e um verme que vagueia pela cidade.

– Como juntou estes contos num volume?

– Continuei a escrever depois da escola secundária. Ao longo do caminho, procurei oportunidades de me candidatar a empregos porque precisava de estímulos e retorno. E os resultados começaram a fazer-me acreditar que era algo que eu podia fazer bem e que podia melhorar. Depois encontrei um convite à apresentação de candidaturas da Academia de Escritores, que estava apenas a começar, e candidatei-me. Este concurso foi para mim um enorme catalisador aos 19 anos de idade.

– Como surgem estas histórias ligeiramente grotescas e de contos de fadas?

– Há sempre um estímulo, uma situação que me agarra e desencadeia uma ideia. Por exemplo, no meu segundo volume, que acaba de ser publicado, há uma história de camelos, que teve a sua origem numa visita ao jardim zoológico com a minha mãe, onde se podia montar um camelo. Pergunto-me, o que podem estes animais fazer, se existe um limite de peso? Isto deu origem ao conto, no qual um homem não é autorizado a montar um camelo devido ao limite de peso, e existe uma espécie de mediação entre ele e o jardim zoológico.

– Porque organiza as suas ideias em pequenas histórias?

– O conto é um género imerecidamente irreconhecível e bem adaptado ao modo de vida do homem moderno. Como István Örkény disse, podem ser lidos sentados ou em pé, com vento e chuva ou num autocarro cheio de gente. É esta brevidade que me fascina como escritora e como leitora. Ou a complexidade que é a própria forma lírica de condensar as coisas. Gosto de histórias curtas para ter uma mensagem profunda, e é preciso descascar o verniz do sarcasmo e do humor para ver isso. Mas é claro que não há problema se o leitor só se deixar levar pelo humor. Ao mesmo tempo, as minhas histórias não podem ficar sem elementos de conto de fadas, porque os contos de fadas são uma linguagem universal com a qual todos se podem relacionar.

– Mas agora está a trabalhar num romance.

– Fiz um bacharelato em trabalho social em Szeged, formado no ano passado. Agora estou a fazer uma pequena viagem de carro e entretanto, estou a trabalhar num romance de aventura de viagem para jovens adultos, sobre uma jovem adolescente que procura alguém com as suas irmãs enquanto se envolve em várias aventuras. Durante a viagem, é claro, processos e mudanças começam a ter lugar nela também. Foi um grande desafio escrever um romance porque a minha mente já se tinha estabelecido em prosa mais curta. Ao mesmo tempo, esta história tem vindo a formar-se e a amadurecer em mim há seis ou sete anos, pelo que já tinha para onde queria ir, e tinha marcado os pontos principais, e no meio deixei a parcela fluir livremente. Estou a chegar ao fim, estarei a mexer nele durante o Verão, e depois decidirei o que fazer com ele.

– Ao ler a sua escrita, é difícil saber para que faixa etária se destina.

– É interessante com quem uma história se encontra e fala. Por exemplo, o romance em que estou a trabalhar agora é escrito para um público adulto jovem, mas acontece muitas vezes eu imaginar um leitor para a história e mais tarde ouvir de volta que era o favorito de alguém a quem eu poderia não o ter recomendado.

– Qual foi o primeiro romance que leu?

– Fiquei muito impressionada com o livro de Gyula Böszörményi Gergő e az álomfänger (Gergő e o Dreamcatcher), e li o volume de Prequel de Vis Major de Vavyan Fábula (originalmente Éva Molnár). Mas os meus interesses são tão variados como os contos que escrevo, incluindo István Fekete, Frigyes Karinthy, István Örkény e Neil Gaiman. Adoro ficar estarrecida, mas também adoro um final feliz para uma história.

Fonte: https://www.beol.hu/

Original aqui

Fotó: Bencsik Ádám




Ottilie Mulzet: As dez palavras húngaras mais belas e de onde são originárias

“Talvez numa língua tão encantadoramente bela – admitindo completamente um preconceito extremo neste caso como o húngaro, não deveria ser surpresa que os poetas estejam sempre a compilar listas das dez palavras mais belas”, escreveu a tradutora Ottilie Mulzet sobre as palavras preferidas do escritor húngaro Dezső Kosztolányi.

Porquê dez, pode-se perguntar? Muito provavelmente, três seriam muito poucas; e seria totalmente impossível, conceptual e logisticamente, reduzir a seleção a apenas uma. E, claro, a enumeração poderia continuar: as dez listas mais belas das dez palavras mais belas, e assim por diante, expandindo-se sempre para o exterior até ao infinito, de modo a finalmente abraçar toda a própria língua Magyar, embora faríamos bem em ouvir as palavras do imortal protagonista de Kosztolányi, Kornél Esti, como ele afirma em O Mar e a Vieira:

Kornél Esti segurava um dicionário na mão, e depois dizia: “Afirma que todas as palavras húngaras estão aqui? Bem, vamos dar uma olhadela. Pezsgő [espumante, gasoso, champanhe], pezsgőbor [uma variante de pezsgő], pezsgőpor [bicarbonato de sódio] … Realmente. Mas pezsgőszín [cor de champanhe] não está aqui, e também não está pezsgőz [para beber champanhe, para desfrutar da bebida de champanhe]. Da mesma forma, todas as declinações e formações verbais secundárias não estão listadas. Não vejo, por exemplo, este verbo: pezsgőzget [para beber champanhe]. Se o que se está a fazer é pezsgőz, não é de todo a mesma coisa que pezsgőzget. A diferença fundamental entre os dois tons de significado-é enorme. Vamos continuar. Átpezsgőz ([para passar] uma noite [a beber champanhe]), bepezsgőz (para estar um pouco bêbado de champanhe), lepezsgőz ([para derramar champanhe sobre] uma toalha de mesa ou roupa): todos estes estão ausentes.

Em vão procuro também os substantivos: pezsgőzés [substantivo verbal criado a partir de pezsgőz, ´Bebendo Champanhe´], pezsgőzgetés [‘o gole de champanhe´], bepezsgőzés [o estado de estar um pouco embriagado de champanhe ‘], lepezsgőzés [entornar champanhe], e assim por diante.

Posso juntar instantaneamente vinte ou trinta palavras para si, simplesmente da esfera lexical da palavra pezsgő – todas quase idênticas na sua forma exterior, mas contraditórias em termos do seu significado – que o redator do dicionário se esqueceu de incluir. Não me lembro. O seu objetivo era outra coisa. É impossível fazer um relato de cada palavra numa língua, particularmente na nossa língua ricamente elástica, onde a formação de verbos e substantivos pode ser expandida sem restrições, tornando o inventário de palavras virtualmente infinito.

Tudo o que eu queria fazer agora era chamar a vossa atenção para o quanto não há, e nunca poderá haver, nada como um dicionário ‘completo’. O dicionário é apenas uma concha marítima, com a qual simplesmente fazemos um inventário do mar de línguas. A própria língua, porém, é o mar, o mar.

A própria lista de Kosztolányi das suas “dez palavras mais belas”, que, admite, “pode dizer tanto de mim como da língua húngara” é linguisticamente arrebatadora:

Láng [chama], gyöngy [pérola], anya [mãe], ősz [Outono], szűz [virgem], kard [espada], csók [beijo], vér [sangue], szív [coração], sír [túmulo; chorar].

De facto, ele até demonstra que a tradução da lista de Paul Valéry (pur, jour, or, lac, pic, seul, onde, feuille, mouille, flûte) soa muito bem também em húngaro:

Tiszta [puro, limpo], nap [dia, sol], arany [ouro], tó [lago], hegyfok [promontório, promontório], egyedül [sozinho], hullám [onda], levél [folha, carta], csermely [rivulet], fuvola [flauta].

Qualquer estudante da língua húngara que tenha crescido a falar uma língua indo-europeia é imediatamente atingido pela pura alteridade do lexical húngaro: para tomar uma das palavras mais básicas em qualquer língua, através do espectro indo-europeu encontramos maison, Haus, house, domus, dom, casa, ….. e de repente ház, com aquela longa vogal e exótica consoante final z- silibantina.

Claro que, devido ao grande número de palavras de empréstimo eslavas presentes em húngaro, os falantes destas línguas obtêm algo de “pausa”: palavras como péntek (sexta-feira), ablak (janela), galambola (pombo, pomba), todas provêm de várias camadas de empréstimos eslavos. A camada mais antiga, especialmente em palavras como péntek e galambola, preserva uma vogal nascida que estava presente na Igreja Velha Eslava, que por sua vez há muito desapareceu de certas línguas eslavas modernas (comparar pátek checo e péntek húngaro).

Ainda assim, não é como se fosse apenas um slog sem fim para nós falantes de inglês: O húngaro tem uma boa quota-parte de empréstimos alemães e latino-americanos. Muitos destes, contudo, há que dizer, foram sumariamente despejados durante as reformas linguísticas do início do século XIX, as quais foram por sua vez uma componente integrante do despertar de muitas consciências nacionais anteriores à era conhecida como a Primavera das Nações.

Os empréstimos do latim húngaro são geralmente formados com apenas um ou dois sufixos (talvez o mais famoso de todos seja o Unikum), de modo a acabar com palavras como patetikus, fantasztikus, katolikus, e assim por diante. Depois de algum tempo, no entanto, pode começar a parecer demasiado fácil confiar nesta “ligação latina” magiarizada enquanto se conversa com um falante nativo, de modo que se encontra a fazer casting para mais equivalentes de som “húngaro”. Por vezes, isto pode suscitar a admiração ou admiração do seu interlocutor como, por exemplo, no caso de um querido amigo que uma vez se maravilhou por eu ter insistido em utilizar a palavra elszigetelt, em oposição a izolált. (A palavra elszigetelt é um bom exemplo da lógica requintada do húngaro: o substantivo básico, sziget, significa ilha, el é um prefixo que significa ‘longe, fora’, o segundo el no final forma um verbo intransitivo neste caso, e o t final faz dele uma espécie de passado intransitivo, de modo que todos juntos têm algo como ‘ilha fora’, ou seja: ‘isolado’).

Voltando, porém, à questão do que soa “húngaro”: o debate fervilha há séculos, e é bastante provável que continue a fazê-lo, quanto à natureza “verdadeira” da camada “mais profunda” da linhagem léxica Magyar. Será realmente assim que pelo menos 90% de todas as palavras húngaras são de origem ‘pura’ fino-úgrica, ou a realidade é um pouco mais complexa do que isso? Haverá realmente apenas 300 palavras de origem turca, como se diz tão frequentemente (ver também a encantadora história de Kosztolányi em que Kornél Esti beija uma jovem criada turca num comboio 300 vezes, uma para cada palavra que foi legada à língua húngara).

O facto é que o mosaico lexical absolutamente intrigante da língua que designamos como húngaro provavelmente nunca será capaz de ser totalmente desvendado. O que é certo, contudo, é que enquanto todas as línguas são inerentemente sincréticas na sua composição lexical, o húngaro pode ser uma das mais maravilhosamente sincréticas de todas. Isto torna-o ‘cosmopolita’ no melhor sentido da palavra: uma língua que parece extrair o seu sangue vital, a sua energia de fontes tão variadas e ricas, descobrindo infinitamente dentro de si novas fontes de inspiração.

Claro que o sincretismo inerente ao vocabulário húngaro tem muito a ver com essa viagem inicial de milhares de quilómetros, sobre as vastas estepes, desde as distantes montanhas Urais até Etelköz e Levedia e, finalmente, até à Bacia dos Cárpatos, há mais de 1000 anos. Os Magiares podem muito bem ter começado com um vocabulário Uralico ‘puro’, mas muitas camadas foram acrescentadas ao longo do caminho. Isto inclui mais do que uma infusão das línguas túrquicas (das quais pelo menos duas ocorreram uma vez instalados na sua nova casa), e também persa, que legou ao húngaro grande parte do seu vocabulário comercial, bem como bastantes números. As infusões posteriores vieram das línguas eslavas, como acima mencionado, latim, alemão e agora, claro, inglês globalizado.

A questão da definição ou localização de uma língua está, evidentemente, inevitavelmente ligada à questão da identidade. Os ‘laços familiares’ que podem ser linguisticamente ‘provados’ ou ‘refutados’ (nada como um teste de ADN para a língua!) são talvez os mais reveladores de todos, na medida em que inevitavelmente algo é traído sobre os desejos profundos de quem define. Basta olhar para praticamente qualquer canção popular túrquica ou mongol num website comum dos meios de comunicação social para encontrar os inevitáveis comentários que exprimem profusamente uma solidariedade fervorosa com estes presumíveis “irmãos” linguísticos e/ou étnicos (uma solidariedade professada que muitas vezes se estende até aos Xiong-nu, mais comummente conhecidos como os hunos). Depois há também os pequenos panfletos que se encontram sempre em estações de comboios provinciais, em bancas ou livrarias fora do caminho, que criam uma mistura única da mitologia cristo-shamanista: fabricando um passado e uma língua onde a maior parte das provas reais desapareceu mais ou menos. Como se a sensação de profundo anseio que emana destas publicações, o seu estranho e fácil misticismo, pudesse encobrir o facto de não terem qualquer base académica. (Para não mencionar o facto de que os próprios especialistas Altaic, sejam eles turcos, mongóis ou ocidentais, nunca chegaram sequer a uma decisão sobre se o turco e o mongol pertencem ao mesmo grupo linguístico, e se existe mesmo algo como uma família linguística Altaic).

No entanto, no outro extremo, há estudiosos e linguistas que negam a clara influência da lexica túrquico-altaica a um tal grau – chegando mesmo estas meras 300 palavras a um número muito mais escasso – que se tem de perguntar: será que isso é realmente o caso? Para citar um exemplo, encontrei entradas de dicionário em que uma etimologia ocidental europeia ou mesmo latina é atribuída a uma palavra que é simultaneamente atestada como um empréstimo Chuvash ou Turco por ninguém menos que aquele grande Altaista húngaro, Lajos Ligeti. Um lexicógrafo que compilou um dicionário etimológico “alternativo” de húngaro afirmou algo no sentido de que a língua turca é claramente a “ovelha negra” da família, enquanto que Finno-Ugric é o filho preferido.

Eu, em qualquer caso, gostaria de me envolver no meu próprio tipo de fantasia e imaginar um pagão de beleza: um pagão de beleza de palavras. Cada palavra, desejando apresentar-se como candidato à honra de ser designado como “o mais belo”, teria de, como num pagão de beleza tradicional, sair à frente do público admirador. Contudo, em vez da habitual designação geográfica (“Miss Califórnia”, “Miss Maine”, etc.) na faixa larga que cada palavra ostenta com orgulho, em vez disso seria inscrito o seu presumível lugar de origem. Assim, haveria os “imigrantes”, ou seja, as palavras que usavam uma faixa brasonada com a designação abreviada vsz:, ou vándorszó, literalmente uma “palavra errante” – uma palavra, portanto, que teoricamente poderia ser apenas “parar” durante algum tempo nas suas viagens antes de passar para outro domínio linguístico. A palavra tűz (“fogo”) teria o emblema fgr, para Finno-Ugric, enquanto que táj (“região, terra”) poderia possivelmente estar a sofrer algo de crise de identidade com a sua designação de ?fgr (“Finno-Ugric?”). Tanú (“testemunha”) não tem tais problemas: a fita ostenta a inscrição inequívoca tör, para o túrquico. Algumas palavras, porém, como nő (“mulher”) parecem condenadas à incerteza perpétua, a sua origem definida literalmente por um único ponto de interrogação: ?

Tem sido bem documentado por psicólogos que quando um pai simplesmente desaparece da vida da sua prole, seja por morte ou abandono, esse pai em questão transforma-se quase inevitavelmente numa fonte de fantasia quase interminável por parte da criança: Talvez o meu pai esteja/teria estado na Legião Estrangeira Francesa, talvez a viver na próxima cidade com uma nova esposa e família, talvez a perfurar petróleo no Cazaquistão… Talvez a minha mãe seja/veria ter sido uma atriz famosa, uma empregada de mesa, um político… E assim aparece com todas as questões extremamente difíceis que rodeiam tanto da lexica do húngaro: uma vasta nuvem de incerteza, empurrada aqui e ali pela força da polémica de um lado ou do outro, paira perpetuamente sobre o dicionário, de modo que, entretanto, talvez a melhor coisa a fazer seja continuar a fazer essas listas.

A lista das Dez Palavras Mais Belas.

 

Ottilie Mulzet (nascida em Julho de 1960 em Toronto) é uma tradutora literária de poesia e prosa húngara cuja obra tem sido reconhecida com vários prémios literários importantes. É conhecida em particular pelas suas traduções de vários livros de László Krasznahorkai. A sua tradução do romance Seiobo There Below de Krasznahorkai ganhou o Prémio de Melhor Livro Traduzido em 2014. Foi também galardoada com o Prémio Internacional Man Booker 2015 pela sua obra sobre Krasznahorkai juntamente com George Szirtes, que traduziu o romance Satantango de Krasznahorkai. Outros títulos de Krasznahorkai que Mulzet traduziu incluem Destruição e Sofrimento sob os Céus e Animalinside. Traduziu também livros de Szilárd Borbély (incluindo Berlin-Hamlet, que foi pré-selecionado para o Prémio Nacional de Tradução e para o Prémio de Melhor Livro Traduzido em 2017) e Gábor Schein. Mulzet ganhou o Prémio Nacional do Livro de Literatura Traduzida de 2019 pela sua tradução do Baile do Barão Wenckheim, de László Krasznahorkai.

Fonte: https://hlo.hu/

 




A solitude da criatividade

Por: Dóra Vöröskéry

Acho que não tenho de explicar a nenhum criativo ou artista que o seu trabalho não é trabalho. Espero que perceba que o processo em que esparze a sensibilidade e espírito, o seu tempo e numo, pelo qual se ilustrou ao longo dos anos, no qual centenas de emoções correm através de si, não é nada mais do que ociosidade, desenfado, falta de sentido. É uma ação fagueira, pueril, que é solvida (ou não) por algum capricho – ou não será sequer assim!

Para mim, a soledade da criação tem vários significados, o primeiro dos quais é capturado no parágrafo anterior. É uma espécie de incompreensão para a qual é difícil encontrar um parceiro. Talvez apenas noutro imaginativo, que também conhece as características do processo criativo como árduo mister: a recolha de material, o planeamento, a realização e as tarefas que se seguem (pós-produção, acompanhamento, venda, promoção, etc.).

Há muitas formas de recolher material, como a leitura ou a experiência. Compreendo que é difícil identificar como trabalho ler um romance ou ir para os Alpes, mas é uma forma de dar à minha imaginação o que estou a trabalhar com uma plataforma para produzir uma escrita verdadeira e autêntica. Pode não parecer muito trabalho deitar-me de barriga para baixo na cama, olhando para a frente com um olhar franzido, quando poderia estar a escrever o diálogo espirituoso de um interrogatório ou a descrição de um acontecimento que desencadeou uma guerra. Ambas as tarefas preparatórias são muito importantes para o trabalho propriamente dito, que também não é muito “parecido com trabalho” para um escritor: torcer-se em todo o tipo de poses estranhas, perseguido na frente da máquina. Ver o cursor piscar na página branca de neve, murmurar, abanar a cabeça ou acenar com a cabeça. Depois é feito o grande trabalho.

Enquanto escrevo, mastigo pastilha elástica, pelejo – alguém que sabe o que provavelmente lhe chamaria bater – saltar para cima e para baixo ou jogar à bola, sacar – sou tão bom nisto como sou no boxe – queixar-me um pouco de que não consigo acertar. Normalmente a música ajuda: alguém jura por Beethoven, eu procuro na Internet por barulhos provocados que me fazem sentir como se estivesse sentado num café, fora do caminho do empregado, e o café é mais barato se eu mesmo o fizer ou se eu mesmo o fizer ou se me esgueirar de uma bebida dos meus colegas de apartamento. Mas a música também me inspira: ajuda-me a escrever uma cena de batalha com o seu interlúdio épico, e nada torna mais fácil recordar e pôr em palavras as desilusões do amor do que uma balada de Céline Dion. É interessante como as diferentes disciplinas artísticas interagem, e por vezes olho para imagens que evocam muitas emoções em mim, tornando mais fácil retratá-las.

Quando as páginas estão cheias, todos os pensamentos estão no papel, então é altura de pensar no texto, descansar, e depois distribuir. O objetivo com o texto acabado é normalmente levá-lo aos leitores. Isto implica enviá-lo para revistas, editoras, submetê-lo a concursos ou outras plataformas (por exemplo blogue, Facebook, Wattpad, publicação privada) para o partilhar e promover. Trabalho, trabalho, trabalho. E, claro, diversão, passatempos, amor.

Acho que para alguém que não trabalha neste mundo, é difícil imaginar o lado amargo, formal, ‘trabalho’ criativo, e isto pode fazer com que o criativo se sinta só.

A solidão é uma das emoções mais refinadas do mundo, porque pode trazer consigo muitos pensamentos produtivos e felizes, mas também muitas outras coisas: perda de esperança, dúvida, um sentimento de inutilidade. Vale, pois, a pena manter um olho e um coração nos criativos que nos são caros, para ver se eles não precisam de uma ou duas boas palavras, um companheiro silencioso ou vocal, uma pausa no trabalho.

O processo criativo em si não é normalmente um esforço de grupo. Claro que se pode envolver mais de uma pessoa em qualquer parte, há partes da experiência, por exemplo, que seriam difíceis de fazer sozinhas, mas as tarefas criativas tendem a funcionar melhor sozinhas. E aqui vem o segundo significado de solidão criativa, solidão física – ou poderíamos chamar-lhe solidão necessária.

Já tentou trabalhar enquanto o seu parceiro está a tentar chamar a sua atenção, enquanto um amigo está a tentar contar-lhe uma história, enquanto uma criança está a representar algo que precisa de um público? Furar, falar, ouvir o rádio ao lado? Não se pode continuar assim. Um bom texto suga-o, não só o leitor mas também o escritor enquanto o faz, por isso tem de admitir que é impossível trabalhar assim sem solidão.

Mas há momentos em que se precisa de outro olho e ouvido compreensivo. O criativo está sedento não só de solidão, mas também de uma audiência, da companhia de pessoas com os mesmos sentimentos, de feedback. É como ler: uma forma de crescer. Não é por acaso que existem tantas oficinas criativas, círculos de escrita e associações.

Por isso, precisa de algumas pessoas, um grupo e, pelo menos no início, um mestre que não o deixe sozinho.

 

Original aqui

 

Dóra Vöröskéry nasceu em Békéscsaba em 1995. Formou-se no liceu em Mezőberény e estudou engenharia do Ambiente em Sopron. Viveu em Budapeste durante um ano. Atualmente é estudante de trabalho social na Universidade de Szeged. Regressou recentemente da Alemanha, onde passou dois semestres como estudante visitante. O seu primeiro livro de contos, intitulado Aves sem vôo, foi publicado em 2019. Adora chocolate, filmes de monstros e sapos.

 

Vöröskéry Dóra Békéscsabán született 1995-ben. Mezőberényben érettségizett, majd Sopronban tanult természetvédelmi mérnöki szakon. Egy évig élt Budapesten. Jelenleg a Szegedi Tudományegyetem szociális munka szakos hallgatója. Nemrég érkezett haza Németországból, ahol két félévet vendéghallgatott. Röpképtelen madarak címmel 2019-ben jelent meg első novelláskötete. Szereti a csokoládét, a szörnyfilmeket és a békákat.

 

Crédito da Foto: Gera Imre




Como estão as nossas trincheiras políticas húngaras e pequenas ferrovias, de acordo com um jornalista polaco?

Szczerek, o fenómeno do jornalismo polaco, viajou pela Hungria e arredores entre 2015 e 2019, à procura da alma dos húngaros (e da Europa Central em sentido lato) em vez das atrações turísticas locais. Embora a Via Carpatia tenha sido escrita principalmente para um público polaco, tem muito a oferecer aos leitores húngaros com a sua profunda empatia pela história dos húngaros, a sua visão individual e a sua visão das trincheiras em olhos de pássaro. Pode encontrar a nossa entrevista com o autor aqui. Leia o livro!

Ziemowit Szczerek: Via Carpatia – ou vagabundos na Hungria e na Bacia dos Cárpatos (excerto)

Traduzido por Antal Grozdits

Ziemowit Szczerek (1978) é um jornalista polaco, colaborador da Gazeta Wyborcza e Polityka, escritor, e tradutor polaco para Hunter S. Thompson. Estudou direito e ciência política e pesquisou o separatismo europeu e o regionalismo. Como jornalista, é um investigador apaixonado e especialista nas “peculiaridades” geopolíticas, históricas e culturais da região da Europa de Leste. Em húngaro, o seu único livro até à data, Jön Mordor kommt és vorzufzufalt uns, oder a székésokyste Geschichte a Slávok (A História Secreta dos Eslavos), que tem quase estatuto de culto, foi publicado em 2016 pela Typotex”.

Vagueei pelo bairro que Orbán, com a ajuda do seu fantoche – o antigo presidente da câmara da província – tinha transformado num império privado. Desde a Arena Pancho até ao jardim do antigo castelo dos Habsburgos. Entre eles corre o improvável pequeno caminho-de-ferro. Circula a “Uh! Uh! Pouca terra… de um lugar estranho para um ainda mais estranho. De lugar nenhum para lugar nenhum, sem levar nada. Funciona com pouca frequência, e na maioria das vezes é utilizado apenas por jornalistas estrangeiros surpreendidos que vieram à Hungria para compreender o que se passa neste país, sobre o qual todos escrevem como se fosse o inferno na terra, e cujos habitantes falam uma língua incompreensível. Por vezes fica-se com a impressão de que é bom que este pequeno caminho-de-ferro exista, pois pelo menos tornou-se um símbolo de corrupção na Hungria. Porque quando estes jornalistas chegam, ouvindo falar de todo o tipo de coisas incríveis e selvagens que aconteceram neste país exótico e pós-comunista, ficam desapontados à primeira vista por encontrarem tudo em ordem.

Se ignorarmos os painéis ocasionais com as caras distorcidas de alguns políticos da UE e de George Soros, e as inscrições em forma de estepe de sangue, parece realmente que tudo na Hungria é ocidental, normal, aborrecido e honesto.

A menos que se esteja enterrado em documentos de fraude económica sonhadora ou de insaciabilidade política, é difícil encontrar algo remotamente parecido com uma “ditadura pós-comunista” no meio da Europa.

Budapeste é uma metrópole europeia completamente vulgar, e embora grande parte dela tenha sido construída no século XIX, rápida e eficientemente, como uma espécie de mini-cidade europeia de Gotham, já não se parece com ela. Os jornalistas que andam por Budapeste não podem, como podem em Skopje, a capital da Macedónia, por exemplo, com objetividade fingida, interrogar-se como é que esta pequena, complexa, nação da Europa Oriental está a tentar provar ao mundo que é realmente grande e poderosa, agarrando-se a fachadas de gesso pseudo-históricas e caryatids que mais parecem dançarinos bêbados num vídeo de discoteca. E estas colunas e monumentos assimétricos com aspeto de papel maché foram erguidos onde quer que houvesse espaço, como se os pedreiros tivessem acabado de se formar em alguma escola rural para os desfavorecidos. Em Skopje é visível e fácil de ver, mas de modo algum em Budapeste.

De facto, a paisagem rural húngara assemelha-se a qualquer lugar do Ocidente. Não se pode andar por aqui, como em Borat, entre pessoas pobres com camisolas rasgadas, com bigodes debaixo do cinto, usando chapéus mas descalços, e esfregar as nossas mãos juntas e dizer que sim, sim, o campo da Europa Oriental ainda está muito longe de poder criar algo que se assemelhe à consciência democrática e à responsabilidade cívica.

As pequenas cidades húngaras são bastante açucaradas e não se parecem nada com as monstruosidades clássicas de betão da Europa Oriental de filmes de terror do tipo Hostel-. Em quase todos os lugares é possível chegar por estradas normais, pelo que histórias como “mesmo a nossa última geração de SUV com tração a todas as rodas – incluindo rodas sobresselentes – não conseguiam aguentar: tínhamos de passar a noite no deserto, onde usávamos tochas flamejantes para nos mantermos afastados dos canibais à espreita”. Pessoas vestidas tão bem como em qualquer outra parte do Ocidente, mas aqui não se pode admirar o arrebatamento de um voyeur, como na antiga União Soviética, as senhoras em estiletes e peles falsas acenando através de estilhaços de vidro, ou os pugs de agachamento transformando casas pré-fabricadas em torres de castelos medievais. As lojas e supermercados oferecem as mesmas coisas e da mesma forma que na Áustria ou na Alemanha, pelo que não há imagens dramáticas de prateleiras vazias a bocejar. É claro que há exceções – mas são exceções.

Portanto, não é mau saber – e escrevo isto tendo em mente os jornalistas que procuram uma ilustração facilmente descodificável para o seu artigo “Corrupção na Europa de Leste” – que existe este pequeno comboio idioticamente inútil de Felcsút a Alcsútdoboz, ligando as propriedades da família número um da Hungria (e strumpet).

O pequeno caminho-de-ferro é um símbolo em que ninguém viaja, excepto o condutor com a tampa vermelha.

Teria ficado feliz em viajar nela, mas ela corre tão raramente que não me apeteceu ficar o dia todo na plataforma vazia, a olhar para a relva, as árvores, o vazio húngaro, só para olhar para o condutor com o seu boné vermelho, descrito por jornalistas estrangeiros como “hussardo”, e depois, após alguns quilómetros de barulho, para ter a certeza de poder voltar à carruagem. Além disso, eu, tal como os outros, estaria provavelmente a rir para mim próprio durante toda a viagem sem características, procurando o mínimo indício das condições locais numa paisagem inteiramente europeia ocidental e neutra, que é tão insignificante como o desenho das notas de euro. Em vez disso, vagueei por Felcsú e Alcsútdoboz, tentando fazer conversa com os locais, que tentaram sacudir-me e olharam para mim como se eu fosse o próximo invasor a tentar obter a sua opinião sobre Viktor Orbán em inglês, alemão e húngaro quebrado (muito quebrado). Cansei-me muito rapidamente e arrastei-me para o bar para ir comer qualquer coisa, mas não tinham comida adequada. Olhei furioso e atormentado para os tipos que tinham aparecido para beber um quartilho nas suas roupas de trabalho antes de voltarem a alguns, suponho que não muito distantes, no local da construção; bebi uma chávena de café terrível, mordiscando um croissant miserável. Como já fiz um milhão de vezes, perguntei-me como é que os húngaros tinham conseguido utilizar o século XIX para criar um país completamente ocidentalizado para si próprios. Falharam na sua luta pela liberdade contra os austríacos, mas quando o destino lhes ofereceu a oportunidade de serem uma parte igual da dupla monarquia, aceitaram-na em vez do habitual “só porque”. A Hungria ganhou muito em termos sociais, económicos e culturais ao tornar-se um ator igual num mundo dominado pela civilização alemã no final do século XIX. Isto pode ser observado em quase todo o lado, desde a Transilvânia até Sopron, desde Zimony até aos Tatras.

 

(…)

Caminhei no arboreto, o parque que em tempos pertenceu ao castelo do Arquiduque Joseph Augustus. O Arquiduque nasceu em Alcsútdoboz, e as suas antigas terras foram tomadas pelo Lőrinc Mészáros, ex-prefeito e instalador de gás, em nome da família agora governante, enriquecendo-se mais rapidamente do que qualquer outro na história da Hungria, e que, sobre esta velocidade espantosa, disse modestamente ao jornalista que lhe perguntou: “Bem, talvez eu seja mais esperto do que Zuckerberg, não acha?” A propósito, o carniceiro é agora, como calcularam os jornalistas de Átlátszó, cerca do dobro do que o próprio Arquiduque José alguma vez foi.

Os casais estão a passear no parque, é domingo, o verde é espesso e relaxante. As ruínas do Palácio Ducal estão muito bem posicionadas aqui: Ruínas dos Habsburgos no meio da nova terra da aristocracia local que governou o país inteiro. A vedação do arboreto é pendurada com um anúncio para a pizzaria do açougueiro. Um enorme ninho Orbán está a ser construído recentemente na grande propriedade do falecido Arquiduque José de PusztaHatvan. A velha quinta em Felcsút é uma farsa.

Além disso, quem iria querer viver mesmo ao lado de um estádio?

Fonte: https://konyvesmagazin.hu/

Tradução e Edição: Arnaldo Rivotti