Caminhar em Contramão – Unidade e Harmonia (Kőbánya, X)

por Vitor Vicente
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Entre todas as cidades em que vivi, Budapeste é, de longe, a dotada da melhor rede de transportes públicos. Ainda assim, o cemitério de Kőbánya não é tão acessível quanto isso.

Será coisa cristã, essa obsessão de separar a vida da morte? Não creio. Em Katowice, os cidadãos usavam o cemitério como passagem de uma rua para a outra; ao fim de algum tempo na cidade, também eu perdi o pudor de deambular entre os defuntos, no que agora reconheço de primeiro passo para integrar a vida na morte e vice-versa.

Voltando a Budapeste. Ter trabalhado (num tempo em que o teletrabalho já existia, embora com o estatuto de privilégio) num escritório em frente ao (então em construção) estádio do Puskas, ajuda-me a encontrar, com relativa facilidade, a paragem do autocarro 95. O trajeto atravessa os confins de Kőbánya, apresentando-me paisagens que corroboram os comentários escutados a respeito do bairro.

Ao descer do veículo, deparo um enorme terreno, com segurança à porta; consigo imaginá-lo repleto de gente, atribuir-lhe aquele aparato turístico de outrora. Intrigado, consulto o google maps: trata-se do cemitério turco.

Monumento? Nada disso. Já no cemitério (que se revela gigantesco, conferindo os respetivos comentários) encontro um cemitério italiano, além das valas dos nativos. Um mundo; nunca pensei chamar de “um mundo” a um sítio que não estivesse propriamente cheio de vida.

Ainda munido do smartphone, apercebo-me que encontro num beco sem saída. Também nunca pensei caminhar de “maquineta” na mão no meio de um cemitério; por trás da máscara, percebida a ironia, sorrio.

Segundo o gps, entrar no cemitério judaico requer sair do cemitério principal; volto a esboçar um sorriso, desta feita com a ideia de abandonar este lugar pelo meu próprio pé.

Cá fora, ando na berma da estrada, por onde passam carros, camionetas e se arrasta o elétrico para a derradeira paragem (outra ironia). Junto ao passeio, vejo uma data de agências funerárias; uma delas chama-se Moses, um nome que, como nenhum outro, assegura estarmos na direção certa.

À entrada, decorre um funeral. Os cânticos, como é costume, são-me uma melodia para a alma; há qualquer coisa no hebraico que me canta ao coração, espécie de chamamento. Apesar da máscara, reconheço o rabino; senão me engano, da Seder de há dois anos.

O cemitério judaico bate igualmente certo com os tais comentários. In-fin-dá-vel. Onde estarão Peter Wild e a esposa? Talvez numa das tumbas sem nome e em que está inscrito Mama es Papi?

Enquanto me movo entre as ditas, volto a experienciar uma saudável simbiose entre a vida e a morte. Terei finalmente assimilado a lição judaica?

Ou reconhecido à terra a função de transporte? Ou, por outra, será o cemitério um não-lugar? Mais triste do que um aeroporto-fantasma, um aeroporto morto?

Nunca encontrarei resposta (digo, convincente) para as supracitadas interrogações. Nem, creio, se apresenta empresa fácil sair do cemitério, deixando Peter para trás.

De pés assentes na terra, decido reviver momentos e memórias, aquelas coisas que são maneiras à prova da morte. Recordo, sobretudo, refeições em família, jogos de tabuleiro, troca de prendas, as tentativas genuínas de entabular conversa, colhendo vocábulos em magyar es english und deutsch. Calado, o olhar de Peter tornava-se tão penetrante quanto doce; parecido, aliás, ao do meu pai, não tivessem os senhores semelhantes fisionomias, tendo ambos sido rapazes charmosos nas suas épocas; o semblante de Peter também trazia à baila um livro de história judaica do centroleste europeu, podia perfeitamente imaginá-lo, com catorze ou quinze anos, flagrado num álbum a preto e branco.

Ainda não estou em condições de sair do cemitério. Os meus pés afundam-se na terra, como se de terra movediça se tratasse.

Como se de um milagre se tratasse, relembro o dia em que Peter me ajudou a levar no seu carro uma cadeira de escritório para casa e trazer de volta a dita aos donos em questão de minutos. O motivo da azáfama, perguntam-me? Tirar uma foto a minha pseudo-secretária, com que convencer a tal empresa em frente ao Puskas de que tinha as condições adequadas para trabalhar a partir de casa duas vezes por semana.

As vivências a dois com Peter voltam-me a abrir o rosto por trás da máscara, conduzindo-me para fora do cemitério de alma arejada.

Tudo isto é anterior aos remotos, prévio à tal da pandemia que nos levou Peter. Consta que não queria que ninguém lhe fizesse as compras. Ele, sim, iria aos supermercados, na procura do zsemle ou kifli mais em conta, enquanto fazia trinta por uma linha com a reforma herdada do regime socialista.

Peter, no entanto, não tinha pena de si próprio. Ensinou-nos que a vida é uma; não há cá ser uma pessoa quando escrevemos e outra enquanto assalariados, ou uma quando somos pais (hoje em dia, dir-se-ia parentes) e outra quando se brinda com os amigos.

Sabia-la toda, Peter.

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