Não creio que se trate propriamente de um traço cultural, e na verdade só recentemente comecei a reparar nisso. Será apenas impressão minha ou existe de facto nesta cidade demasiada gente a passar demasiado tempo dentro do seu carro estacionado? Como disse, não me lembro de o ter constatado antes. Sinal dos nossos tempos? Que acontece exactamente para que alguém, depois de estacionar o veículo, permaneça lá dentro sentado? Será que ando a imaginar coisas ou estarei realmente a ser perseguido por essa nova espécie de perturbador comportamento humano, essa curiosa e progressiva sedentarização do indivíduo no interior de automóveis? É que cada vez que vou a entrar para o carro ou a sair do mesmo depois de estacionar, há quase sempre alguém dentro do carro ao lado, a brincar com o telefone, a ouvir música ou então especado, a olhar o infinito, como quem reflecte profundamente sobre a mais importante decisão da sua vida. Ando preocupado com este fenómeno e imagino-lhe as razões.
Pode ser que o indivíduo tenha adquirido o veículo recentemente e o tempo passado na estrada não lhe seja suficiente para desfrutar plenamente do carro novo. Ou então ficou agarrado a um qualquer programa de rádio, demasiado interessante para interromper. Talvez possa também ser que a regrada pontualidade húngara faça com que as pessoas cheguem aos seus compromissos antes da hora marcada e fiquem à espera dentro de carro para evitar a descortesia de chegar demasiado cedo. É igualmente possível que dentro do carro se esteja à espera de alguém, e imagino um encontro proibido com essa pessoa que sairá da porta de um edifício mais à frente, caminhará casualmente rua abaixo como quem vai comprar o pão para o dia seguinte e discretamente entrará naquele carro parado para um beijo, dois minutos de conversa, tenho tantas saudades tuas, amanhã não posso mas no fim de semana ficamos juntos. Numa hipótese mais dramática, seria o automóvel um refúgio seguro, não apenas contra a inclemência dos elementos (a chuva, o frio atroz ou a estranha canícula dos últimos dias), mas também contra qualquer coisa menos simpática à espera lá em casa, após uma jornada de trabalho: cônjuge insuportável ou, pelo contrário, a solidão de uma casa vazia. Adiar-se-ia assim, dentro do carro, um serão desagradável, encurtando distâncias para a manhã seguinte.
Estou seguramente a esquecer-me de tantas outras motivações, provavelmente relacionadas com aplicações e redes sociais, e depois ponho-me a imaginar a descabida evolução desta tendência, um mundo onde o ser humano acabaria aos poucos por se instalar definitivamente no habitáculo de automóveis, abandonado a sua residência, como naquelas situações económicas extremas de indivíduos a viverem no carro, temporariamente entre a condição de despejados e sem-abrigos. Imagino esse estranho mundo de casas vazias e carros parados com pessoas sentadas dentro, sempre a ponto de partir ou acabadas de chegar.