Reencontro o meu amigo G. para um almoço no meu bairro, ele que venha para estas bandas, para variar. Lembram-se dele, do seu sorriso largo e generoso? Convido-o como sempre para almoçar, retribuindo-lhe assim os pequenos trabalhos de revisão que regularmente me vai passando. Optamos por um daqueles bons talhos húngaros que também servem almoços de carnes fritas e pratos robustos. O meu amigo aprova, naturalmente, mas uma vez lá dentro, na fila para pedir, o seu olhar atento logo identifica dois ou três detalhes suficientes para qualificar a casa como já demasiado moderna, não tão tradicional como o esperado, ou então “já bem diferente dos lugares de antigamente em Budapeste”, onde vinha almoçar a classe trabalhadora, a quem o estabelecimento emprestava canivetes (nada de garfos) para talhar a carne e cortar fatias de pão. Que o antigamente de Budapeste já faz parte para sempre do passado, até eu já o percebi, meu querido G., desde que fechou a tal última e mítica tasca de Kazinczy utca, com a sua pálinka comunitária e reconfortantes sandes de frango panado. Talvez do passado tenham infelizmente ficado apenas certos maus hábitos, disfarçados de coisa nova, mas que sinceramente já não enganam quase ninguém. As boas csárdas ficam fora da capital, nessas vilas e aldeias das vastas planícies húngaras, onde só se chega por estradas insuspeitas pejadas de imigrantes ilegais.
Adiante, falemos de bola, entretanto já sentados a comer. Decidi-me por um cordon bleau com arroz, frito na hora e anunciado à boa maneira tradicional (gordon). Comento-lhe que o quase heroísmo magiar neste Campeonato da Europa nada fica aquém de tantos outros quase-sucessos da história deste país. Esse ambíguo sentimento de orgulho sem proveito, que por aqui produziu alguns feriados nacionais, mas que como sabemos no futebol conta muito pouco. O que aliás me incomoda verdadeiramente é como Portugal conseguiu perder contra aquela pálida Alemanha, mas enfim, elevemos agora um pouco a conversa. Fala-me G. do brilhante livro de Péter Eszterházy, Utazás a tizenhatos mélyére, no qual o autor trata eloquentemente da sua relação pessoal com o beautiful game, não esquecendo naturalmente, a propósito de alemães, essa célebre final do Campeonato do Mundo de 1954. Reflexões sobre uma tragédia, a de Berna, à qual o adversário chamou milagre. Nessa final, perdeu a Hungria, perdeu a melhor e invencível equipa, e o mundo de futebol registou mais uma vez que as equipas só são invencíveis até ao dia da derrota. Eszterházy fantasia sobre como tudo teria sido diferente caso a Hungria se tivesse sagrado campeã do mundo nesse funesto dia. E eu ponho-me subitamente a pensar em como seria a minha vida hoje se Ederzito António Macedo Lopes não tivesse nascido em Bissau nesse benfazejo dia de Dezembro, ou se a Guiné não tivesse sido nossa. Voltando de Bissau a Berna, o meu amigo G. fala-me de dados mais concretos, possíveis explicações racionais para a derrota quase sobrenatural desse dia: o adversário que se apresentou com jogadores diferentes dos que haviam perdido 8-3 no primeiro jogo contra a Hungria, as novas e revolucionárias chuteiras da Adidas com pitões substituíveis, o tempo chuvoso a beneficiar os alemães, duas controversas decisões do árbitro inglês, a lesão de Puskás… Eu pessoalmente lamento, faltou sem dúvida um título àquela inesquecível equipa húngara, pois na verdade uma medalha de ouro olímpica em futebol não é grande coisa aos olhos de hoje.
Dificilmente a Hungria voltará a jogar uma final ou Portugal a ganhar um Europeu. O futebol é mesmo assim, um pouco como a existência, essa arbitrária sucessão de momentos de glória e fracasso. Talvez o futebol ainda assim um pouco mais épico que a vida, mas de resto em tudo semelhante, que o que interessa é bola para a frente, força nas canetas e aproveitar as poucas oportunidades que temos para erguer um caneco.