Caminhar em contramão – (Memória de Mamute, II)

por Vitor Vicente
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Em Março de 2019 (tivesse sido no ano seguinte e a história seria outra, ou melhor não seria nenhuma, não haveria nada para contar) embarquei numa viagem de cinco semanas, sem a garantia de, no retorno, continuar em Budapeste. A regressar, isso era certo, almejava viver em Buda; ou na tal parte de Peste com trejeitos de Buda.

Naturalmente, o desejo tornou-se realidade. Arrendei um apartamento no II, um dos bairros onde Buda é mais Buda que noutros bairros de Buda. Quando digo naturalmente, não o pretendo dizer com lisonja ou arrogância. Apenas remeter à confiança e clareza com que comunicava na época. Em poucas palavras, sabia o que queria; as pessoas, mais ou menos conscientemente, querem estabelecer relações, pessoais ou de negócio, com quem se apesenta plenamente presente.

Falando em presenças. Aqui o Budaboy não tinha praticamente amigos na cidade. A maioria partira para outras paragens ou virara-me costas sem deixar oportunidade de resposta. O único entretenimento era o Tinder e afins; num primeiro momento, pode dar ideia de um quotidiano divertido, mas – acreditem – era feito de desafios diários.

Como disse, fixei-me no bairro II, um dos maiores bairros da cidade. Convém acrescentar que intencionalmente me encontrava a poucos minutos do elétrico 4/6, para o caso de sentir falta do centro. A atenção, no entanto, virou-se para outro lado, preferindo, por exemplos, gozos tão singelos quanto avistar o castelo da varanda; ainda que o dito ficasse no bairro I, o fato de se encontra ao alcance da vista, tornava-o meu vizinho e forçosamente parte do II, por mais que as cartografias oficiais corroborassem o contrário.

No terraço do ginásio, além do castelo, avistava o parlamento e o aglomerado verde de Buda, conjunto paisagístico que eu assumia como posse e simultaneamente me possuía, conduzindo-me a intempestivos acessos de nostalgia. No fundo, eu antevia o um dia em que teria saudades daqueles desprendidos momentos, comportando-me como um mamute (roubo a metáfora ao nome do centro comercial lá do sítio) que se aceita em vias de extinção e encara a desdita com o traquejo dos estoicos.

Semelhante sentimento tive antes e durante a pandemia (quando se poderá dizer depois desta porra?) na rua Lövőház. Jamais experienciei nenhum dos prazeres no efetivo tempo presente, fosse beberricar um fröccs  numa esplanada, desgustar um kürtőskalács com ponche (jamais esquecerei os grupos de gente a beber em Novembro em Dezembro, transformando Lövőház na nova Király) ou o queijo de cabra frito, irrigado com mel, cozinhado por malta da Transilvânia (entretanto, abriu um restaurante Bielorusso; desculpem, não conta para a diversidade, demasiado incolor para o arco-íris).

Querem variedade? Olhem, vão para o körút. Anda por lá um camaleão, chamado Jégkert, que é pista de patinagem no gelo no Inverno e vira Ruin Pub no Verão.

Até à data, cinjo-me ao Országút, uma das inúmeras partes do II. Na praça Szél Kálmán, além de se respirar os ares puros da Europa Continental, sem quaisquer contaminação ou micróbios (qualquer coisa contra, ponham a máscara e calem-se), pode-se apanhar um dos elétricos para as colinas de Buda ou então o dezassete, com paragem na sinagoga Frank Leo, um dos templos mais kitsch de que guardo memória.

Novamente em nome do multiculturalismo, temos as termas Király e que remontam à ocupação Otomana, e a tumba dum turco chamado Gül Baba.

Se a fome persiste, temos bom remédio. Ainda no II, junto ao Danúbio, sugiro o meu Trófea preferido, com a habitual comida (e champanhe) à discrição, acrescentada de um piano a transformar a atmosfera numa autêntica cerimónia; estava fechado quando me mudei para Cork, porventura reabre quando se acabar com o covid?

Nunca acabarei é de narrar a benção de, durante dois anos, morar num bairro como o II. No segundo ano, por conta da tal coisa que teima em não terminar, passei a esmagadora maioria do tempo em casa e na varanda com vista para o castelo; Budapeste tornou-se-me o bairro II, eu num mamute milenário. (Uma última referência, digo vénia, às e-árvores inteligentes do parque Millenáris, servindo de aquecedor nas estações frias e fazendo sombra no estio).

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