Viverias em Lipótváros? As respostas dividem-se fundamentalmente em duas: nem pensar ou quem me dera. Apesar de opostas nos apetites, ambas as respostas assemelham-se na carência de racionalidade; ficam-se pelo imediato horizonte das emoções.
Não obstante os distintos intentos, são de certa maneira consensuais na condicional cretinice que lhes abre caminho: tivesse eu vinte e poucos anos, tivesse eu carradas de dinheiro. A primeira das suposições mostra que muito boa gente desconhece que a idade é como as estações do ano, à medida de um determinado propósito; nada há mais abjeto que alguém a comportar-se como se estivesse no pico do Estio a vida inteira ou todos os dias fossem feriado, de costas adolescentemente voltadas ao dever.
Dinheiro junto com juvenília também não chega; se bem que dinheiro ajuda, sobretudo quando é suficiente para fazer esquecer a sua própria presença. Sentado a uma janela do bairro judeu de Cork, recordo um par de irlandeses imberbes que conheci no ano de 2010, ambos nascidos e crescidos em Bray, desejosos de se mudar para o centro da cidade (Dublin), assim que o primeiro cheque caísse na conta. Troque-se Bray por Cascais e o centro de Dublin pelo Bairro Alto e creio ter o caso esclarecido; clarificado, dirão aqueles a quem o acordo ortográfico se selou com a diáspora. Seja no Èire, seja em Portugal ou até na Patagónia ou Buenos Aires, ao fim de alguns anos, a rapaziada vai acasalar, pagar uma hipoteca e retornar às origens; talvez no retângulo à beira do Atlântico o fenómeno se apresente ligeiramente diferente, a falta de emprego vote a malta a inúteis doutoramentos e outros triviais estudos, em detrimento de olear a funcionalidade do mundo.
O mundo do bairro V de Budapeste, por seu turno, encontra-se igualmente apartado da realidade. Em rigor, não consta do subestimado quotidiano. A Basílica, o Parlamento, as esplanadas e hotéis junto ao Danúbio apenas estão presentes para quem se encontra de passeio; ou para quem se pode dar ao luxo de encarnar, em todo o esplendor, o verbo passear, por exemplo as elites de outrora no paredão de Balatonfüred.
Os hotéis à beira do Danúbio recordam-me (enquanto me mantenho sentado à tal janela no antigo bairro judeu de Cork) duas histórias: um francês bebedolas numa feira de hotelaria em Paris, a chorar baba e ranho por o empregador lhe ter reservado um quarto em frente à Torre Eiffel e uma deslumbrante italiana que conheci num jantar de trabalho em Budapeste e que se encontrava hospedada no Marriot, perto da ponte Szechenyi e com vista para o castelo, citadella e afins.
Lipótváros é também o terreno predileto de gajas boas com mau feitio e gajas, que não sendo putas, procuram papel ou um patrocinador com pernas. No fundo, este irreal bairro (nota: irreal é diferente de inexistente) prova que, em paralelo, existem o minúsculo mundo dos ideólogos e o mundo (ou o mundo ponto, o mundo sem merdas), sendo o segundo, como comprovam os censos, maior do que o supõem certas e insuspeitas sondagens.
Lugares como a rua Váci e a praça Vörösmarty, a bem ver, pertencem ao domínio feérico. Servem de nutriente às multidões de turistas, oferecendo-lhes o transcendente a que a modernidade ordenou extinção, matando-lhes a fome de além de que padecem os que sobrevivem o dia a dia em sítios rente à terra e reconciliando-os com o divino de que a tirania tecnológica divorciou.
Pela minha parte, enquanto residente, pouco vivi de Lipótváros. Ao menos, para consolo da consciência, não perdi a oportunidade (de ouro, como se querem as verdadeiras oportunidades) de ir a uma discoteca por volta das nove da noite, em plena pandemia, quando as ditas fechavam as portas antes da meia-noite, tudo para o benzinho da sacra-saúde pública. Conto voltar ao bairro V com mais dinheiro e menos juventude. Fica a promessa, jurada a pés juntos, ainda sentado aquela janela da antiga judiaria de Cork.