Carta a Oksana

por LMn
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1.
Não nos conhecemos, Oksana.
Mas tenho a esperança de que alguém da Embaixada da Ucrânia lhe possa entregar esta carta que agora lhe escrevo.
Sou português.
Tenho 49 anos, quatro filhos e estou profundamente envergonhado com o que aconteceu há nove meses.
O seu marido morreu quando estava à guarda do Estado português. Foi torturado sem se poder defender ou contactar um advogado. Numa sala do aeroporto, segundo leio na acusação do Ministério Público, agentes do SEF espancaram-no com um bastão durante longos minutos. O seu marido estava algemado com as mãos atrás das costas e tinha os cotovelos amarrados com ligaduras, não se podia defender. E eles não pararam.
Socos e pontapés.
Gritos.
Humilhação.
Algumas pessoas do Serviço de Segurança e Fronteiras abriram a porta do esconso para perceber o que se passava. Os agentes pediram a todos para que se fossem embora e para ficarem de bico calado. Todos aceitaram participar no conluio. Aquele lugar era terra de ninguém e o SEF não é uma polícia de chibos.
2.
Oksana, ouvia-a na entrevista a um canal de televisão português.
Comovi-me com as suas lágrimas.
“O meu marido não era terrorista, assassino ou criminoso”.
Comovi-me por saber dos seus filhos. Por ter sabido por si que eles não fazem ideia de que o pai não irá regressar. Continuam na ilusão de que um dia ele lhes fará chegar os bilhetes de avião para se poderem juntar em família no país que escolheram para ser felizes e terem um futuro. O país que acharam ser a melhor opção, o destino mais seguro.
Um dia saberão que o pai não regressará nunca mais.
E um dia saberão que há notícias ainda piores do que a pior notícia que receberam.
3.
Oksana, sou um português sem qualquer poder.
Não posso fazer nada, mudar nada ou remediar o que não pode ser remediado.
Não represento o meu país.
Não sou político ou governante.
Mas sei que a minha voz é a de muitos e muitos milhares de portugueses. E é em nome dessa convicção que lhe peço desculpa, que lhe pedimos desculpa.
Desculpa por termos atraiçoado a vossa confiança.
Desculpa pela morte do seu marido e pai dos seus filhos.
Desculpa por nenhum telefonema ter recebido.
Desculpa por ter transladado o corpo do seu marido com o seu dinheiro – creio que teve de pagar 2 mil e duzentos euros.
Desculpa por toda esta confusão que eu não achava ser possível no meu país, o país que eu amo.
4.
Por estranho que lhe pareça, Portugal é um país maravilhoso. Um país com gente bom e generosa. Um país que sabe abraçar. Um país que vale a pena.
Se tivesse conhecido o seu marido e ele me tivesse perguntado se os portugueses eram gente boa eu ter-lhe-ia respondido para vir sem qualquer receio.
Agora só me resta a vergonha desta carta.
Só me resta pedir-lhe desculpa mil vezes e esperar que o Portugal consiga remediar o que não tem remédio possível.
Sou um português.
Igual a milhares e milhares de portugueses que acredito estarem tão envergonhados como eu.
A vergonha que alguns não parecem ter.

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