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Assista aos vídeos de apresentação da obra “À Beira do Danúbio” da autoria de Vitor Vicente

Neste livro, Vitor Vicente, entra para a galeria dos ultrarrealistas contemporâneos que estão a registar o fim do Ocidente e o advento de um admirável mundo novo qualquer”, conforme refere o escritor brasileiro Fábio Gonçalves, a propósito do recentemente publicado livro de memórias “À Beira do Danúbio”.

Também Levy O`Liver antoja “À beira do Danúbio”, desta feita em Budapeste, onde o autor-andarilho residiu cerca de quatros anos, encontrando uma Europa a desvanecer-se e um país que quer e não quer a nobre missão de se assumir como o bastião da civilização. Este alerta, juntamente com o descarado carnaval nas aplicações de dating, remetem imediatamente para o Houellebecq referido por Fábio. Bret Easton Ellis será menos evidente que o francês, mas o seu estilo cru e cáustico ecoa igualmente na escrita de Vitor Vicente. A que podemos juntar toda uma anónima panóplia de pícaros viandantes da literatura classico-ibérica, da qual emergem o par de afamados nomes de Bocage e Lazarillo de Tormes.

“À Beira do Danúbio” é uma narrativa cruel e, de certo modo, profética. O leitor que sofra de vertigens morais, sejam as pós-modernas ou as chamadas tradicionais, que se prepare para um sítio tão próximo do precipício como do prepúcio, tal como Levy O`Liver o caracteriza e o coloca diante dos nossos olhos.

Assista aos vídeos de apresentação do Livro “À Beira do Danúbio”, escrito em Ráckeve (Hungria):

 

Estamos aqui literalmente “À Beira do Danúbio”

 

 

 

 




Caminhar em contramão – (Corolário ao contrário, Várkerület, I)

Antes de avançar – na verdade, antes de arrancar – cabe-me deixar as desculpas pelo tom atabalhoado, bruto e deselegante com que me despeço; agravado por o derradeiro bairro, Várkerület, ser tudo menos atabalhoado, bruto e deselegante.

Comecemos por – exercício repetido no decurso da caminhada que agora termina – desconstruir o nome do bairro em questão. Várkerület significa literalmente o bairro do castelo. O bairro pertence ao castelo, e não o inverso; por outras palavras, o bairro fica no castelo, e não o contrário.

Assim dito, parece que venero o castelo como antes se veneravam as catedrais nas aldeias. A cronologia da minha relação, igualmente atabalhoada, bruta e deselegante, não o comprova. Das duas vezes que visitei Budapeste na condição de turista, nunca lá pus os pés. Enquanto residente, foi preciso um par de meses; para ser sincero, foi preciso uma rapariga austríaca marcar o date no tal do castelo. Nos últimos dois anos na cidade, morei num apartamento com vista para as torres do dito. Na semana em que me mudei para Cork, dediquei ao monumento um passeio vespertino; tão vespertino quanto possível com a loucura do lockdown.

(Um parênteses quanto ao supradito passeio, inspirado pelo meu bom amigo indiano Tejas, cujo casamento espero para breve e a quem tenciono brindar com uma despedida de solteiro num Irish Pub a sério, leia-se na Ilha Esmeralda. Quando voltar a Budapeste, espero passar mais tempo na rua de manhã que durante o cair da noite. Voltar a ver o castelo – e o Danúbio do castelo – em pleno nascer do sol, e partilhar as termas de Rudas – e também ver o Danúbio do terraço das termas – com velhos húngaros, daqueles de costas largas e que jogam xadrez nas e fora das brochuras turísticas.)

(Outro – eu disse que não me sabia despedir como deve de ser – parênteses. Na última semana em Budapeste, por conta da idiotice do hotel-quarentena na Irlanda, a mudança esteve em cheque até ao último segundo. Semelhante fenómeno – no caso, devido a um vulcão na Islândia – me aconteceu aquando da saída de Barcelona. Existe um elemento comum que me prende a Barcelona e Budapeste; era só isto, podemos continuar às arrecuas, entre soluços e solavancos).

Nos últimos tempos na cidade caminhei amiúde de casa até à praça Batthyány; onde Budapeste é Budapestísima. Noutros tempos, bebi grades de cerveja no bar belga ali ao lado, donde saí torto e apanhei o elétrico errado. Num par de ocasiões encontrei-me no castelo na calada da noite. Nunca dormi no Hilton; fi-lo em Dublin. Enfim, chega de pôr os pés pelas mãos e as noites pelas manhãs. Hasta la vista, Budapeste!




Caminhar em contramão – (Memória de Mamute, II)

Em Março de 2019 (tivesse sido no ano seguinte e a história seria outra, ou melhor não seria nenhuma, não haveria nada para contar) embarquei numa viagem de cinco semanas, sem a garantia de, no retorno, continuar em Budapeste. A regressar, isso era certo, almejava viver em Buda; ou na tal parte de Peste com trejeitos de Buda.

Naturalmente, o desejo tornou-se realidade. Arrendei um apartamento no II, um dos bairros onde Buda é mais Buda que noutros bairros de Buda. Quando digo naturalmente, não o pretendo dizer com lisonja ou arrogância. Apenas remeter à confiança e clareza com que comunicava na época. Em poucas palavras, sabia o que queria; as pessoas, mais ou menos conscientemente, querem estabelecer relações, pessoais ou de negócio, com quem se apesenta plenamente presente.

Falando em presenças. Aqui o Budaboy não tinha praticamente amigos na cidade. A maioria partira para outras paragens ou virara-me costas sem deixar oportunidade de resposta. O único entretenimento era o Tinder e afins; num primeiro momento, pode dar ideia de um quotidiano divertido, mas – acreditem – era feito de desafios diários.

Como disse, fixei-me no bairro II, um dos maiores bairros da cidade. Convém acrescentar que intencionalmente me encontrava a poucos minutos do elétrico 4/6, para o caso de sentir falta do centro. A atenção, no entanto, virou-se para outro lado, preferindo, por exemplos, gozos tão singelos quanto avistar o castelo da varanda; ainda que o dito ficasse no bairro I, o fato de se encontra ao alcance da vista, tornava-o meu vizinho e forçosamente parte do II, por mais que as cartografias oficiais corroborassem o contrário.

No terraço do ginásio, além do castelo, avistava o parlamento e o aglomerado verde de Buda, conjunto paisagístico que eu assumia como posse e simultaneamente me possuía, conduzindo-me a intempestivos acessos de nostalgia. No fundo, eu antevia o um dia em que teria saudades daqueles desprendidos momentos, comportando-me como um mamute (roubo a metáfora ao nome do centro comercial lá do sítio) que se aceita em vias de extinção e encara a desdita com o traquejo dos estoicos.

Semelhante sentimento tive antes e durante a pandemia (quando se poderá dizer depois desta porra?) na rua Lövőház. Jamais experienciei nenhum dos prazeres no efetivo tempo presente, fosse beberricar um fröccs  numa esplanada, desgustar um kürtőskalács com ponche (jamais esquecerei os grupos de gente a beber em Novembro em Dezembro, transformando Lövőház na nova Király) ou o queijo de cabra frito, irrigado com mel, cozinhado por malta da Transilvânia (entretanto, abriu um restaurante Bielorusso; desculpem, não conta para a diversidade, demasiado incolor para o arco-íris).

Querem variedade? Olhem, vão para o körút. Anda por lá um camaleão, chamado Jégkert, que é pista de patinagem no gelo no Inverno e vira Ruin Pub no Verão.

Até à data, cinjo-me ao Országút, uma das inúmeras partes do II. Na praça Szél Kálmán, além de se respirar os ares puros da Europa Continental, sem quaisquer contaminação ou micróbios (qualquer coisa contra, ponham a máscara e calem-se), pode-se apanhar um dos elétricos para as colinas de Buda ou então o dezassete, com paragem na sinagoga Frank Leo, um dos templos mais kitsch de que guardo memória.

Novamente em nome do multiculturalismo, temos as termas Király e que remontam à ocupação Otomana, e a tumba dum turco chamado Gül Baba.

Se a fome persiste, temos bom remédio. Ainda no II, junto ao Danúbio, sugiro o meu Trófea preferido, com a habitual comida (e champanhe) à discrição, acrescentada de um piano a transformar a atmosfera numa autêntica cerimónia; estava fechado quando me mudei para Cork, porventura reabre quando se acabar com o covid?

Nunca acabarei é de narrar a benção de, durante dois anos, morar num bairro como o II. No segundo ano, por conta da tal coisa que teima em não terminar, passei a esmagadora maioria do tempo em casa e na varanda com vista para o castelo; Budapeste tornou-se-me o bairro II, eu num mamute milenário. (Uma última referência, digo vénia, às e-árvores inteligentes do parque Millenáris, servindo de aquecedor nas estações frias e fazendo sombra no estio).




Caminhar em contramão – (Grandiosa Aldeia, Óbuda-Békásmegyer, III)

Do pouco que aprendi de húngaro, porventura manterei na retina alguns vocábulos, salteados, ou integrados em palavras. É o caso de “ó” e “új” e que significam respetivamente velho e novo.

Quando toma parte no nome de uma cidade, “uj” remete imediatamente para Nova Iorque. Na verdade, todas as cidades remetem para Nova Iorque, arquétipo urbanístico dos correntes tempos; pelo menos, dos tempos prévios aos covides e variantes.

“Ó”, velho ou velha, é outra história. Evoca a Europa; a própria palavra história já evoca a Europa, um bairro antigo, q.b. acolhedor e elegante para se encher de turistas, assim que as supraditas viroses foram desta para melhor.

Embora se encontre constituído de dois bairros cujos nomes começam por “új” (Újpest e Újbuda) e apenas um a começar por “ó”(Óbuda) Budapeste tem mais de “ó” que de “új”. Óbuda quer literalmente dizer Buda Velha; foneticamente parece um palavrão, uma certa coisa usada, deslavada.

No entanto, em Inglês soa bem: Old Buda. Combina com o cenário, na perfeição.

Óbuda será a Budapeste de antigamente, ou a Budapeste antes de se tornar Budapeste. Longe de se deixar atravessar, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, pela linha do elétrico 4/6, somente maculada por uma carreira de autocarro a ligar, de quando em vez, o bairro III ao centro da cidade.

O bairro III, a bem dizer, são dois. Óbuda, onde há pouco movimento e o ambiente é pacato, e Békásmegyer, um amontoado de casas de habitação social, outro desterro despido de identidade.

Sobressai a tranquilidade, a paz, uma certa auto-suficiência. Com um cheirinho à vila vizinha, Szetendre. O Danúbio, por estas bandas, não é espetacular, nem misterioso; transforma-se no rio que corre pela grandiosa aldeia de Óbuda.

Em suma, um nicho inspirador de simpatia (os pós-modernos, que aprenderam a escrever e a sentir em hashtags, substituíram simpatia por empatia).




Caminhar em contramão – (A improvável terra prometida, Újpest, IV)

À medida que nos aproximamos do final da caminhada, prestes a cortar a quimérica meta, movemo-nos sobretudo no coração da cidade. Com surpresa, no que se apresenta como etapa complementar ou coisa parecida, cruza-se Újpest nas nossas passadas.

Újpest não combina com o número (IV) atribuído aquando da criação da grande Budapeste; aquelas habitações sociais, o folclore e faunas a elas associados e o auto-evidente etc, comprometem-lhe o algarismo. Some-se ainda o fato de o bairro dar nome (também destoa no campo das letras) à última estação de metro da linha azul, confirmando a ideia de que se encontra nos arrabaldes.

Conheço Újpest desde pequenino; embora seja (entretanto, deixei de ser – quantas pessoas praticam o verbo deixar de ser no decurso das suas vidas?) do Honvéd desde pequenino. Os familiarizados com a expressão (ou com a sua génese) deverão ter facilmente adivinhado onde ouvi falar de Újpest. Aos outros acrescento que foi através do futebol. Aprendi geografia através do jornal 1X2; hoje em dia é mais Paddy Power. Aprendi “história” nas páginas do semanário Avante e propagandas afins; aos entendidos nas matérias estará explicada a minha afinidade de infância pelo Honvéd .

Nunca pus os pés em Újpest. Terei passado de automóvel; “posso permitir-me”, diria Heiner Müller, outro dissidente da revolução. À falta de informação fiável (o 1X2 tinha razão, os outros tudo treta) pesquiso o bairro quatro na Wikipédia. Sou informado de que Újpest foi criado por Judeus expulsos de Budapeste, para estas bandas atirados com a promessa de livre prática da fé e carta-branca para montar negócios; ou seja o que verdadeiramente interessa.

Por momentos, essa absurda repulsa ao bairro quatro dá lugar a uma certa reconciliação. À memória chegam-me duas pessoas que juntam judiaria a Újpest.1) Géza, Húngaro-Israelita, residente em Újpest após largos anos de Aliyah, primeiro em Arad e mais tarde em Eilat, a encaminhar delicadamente cretinos para fora das discotecas, ofício que lhe assentava como uma luva, dada a deliciosa simbiose de sentido de humor e modos de brutamontes 2) uma amiga colorida que morava a poucos metros da Shul lá do sítio, dividindo casa com um felino que se escapava para as imediações do dito templo todo o Shabbat.

A dar crédito à wiki, muitos outros ilustres judeus moraram em Újpest. Já vamos tarde, digo de mim para o meu Hanucat, ambos juntos à tal janela da antiga judiaria de Cork.




Caminhar em contramão – (Fascínio e Simulacro, Lipótváros, V)

Viverias em Lipótváros? As respostas dividem-se fundamentalmente em duas: nem pensar ou quem me dera. Apesar de opostas nos apetites, ambas as respostas assemelham-se na carência de racionalidade; ficam-se pelo imediato horizonte das emoções.

Não obstante os distintos intentos, são de certa maneira consensuais na condicional cretinice que lhes abre caminho: tivesse eu vinte e poucos anos, tivesse eu carradas de dinheiro. A primeira das suposições mostra que muito boa gente desconhece que a idade é como as estações do ano, à medida de um determinado propósito; nada há mais abjeto que alguém a comportar-se como se estivesse no pico do Estio a vida inteira ou todos os dias fossem feriado, de costas adolescentemente voltadas ao dever.

Dinheiro junto com juvenília também não chega; se bem que dinheiro ajuda, sobretudo quando é suficiente para fazer esquecer a sua própria presença. Sentado a uma janela do bairro judeu de Cork, recordo um par de irlandeses imberbes que conheci no ano de 2010, ambos nascidos e crescidos em Bray, desejosos de se mudar para o centro da cidade (Dublin), assim que o primeiro cheque caísse na conta. Troque-se Bray por Cascais e o centro de Dublin pelo Bairro Alto e creio ter o caso esclarecido; clarificado, dirão aqueles a quem o acordo ortográfico se selou com a diáspora. Seja no Èire, seja em Portugal ou até na Patagónia ou Buenos Aires, ao fim de alguns anos, a rapaziada vai acasalar, pagar uma hipoteca e retornar às origens; talvez no retângulo à beira do Atlântico o fenómeno se apresente ligeiramente diferente, a falta de emprego vote a malta a inúteis doutoramentos e outros triviais estudos, em detrimento de olear a funcionalidade do mundo.

O mundo do bairro V de Budapeste, por seu turno, encontra-se igualmente apartado da realidade. Em rigor, não consta do subestimado quotidiano. A Basílica, o Parlamento, as esplanadas e hotéis junto ao Danúbio apenas estão presentes para quem se encontra de passeio; ou para quem se pode dar ao luxo de encarnar, em todo o esplendor, o verbo passear, por exemplo as elites de outrora no paredão de Balatonfüred.

Os hotéis à beira do Danúbio recordam-me (enquanto me mantenho sentado à tal janela no antigo bairro judeu de Cork) duas histórias: um francês bebedolas numa feira de hotelaria em Paris, a chorar baba e ranho por o empregador lhe ter reservado um quarto em frente à Torre Eiffel e uma deslumbrante italiana que conheci num jantar de trabalho em Budapeste e que se encontrava hospedada no Marriot, perto da ponte Szechenyi e com vista para o castelo, citadella e afins.

Lipótváros é também o terreno predileto de gajas boas com mau feitio e gajas, que não sendo putas, procuram papel ou um patrocinador com pernas. No fundo, este irreal bairro (nota: irreal é diferente de inexistente) prova que, em paralelo, existem o minúsculo mundo dos ideólogos e o mundo (ou o mundo ponto, o mundo sem merdas), sendo o segundo, como comprovam os censos, maior do que o supõem certas e insuspeitas sondagens.

Lugares como a rua Váci e a praça Vörösmarty, a bem ver, pertencem ao domínio feérico. Servem de nutriente às multidões de turistas, oferecendo-lhes o transcendente a que a modernidade ordenou extinção, matando-lhes a fome de além de que padecem os que sobrevivem o dia a dia em sítios rente à terra e reconciliando-os com o divino de que a tirania tecnológica divorciou.

Pela minha parte, enquanto residente, pouco vivi de Lipótváros. Ao menos, para consolo da consciência, não perdi a oportunidade (de ouro, como se querem as verdadeiras oportunidades) de ir a uma discoteca por volta das nove da noite, em plena pandemia, quando as ditas fechavam as portas antes da meia-noite, tudo para o benzinho da sacra-saúde pública. Conto voltar ao bairro V com mais dinheiro e menos juventude. Fica a promessa, jurada a pés juntos, ainda sentado aquela janela da antiga judiaria de Cork.




Caminhar em contramão – (Segundo Renascimento, Terézváros, VI)

Nos meus últimos oitos meses em Dublin, morei em oito diferentes apartamentos. Muito haveria para contar acerca dessas andanças. Para a presente crónica, apenas importa ressaltar o seguinte: não obstante a instabilidade, senti-me em casa, sempre e quando os ditos ficavam no bairro 6 de Dublin; simplesmente chamados por bandas irlandesas de D6.

Nos restantes quatros anos em Dublin, morei quase sempre em D6 ou nas suas imediações. Desenvolvi uma imediata relação entre o número 6 e o tal sentimento difuso de “sentir-se em casa”; no mínimo, sentimento bizarro para uma alma andarilha.

Budapeste recebeu-me na rua Stolar Bella, no começo/fim do bairro V e com o VI ao virar da esquina. Ao fim de uma semana, mudei-me para Terézváros. Ao contrário de Dublin e em consonância com a atmosfera da capital húngara, os bairros de Budapeste apresentam-se com nomes pomposos; aprecio igualmente os dois estilos por entender ambas as éticas e contextos e sem o intento de me vender “open-minded” ou trajado com qualquer outra vaidade da época.

Terézváros, desde o começo, parecia-me perfeito. Podia ir a pé para todo o lado “walking distance”, sintetizado em Inglês. Pensando bem, tratava-se de herança céltica, esse contentamento por me encontrar a um quarto de hora a penantes do bairro da noite/judeu (vide crónica anterior), avenida Andrassy (lá iremos no parágrafo seguinte) e termas Szecheniy (onde pouco fui, mas pelo menos tive o privilégio de visitar num período menos doido da pandemia, despojado de turistas, para gáudio meu e dos seniores lá do sítio).

Andar, caminhar, deambular, Budapeste é uma autêntica passerelle para quem é dado a estes prazeres. Nada há em toda a Irlanda que se equipare a Andrassy; terreno adequadíssimo para terapia ambulante e auto-exorcismos afins.

Oktogon, uma das poucas palavras húngaras que tinha algum sentido no primeiro ano na cidade, fez jus ao significado. Como se habitasse o interior de um polvo e através dos respetivos tentáculos atacasse as áreas circundantes.

Falando em predadores. No perímetro de Terézváros fica o palco da maior parte dos“dates” que tive em toda a minha vida, assim como do date que pôs ponto final à sequência; lamento Bill Gates, não foi a Covid. Chamo-lhe palco por estar situado na chamada Broadway de Budapeste, em frente da Operetta e a poucos passos da Ópera Nacional; em frente da qual costumava encontrar-me com as presas, antes de nos encaminharmos para a arena, Mai Mano de seu nome.

O bairro VI compila todas as coisinhas boas da Hungria. Ambiente boémio, arquitetura elegante, odor a festim e banquete, saudosa essência europeia, e as criaturas por tudo isto atraídas.

Por último, e certo de perdido algo pelo caminho, duas menções honrosas. As esplanadas de Ferienc Tere (que evocam as paisagens noctívagas de Van Gogh) e aquela discoteca avant garde que merecia outo baptismo que não “Hello Baby”.

Foi em Terézváros que comecei verdadeiramente a viver em Budapeste e foi novamente no bairro VI que a cidade me acolheu num inesperado renascimento. Nascer duas vezes não é para qualquer um.




Caminhar em contramão – Toldos de vidro (Erzsébetváros, VII)

O passado quer-se, em última instância, como lição. Que forneça os fundamentos dos presentes e futuros sucessos, que nos abra caminho como uma tocha e desbrave a direção certa ou, no mínimo, adequada. É deste prisma que me apraz rever o período (um ano) passado na Polónia; uma espécie de preparação ou ensaio para a subsequente temporada em Budapeste.

Além de me equipar para o dia-a-dia num idioma incognoscível, a Polónia formatou-me sobremaneira o envolvimento com Erzsébetváros. Apesar de Kazimierz se apresentar mais compacto e quiçá acolhedor, as simetrias entre os dois bairros são evidentes. Aos olhos de quem chega do lado ocidental do continente, o primeiro choque são as sinagogas, pouco ou nada protegidas pelas autoridades locais; jamais esquecerei aquele Yom Kippur, a fazer fila para entrar no templo, sem que nos pedissem outra coisa que não a Kippah na cabeça ou que tirássemos uma da cesta e a colocássemos no devido sítio. O segundo são ainda as sinagogas e centro judaicos, aos magotes, renovadas com os subsídios dos governos nacionais.

O terceiro (já vão perceber o porquê do parágrafo) é o fato de ambos, Erzsébetváros e Kazimierz, se terem tornado o bairro de “sair à noite”; sem prejuízo do paralelo florescimento das respetivas Judiarias.

De resto, na primeira vez que saí em Budapeste (data que coincide com a primeira noite na cidade) fui levado ao Mazel Tov, um dos chamados ruin pubs, este dedicado a replicar o ambiente de Tel Aviv (em Cracóvia o congénere chama-se Hamsa). Quanto à criação do conceito de ruin pub, cabe a honra ao Szimpla Kert, traduzido à letra “Jardim Simples”, atraindo a detestável estirpe que se gaba de humildemente desdenhar a finesse e afins e que, nos tempos que correm, se auto intitula (não vivêssemos numa época em que a todos se assegura o inapelável direito ao auto intitulamento) de minimalistas. Salve ao Szimpla por iniciar a sequência que conferiu, até aos dias de hoje, um ímpar ambiente boémio às noitadas de Budapeste.

Tempos houve em que Erzsébetváros esteve entregue às mafias, aos tiroteios entre bandidos. Nesse sentido, relembra o velho Cais do Sodré, entretanto apaziguado com a Rua Cor de Rosa; enquanto Budapeste mantém à rua-mor o nome de Kiraly Utca, traduzido à letra “a rua do Rei”, título que noutras bandas já estaria rebatizado com algum disparate, tipo “rua Elisabete”.

De momento, o sete está às moscas, despojado de turistas e de quem deles subsiste. Não me refiro somente aos donos dos estabelecimentos, mas também de quem com eles labora; embora destes últimos não reze a história de quem nos impinge aulas de economia igualitária.

Falando ainda de dinheiro. Repetem-se as tentativas de regrar os horários dos bares de Erzsébetváros. O objetivo (não sejamos inocentes) é a sua exterminação. A tal da pandemia, ou a gestão da dita, ajudou, contribuindo com a sua quota-parte para a higienização do mundo. Estamos agora à espera que se encontre novo bairro, o substituto do sete nas respetivas hostilidades; ou seja, que se chegue à frente alguém influente e que possa operar a mudança para sua e para a satisfação dos camaradas do oculto comité.

Não me desperta propriamente pena. Aliás, o meu único lamento é ter passado maior número de noites no bairro sete que no cinco; acho que o segundo tem mais a ver comigo, só isso.

Para a terminar e desfazer possíveis equívocos. Erzsébetváros ficou-me no coração durante a santa luz do dia. Como não se enternecer com os almoços no restaurante Hanna, nas imediações da Sinagoga Ortodoxa? Como não se deliciar com a esposa do Rabino e aquela habilidade de fazer crer toda uma clientela que fora convidada a desfrutar duma refeição em sua casa?




Caminhar em contramão – Às arrecuas como nunca (Józsefváros, VIII)

Volto a escrever acerca de Budapeste (na verdade, volto a escrever) enquanto residente na Irlanda. Escrevo em diferido; naturalmente num outro registo, de tom transmutado.

Aceito a mudança como se nada fosse. Os antigos chamavam-lhe amor fati; os influencers da modernidade dirão o mesmo por prosaicas palavras. Posto isto, estou extremamente contente em Cork. Não confundir com contentamento por não me encontrar em Dublin ou em Budapeste. Apenas tenho a cabeça assente no presente; o coração, estilhaçado como sempre, toma o seu tempo.

Coube ao bairro VIII a desditosa honra de abrir o caminho redigido à distância; remoto diriam os supraditos influencers. Pergunto-me pelo porquê, convicto de que não existem acasos, somente provas por descobrir.

Foi em Jószefváros que comecei a sair da cidade, aceitando um emprego num escritório em Corvin, com a expetativa de durar coisa de um ano. A pandemia, ou o pânico pela palavra gerado, estendeu-o para dois; um ano foi quanto demorei a encontrar euro-emprego, se me faço entender.

O oito ficou-me como lugar de passagem, de etapa complementar. Talvez por isso os seus ares me inspirem leveza e em nada me pareçam pesados; por seu turno, trabalhar em casa no louco ano de 2020, amareleceu-me os aposentos e o opulento bairro II.

Segundo os standards de Budapeste, Jószefváros é o bairro multicultural e colorido. Para o tal do contentamento da estirpe que adora as outras etnias, sempre e quando não sejam suas vizinhas; no caso dos magiares, cumprem a máxima aparecendo no Aurora como quem visita um convento, ou simplesmente respondendo afirmativamente aos eventos do dito espaço na página do Facebook para os chamados efeitos de virtue signalling.

Essa malta não suportaria alertas contra a ciganada do bairro VIII, no entanto não teria quaisquer problemas em chamadas de atenção para potenciais atritos com alcoólicos. Da minha parte, nunca vi nada do outro mundo por estas bandas, preferindo reter a primeira vista que tive de Budapeste, quando cheguei à cidade na condição de turista há oito anos atrás, saindo da estação de Keleti e deparando uma saborosa combinação de estátuas socialistas, edifícios austro-húngaros a cair aos bocados e o Burger King.

Nem a propósito, o VIII é mais do que um bairro de lata. Convém recordar que o elegante Palota Negyed (literalmente Bairro do Palácio) encontra-se no perímetro de Jószefváros. O lembrete foi-me frisado por uma húngara feia como um camafeu e com umas mamas magníficas. (Lá está, onde menos se espera, esconde-se o tesouro…)




Caminhar em contramão – Praça do Recomeço (Ferencváros, IX)

Regresso à praça onde comecei a escrever esta sequência de artigos, ou seja, onde recebi a inspiração para abrir caminho em contramão. Quem diz inspiração, diz iluminação.

Não me recordo quem (Eugénio de Andrade? Paul Valery?) disse que o primeiro verso é uma bênção, o restante trabalho do poeta. Tem sido o caso desta caminhada; creio se aplicar igualmente às histórias (não confundir com episódios) de amor.

Inspiração, iluminação, bênção, tudo sinónimos da palavra dádiva. Que me chegou às mãos na praça Ferenc. Alguns, confusos, perguntarão: queres dizer Deak Ferenc? Antes de responder, outros, nativos e expats, acrescentarão em que parte de Deak?

Esclareça-se: é comum marcarem-se encontros na imensa praça Deak sem especificar exatamente onde, tendo-se tornado motivo de riso entre residentes.

A apanhar do ar, alguém recém-chegado a Budapeste ainda atira: queres dizer Listz Ferencz?

Nada disso. Trata-se da praça Ferenc, no bairro IX, pelos meus passos descoberta numa deambulação pós-expediente na era pandémica, antes de pernoitar na rua Mester.

A rua Mester, por seu turno , lembra-me a rua Talbot em Dublin. Ambas tinham tudo para serem recordadas como catitas, não fosse a indesejável abundância de alcoólicos e desordeiros afins.

Enfim, do bairro IX ficar-me-ão sobretudo as andanças na rua Mester e o centro comercial Lurdy transformado em cenário apocalíptico. Como é da praxe, as últimas memórias reescrevem grande parte da narrativa.

O começo, igualmente, mantém-se intacto; o meio, elo mais fraco, esvai-se. Desse capítulo retenho para sempre a rua Raday: os menus baratos, o delicioso frio azul em novembro, as incríveis estudantes de Corvinus, o turkish tea oferecido como complemento.

Sem esquecer o complexo de esplanadas Balna, junto ao Danúbio, observatório de espetaculares poentes e brasas andantes do estio. Onde me despedi da rapaziada da rua Raday, ou do que desse gang ainda resta na cidade.

O nove, por tudo isto, tornou-se-me número cíclico.