Baleias

por Luís Serpa
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Há dias fui ouvir um concerto do Chico António, um (justamente)  reputado artista local que cultiva uma certa semelhança física com o Miles Davis. O concerto foi mau, ou pelo menos medíocre. O que mais me impressionou foram os seios da cantora: eram enormes, cada um deles maior do que a cabeça dela. Os dois juntos faziam pensar numa baleia encalhada na praia. Cantava bem e era muito simpática.

Havia também uma dançarina, muito magrinha, cujo corpo parecia estar dividido em seis partes: dois braços, duas pernas, a cabeça e o torso. E cada uma destas partes, por sua vez divididas em subpartes e subsubpartes parecia dançar independentemente das outras, coordenada somente por qualquer coisa exterior à miúda. Era impressionante vê-la mexer-se porque parecia que se estava a ver seis pessoas dançar ao mesmo tempo e com o mesmo ritmo, todas em harmonia, todas sincronizadas. Mas havia um só corpo e um só sorriso que lhe atravessava a cara como uma linha de metro a cidade e era honesto, bonito, comunicativo.

Há anos que escrevo e reescrevo um poema que começa assim:

Por que portos navegaste,

Por que corpos?

Por que praias encalhaste,

Por que ventres?

Não me lembro bem do resto: cada versão é diferente da anterior (para pior) e está perdida noutro computador. Acaba mais ou menos assim:

Para que nortes navegaste,

Para que mortes,

Solidões?

Vem isto a propósito dos seios da cantora: quando as baleias encalham na praia morrem esmagadas pelo próprio peso: cada órgão esmaga o que lhe está por baixo. As baleias morrem esmagadas por si próprias, como eu. Só que ainda não estou morto e ainda não perdi a vontade de lutar. Afinal de contas conheço muitas histórias de pessoas em situações piores do que a minha. Como a daquele pescador de bacalhau que se perdeu no bote e apertou as mãos à volta dos remos para que, quando estas gelassem, pudesse continuar a remar – e assim chegou à Islândia. Tiveram de lhe serrar os punhos. Este mesmo gajo atravessou mais tarde o Atlântico sozinho, à vela, se bem eu ainda esteja para perceber como é que o fez sem mãos – e não só o fez, como ainda foi mais rápido do que o Alain Gerbault, que tinha as duas mãos e escrevia muito bem, mas que para navegar mais valia estar quieto.

Ou então uma das minhas histórias favoritas, a do capitão “Fora ou Dentro”, como ficou a ser conhecido. Esse capitão era mau e nos tempos em que a maldade era norma, ser considerado mau tornava certamente aquilo a que os ingleses chamariam “mau carácter” num understatement. O homem era odiado, profundamente odiado pela tripulação, que um dia decidiu deitá-lo ao mar. Ora se há um tabu no mar é o de que não se deitam homens vivos ao mar – pode-se castigá-los (as possibilidades de castigo são inúmeras, limitadas somente pela imaginação ou pela crueldade de quem o faz: enforcar a vítima, deixá-la morrer à fome, passar-se-lhe os ferros, dar-se-lhe a volta por debaixo do casco do navio amarrada pelos pés e pelas mãos) – mas não se deita uma pessoa viva ao mar. Muito menos o capitão, claro está. Mas este era mau, horrivelmente mau; um dia, um grupo de homens pegou nele e deitou-o borda fora. Quando estava do outro lado da balaustrada os homens não conseguiram largá-lo (é difícil matar uma pessoa, não é? Esperar que ela morra é mais fácil) e ficou ali nas mãos de marinheiros a quem tinha batido, injuriado, humilhado, insultado, a dois metros de uma água na qual quando muito sobreviveria três minutos. Os homens hesitavam em deixá-lo ir e ele disse-lhes:

– Ou fora ou dentro, seus filhos da puta, que isto é que não é lugar para um homem.

Os pescadores não tiveram coragem de largá-lo, puxaram-no para bordo; o capitão arreou-lhes um arraial de porrada que ainda hoje é célebre nos anais da pesca do bacalhau. Quando chegaram a terra fez uma participação disciplinar, nessa altura o castigo supremo. Quando os hábitos “novos” chegaram ao bacalhau, os pescadores passaram a pedir aos jovens oficiais que lhes batessem mas que não participassem à companhia as faltas e erros cometidos.

Tive poucas condições muito extremas enquanto naveguei. Como cada um de nós tenho a minha quota-parte de mau tempo, sendo sem dúvida a pior o ciclone que apanhei no Atlântico; e alguns dias sem vento, igualmente horríveis, se bem de uma forma diversa. Uma vez vinha sozinho dos Açores no AQUARELLE, um barco cuja beleza estava muito longe de corresponder à do nome. Não havia um sopro de vento, tinha arriado o pano e decidido ir ver o que se passava com o alternador, que não estava a carregar as baterias como devia ser. A meio do trabalho, por nenhuma razão em especial, resolvi vir cá acima. A vinte metros do barco passava, imperial, uma baleia de bossa. O mar estava calmo como uma piscina, transparente; com o efeito de lupa a baleia – já de si enorme – parecia ainda maior. Passou-me por bombordo, calma, imponente e desapareceu. Voltei para baixo e continuei a desmontar o alternador. Pouco depois, a mesma intuição fez-me voltar ao convés. Desta vez ela passava por estibordo, em sentido contrário, ainda mais perto do barco. Seriam precisos dons de escritor muito superiores aos meus para dar conta da beleza do espectáculo. Um mar liso como alguns ventres de que me lembrarei toda a vida, totalmente transparente. A baleia não estava a mais de dez metros. Podia ver-lhe a pele e as inúmeras marcas que a adornavam, lembrança talvez de titânicos combates com gigantescos monstros das profundezas; podia sobretudo cheirá-la – não há na terra ou no mar cheiro pior, mais pestilento, mais infecto do que o de uma baleia, tem qualquer coisa de mágico, de tão mau, tão primordial, tão de profundis. Ali estava, pano arriado, um magnífico dia de sol, a duzentas e cinquenta milhas dos Açores, na companhia de uma baleia de bossa que pesava pelo menos o dobro do meu AQUARELLE e media um bom metro mais do que ele. A cena era linda, maravilhosa, um barco parado num oceano azul imóvel, mas eu inquietei-me: semanas antes lera a história de um solitário bastante experiente que chamara o CROSSMED (o organismo francês de busca e salvamento no mar) porque tinha uma baleia a coçar as costas na quilha do barco. Tratava-se de um tipo experiente, dizia ao CROSS sabia não haver nada a fazer, só lhes pedia que ficassem alerta porque os nervos e a quilha estavam quase a abandoná-lo e talvez fosse preciso irem buscá-lo. Ali onde eu estava não havia CROSS nem apoio psicológico – mesmo tendo uma confiança ilimitada no AQUARELLE, uma espécie de cofre-forte flutuante, não tinha vontade nenhuma de servir de escova de costas a uma baleia que sobrevivera a todos os combates que a tinham marcado com tantas cicatrizes. Via-lhe os olhos cruéis, pequenos, pareciam-me fixos em mim. Via-lhe a pele com as cicatrizes e crustáceos agarrados, a cauda – e percebi que tinha de me pôr a andar dali para fora a toda a força: o bicho estava a dar meia-volta mesmo à minha popa, a meia dúzia de metros do barco. Desci a correr para pôr o alternador em condições de ligar o motor. Quando subi já ele estava de novo ao meu lado, agora ainda mais perto, quase a tocar o casco. Pus o motor a trabalhar e assustou-se: expirou um grande jacto de água ainda mais mal-cheirosa e mergulhou batendo violentamente com a cauda no mar. O barulho foi ensurdecedor. Parecia um tiro de uma peça de artilharia. O AQUARELLE vibrou até ao galope do mastro. O meu coração batia tão fortemente que fechei a boca, não se fosse embora e deixar-me ali sozinho.

O vapor de água e o repugnante cheiro rapidamente se dissiparam. Os traços do mergulho desvaneceram-se; de repente, tudo estava outra vez calmo, o AQUARELLE sozinho no mar e eu sozinho dentro dele. Ao fim de meia hora parei o motor; depois dei com a avaria do alternador e acabei de montá-lo. De vez em quando olhava para baixo, para o azul do mar, sabendo ser perfeitamente inútil. Não a veria chegar se ela se quisesse vingar do susto que lhe tinha pregado.

São animais surpreendentes, as baleias. Nos anos que se seguiram vi muitas e ouvi muitas histórias sobre elas. Os homens que as caçavam também são impressionantes. Na Horta conheci um desses arpoadores (de cachalotes, nos Açores é o que se caçava: as baleias afundam-se quando mortas), um dos últimos. Era grande: cada um dos seus braços parecia uma das minhas coxas e cada uma das coxas era do tamanho do meu torso. Deslocava-se numa motocicleta ridícula, que desaparecia totalmente debaixo daquela massa de músculos. Só se via a parte inferior dos pneus, completamente vazios porque não havia pressão que suportasse o peso de tamanho monólito. Via-o passar todos os dias à frente do Peter; aqueles braços faziam-me sentir uma certa pena dos bichos. Sempre pensei que o seu grande problema devia ser o de medir a força com que atirava o arpão, não fosse este atravessar o cachalote e perder-se nas profundezas do mar.

Eu também precisava de uma força assim para lutar contra as baleias que me invadem e me sufocam e me assaltam de todos os lados.

Excerto do livro Avenida da Liberdade, nº 1

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