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Caminhar em contramão – Toldos de vidro (Erzsébetváros, VII)

O passado quer-se, em última instância, como lição. Que forneça os fundamentos dos presentes e futuros sucessos, que nos abra caminho como uma tocha e desbrave a direção certa ou, no mínimo, adequada. É deste prisma que me apraz rever o período (um ano) passado na Polónia; uma espécie de preparação ou ensaio para a subsequente temporada em Budapeste.

Além de me equipar para o dia-a-dia num idioma incognoscível, a Polónia formatou-me sobremaneira o envolvimento com Erzsébetváros. Apesar de Kazimierz se apresentar mais compacto e quiçá acolhedor, as simetrias entre os dois bairros são evidentes. Aos olhos de quem chega do lado ocidental do continente, o primeiro choque são as sinagogas, pouco ou nada protegidas pelas autoridades locais; jamais esquecerei aquele Yom Kippur, a fazer fila para entrar no templo, sem que nos pedissem outra coisa que não a Kippah na cabeça ou que tirássemos uma da cesta e a colocássemos no devido sítio. O segundo são ainda as sinagogas e centro judaicos, aos magotes, renovadas com os subsídios dos governos nacionais.

O terceiro (já vão perceber o porquê do parágrafo) é o fato de ambos, Erzsébetváros e Kazimierz, se terem tornado o bairro de “sair à noite”; sem prejuízo do paralelo florescimento das respetivas Judiarias.

De resto, na primeira vez que saí em Budapeste (data que coincide com a primeira noite na cidade) fui levado ao Mazel Tov, um dos chamados ruin pubs, este dedicado a replicar o ambiente de Tel Aviv (em Cracóvia o congénere chama-se Hamsa). Quanto à criação do conceito de ruin pub, cabe a honra ao Szimpla Kert, traduzido à letra “Jardim Simples”, atraindo a detestável estirpe que se gaba de humildemente desdenhar a finesse e afins e que, nos tempos que correm, se auto intitula (não vivêssemos numa época em que a todos se assegura o inapelável direito ao auto intitulamento) de minimalistas. Salve ao Szimpla por iniciar a sequência que conferiu, até aos dias de hoje, um ímpar ambiente boémio às noitadas de Budapeste.

Tempos houve em que Erzsébetváros esteve entregue às mafias, aos tiroteios entre bandidos. Nesse sentido, relembra o velho Cais do Sodré, entretanto apaziguado com a Rua Cor de Rosa; enquanto Budapeste mantém à rua-mor o nome de Kiraly Utca, traduzido à letra “a rua do Rei”, título que noutras bandas já estaria rebatizado com algum disparate, tipo “rua Elisabete”.

De momento, o sete está às moscas, despojado de turistas e de quem deles subsiste. Não me refiro somente aos donos dos estabelecimentos, mas também de quem com eles labora; embora destes últimos não reze a história de quem nos impinge aulas de economia igualitária.

Falando ainda de dinheiro. Repetem-se as tentativas de regrar os horários dos bares de Erzsébetváros. O objetivo (não sejamos inocentes) é a sua exterminação. A tal da pandemia, ou a gestão da dita, ajudou, contribuindo com a sua quota-parte para a higienização do mundo. Estamos agora à espera que se encontre novo bairro, o substituto do sete nas respetivas hostilidades; ou seja, que se chegue à frente alguém influente e que possa operar a mudança para sua e para a satisfação dos camaradas do oculto comité.

Não me desperta propriamente pena. Aliás, o meu único lamento é ter passado maior número de noites no bairro sete que no cinco; acho que o segundo tem mais a ver comigo, só isso.

Para a terminar e desfazer possíveis equívocos. Erzsébetváros ficou-me no coração durante a santa luz do dia. Como não se enternecer com os almoços no restaurante Hanna, nas imediações da Sinagoga Ortodoxa? Como não se deliciar com a esposa do Rabino e aquela habilidade de fazer crer toda uma clientela que fora convidada a desfrutar duma refeição em sua casa?