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Örkény István Contos de Um Minuto – Egyperces novellák – Traduzidos por Ernesto Rodrigues

Örkény István (1912 – 1979)  escritor húngaro. Estudou primeiro para farmacêutico e depois para engenheiro químico. Publica desde 1937.  Sua atividade literária regular começou nos anos 1950. Após várias obras de géneros diferentes encontrou a sua melhor expressão na prosa grotesca: assim nasceram seus Contos de Um Minuto (1967). Havemos de mencionar sua peça teatral  A família Tóth (Tóthék, 1967) que apresenta a história de um major com trauma de guerra que leva à loucura a pacata família que o recebe durante sua licença médica.

 

 

 

MODO DE USAR

HASZNÁLATI UTASÍTÁS

O facto de estes contos serem curtos nada retira ao seu valor. A vantagem é que se poupa tempo por não exigirem uma atenção prolongada durante semanas ou meses.

Enquanto o ovo coze ou se espera que a linha telefónica fique desimpedida, podemos ler um conto de um minuto. O mal-estar e o nervosismo não são obstáculo. Podemos lê-los sentados, em pé, quando chove, sob rajadas de vento ou viajando num autocarro a abarrotar. A maioria deles lê-se quando em passeio.

É importante prestar atenção aos títulos. O autor aspirava à brevidade, donde não poder dar títulos insignificantes. Antes de apanhar o eléctrico, vemos o respectivo número. Assim, o título é igualmente importante para estes contos. Isso não significa que seja suficiente ler somente os títulos. Primeiro, o título; e, depois, o texto. Eis o único modo correcto de usar.

Atenção! Se alguém não compreender, volte a ler o conto. Se mesmo assim não compreende, então, o defeito é do conto. Não há homens estúpidos, só há contos de um minuto maus.

 

FENÓMENO

JELENSÉG

Uma rolha de cortiça, em nada diferente das outras rolhas (chamava-se G. Sándor Hirt, mas que significa um nome? um nome nada significa), caiu à água.

Por um tempo, como era de esperar, flutuou, mas, logo a seguir, aconteceu uma coisa estranha. Lentamente, começou a descer, foi ao fundo, e já não veio à superfície.

Não há explicação.

 

ATÉ OS SONHOS MAIS OUSADOS SÃO REALIZÁVEIS

 LEGMERÉSZEBB ÁLMAINK IS MEGVALÓSÍTHATÓK!

– Querido Feri, este terceiro cão não puxa.

– Infelizmente, o meu chicote é um pouco curto.

– Creio, mesmo, que é como se coxeasse um pouco.

– Como não havia de coxear, se só tem três patas?!

– Oh, pois é… Não lhe custa atrelar ao carro um animal mutilado?

– Veja bem, Ilonka. Os meus doze cães têm todos três patas.

– Ai, coitados!

– Tenha antes pena de mim, Ilonka. Corri todos os esfoladores para conseguir doze cães com três patas.

– Posso não perceber nada, mas não custa a crer que um cão normal é mais resistente e puxa melhor.

– Isso não discuto. Mas eu sou um verdadeiro citadino. O que faria com doze cães de quatro patas?

– Tem medo deles, Feri?

– Eu até tenho medo da picada do mosquito. É preciso ter cuidado com as forças da natureza. Suponhamos que estes cães endoideciam. Suponhamos que me arrancavam as rédeas… É melhor nem pensar nisso, Ilonka!

– Então, não percebo. Se tem medo dos cães, porque é que lhe puxam o automóvel?

– Porque conduzo mal.

– Isso aprende-se.

– Mais ou menos, cara Ilonka… Homem e carro não estão ao mesmo nível.

– Olhe à sua volta. Não se vê um único carro puxado por cães!

– Isso é muito mau! O homem, infelizmente, já não consegue jugular a técnica. Serve-se dela, mas, no fundo, teme-a.

– Eu não tenho medo do automóvel.

– Mas este Simca é capaz de dar cento e cinquenta quilómetros à hora…

– Ainda me parte o coração, Feri… Adoro a velocidade!

– Você é insaciável. Há dez dias que partimos de Budapeste e, olhe,já estamos em Siófok[1].

– Com doze cães, não é lá grande feito.

– Claro que não. Só que eu puxei o travão de mão em Budapeste.

– Não é prudência a mais?

– Fomos criados exactamente para esta cadência.

– Vê essa gente toda a olhar para nós?– Invejam-nos.

– Os olhos até lhes saltam das órbitas.

– Porque vêem que os sonhos mais belos são realizáveis.

[1] Cidade a 106 quilómetros de Budapeste, por auto-estrada. (N. T.)

 

 




O Sport Lada vermelho dos nossos sonhos

Pál Dániel Levente

Do livro  O Oitavo Distrito de Deus

O Sport Lada vermelho dos nossos sonhos

Álmaink piros sportladája

Uma noite destas, após o cinema, voltava para casa, na Rua Práter, com minha namorada, vínhamos de mãos dadas, respirando os perfumes, os aromas e a névoa de emoção que nos rodeava. Íamos para casa, conversando, quase sem trocar uma palavra. Ou seja, como se nos entendêssemos só de olhar e por meias palavras. Seguíamos, pois, quando ela descobriu uma carrinha Lada pintada com flores ao estilo Woodstock. A julgar pelos pneus furados, era como se estivesse ali parqueada até ao fim dos tempos. Estava cheio de porcaria, de todo o tipo de lixo, e com sacos de mudança entretanto abandonada. Terminara o tempo da juventude em flor, Woodstock há muito desaparecera, restava aqui uma lembrança retorcida.

Andámos à volta, olhámos bem, e lembrámo-nos da nossa infância, de uma infância em que tínhamos sonhos. Esses sonhos não eram os de agora, nem eram uns quaisquer, eram sonhos reais, belos, grandiosos, à espera de se tornarem realidade. E, quando pequena, a minha namorada tinha um Lada, e lembrava-se de nele passear, ora com o pai, ora com a mãe – por algum motivo, nunca juntos –, entre outros Ladas, Skodas, Polskis e Zastavas.

E lembrava-se de que costumava imaginar que, quando crescesse, substituiria o automóvel antigo da família, de cor creme, envelhecendo depressa, embora robusto, por um carro de verdade, não parecido com um pequeno-burguês, mas um Lada desportivo super-rápido e vermelho. Seria como se cheirasse fogo, como quando um fedelho vizinho, mecânico, arrancava, e, às vezes, também a levava, com todas as janelas abertas, e lembra-se que deitava a cabeça de fora e soltava o cabelo ao vento, que assobiava, e quase fazia chorar os olhos atrás dos óculos, o rádio tocava, e ela esquecia-se de todas as coisas más que a aguardavam em casa ou na escola. Era o que pensava, e projectou muitas vezes – veio, entretanto, a mudança de regime e novas marcas de carros apareceram no mercado, o que significava mais opções, e, simultaneamente, dava asas às esperanças e aos sonhos ingénuos  da infância –, na ideia de que, quando crescesse, se apaixonaria, compraria um Sport Lada vermelho-fogo e, juntos, ela aceleraria, janelas abertas. E as mãos tocavam-se na alavanca das mudanças, e a música ressoava, e seria felicidade a rodos.

E, assim lembrando, vieram-lhe lágrimas aos olhos, e disse que pensava nisso quando, à noite, não conseguia dormir, e tapava os ouvidos com um travesseiro, sufocando silenciosamente as lágrimas, porque a mãe e o pai gritavam, e batiam com as portas, quebrando o que calhava, e que com o Sport Lada vermelho e o seu amor nada seria assim, eles cavalgariam sem controlo, ventos brilhantes dançando lá fora, e limpas seriam as casas, as árvores e os homens, e livres… e imaginava que consumiriam tanto combustível quanto pudessem pagar, tanto quanto a liberdade lhes permitisse…

E acrescentou que imaginava que isso era tudo de que precisavam para se sentirem vivos, e, se se sentissem vivos, não teriam mais sonhos, e isso seria a felicidade, pois quanto haviam sonhado tornara-se realidade. E seria também felicidade ver o seu amor limpar o motor e lavar o pára-brisa nas manhãs de domingo, enquanto ela esfregava os tapetes do carro, brincando com a espuma do sabão, e, cantarolando, rabiscava notas musicais no pára-brisas.

Ali estávamos, parados, e as palavras fluíam da sua boca, até que, soluçando, descansou a cabeça no meu ombro. Acariciei-lhe o cabelo e segurei-a, firme, enquanto recuperava o fôlego. E continuámos a descer a Rua Práter, peguei-lhe na mão, beijei-a e sussurrei ao ouvido que, embora não tivéssemos, e, provavelmente, nunca viéssemos a ter, um Lada, acreditasse que, mesmo sem Lada, também havia felicidade.

Tradução de Ernesto Rodrigues

 

Pál Dániel Levente,  Ator, encenador, poeta e microcontista, era redator da revista Prae, que reúne jovens tendências. Desde 1999 publica traduções da literatura em inglês, português, francês e galego e  é autor de quatro livros de poesia e duas coleções de contos. Desde janeiro de 2016, ele trabalha para o Capital Circus de Budapeste como dramaturgo. Atualmente é responsável pela divulgação da literatura húngara no estrangeiro.

Enquanto escrevia O Oitavo Distrito de Deus (uma coleção de contos), ele se mudou para um dos distritos mais perigosos de Budapeste; este livro é sobre as experiências desses anos.




Fragmento do romance O Passado Imprevisível

Após as cenas do Distrito Oito de Budapeste escritas de Pál Dániel Levente oferecemos as memórias literárias do antigo leitor português na universidade de Budapeste, Ernesto Rodrigues

De Ernesto Rodrigues que vai ser lançado este setembro em Húngaro. O autor, antigo leitor no Departamento de Português da FL da Universidade Eötvös Loránd neste romance, como em tantas outras obras suas evoca acontecimentos e lembranças de sua permanência em Budapeste na primeira metade dos anos 1988. 

Fomos, após o almoço, à cervejaria em frente, que nos obrigava a passagem subterrânea, onde pairava memória da cidade destruída, em fotografias da Segunda Guerra Mun­dial e brincadeiras de russos e nazis. Ao balcão, cabiam duas pessoas; bebia‑se em fila, até à rua, e dois aproveita­vam escada em caracol que levava a nenhures. Espumava o prazer, neste recanto; assim deveria ser — cheio, brilhando, entranhando‑se profundamente — o labor intelectual do meu conviva, que, nisto, mantinha hábitos de camionista, repetindo a dose. Não lhe faltaria, na reforma seca, este saguão ao rés‑da‑rua, onde era mais considerado que nas academias?

Cá fora, separámo‑nos: dirigiu‑se à reitoria, para acertos coreográficos finais, e desejava reencontrar‑me no almoço do dia seguinte, sob seios de deusa que nem a eunucos era desapercebida; eu, que sim, talvez ainda à noite, se a cidade me não desviasse, na animação descabelada que vinha gozando, quando, nos idos socialistas, adormecia às dez, aplaudida a ópera iniciada às sete, em jejum. Eu tinha uma ideia fisgada, um desvio aventuroso, nada recomen­dável para filósofos e jubilados. Mas ia ao acaso, que é como se vai melhor.

Perdemo‑nos nos corredores mais vastos e sombrios desse olhar antigo, que não acerta com os passos de hoje. As belezas do passeio e do Gerbeaud viram chusma, em concorrência de estrangeiras. Da distância, ainda tingida de um requinte habsburgo, passou‑se ao acosso fácil. São poliglotas, formas de ginásio e aeróbica, sustentam lucro rápido e breve tecido novo, que as lojas das grandes marcas plissam sob o nosso olhar.

Nessa época, éramos contemporâneos da História. Pro­tagonistas eram poucos. (Sê‑lo‑á esta lágrima de tinta?) Vie­ram outros interesses. As cidades devem reconstruir‑se, ou ameaçam saúde; convocar artistas, que as magnifiquem. O que somos, ao perpassar no olhar dos outros? Um galope surdo que ninguém entende?

Se o passado era frase interminável, assaltou‑me a última do Professor, ao marcar encontro para o dia seguinte, hoje. Assim, comezinha: convidava para almoço pobre na can­tina? Acaso espumando, de seguida, na cervejaria, cujo pas­seio seria invadido por trajes académicos? Ou equivocara‑se, se não descobrira que, já, já, ele passava a outro regime? O hábito impunha‑se? um engano ledo? uma travessura?

Sentei‑me em esplanada, contra a policromia de postais ilustrados, embora a natureza da terra em nada tivesse mudado. Eu ainda a sentia como retomado paraíso. Era um bom augúrio. Neste cuidado, vi que, entre mortes e refor­mas antecipadas, ele se mantivera firme, marco derradeiro de corpo universitário em ebulição. Chegava o adeus, em seu pé lento; talvez lhe interessasse outra viagem, a que os pares não chegavam, nem danava a orçamentos. Teria ele, nessa couraça, resistido ao fervor e assalto de linguagens, quando perdidos eram amigos e vivos, e as línguas eslavas feneciam nos seus torrões ou vinham por aí abaixo na falta de candidatos? Seria curioso saber se, por favor — e não por mérito —, ele não beneficiara dessa resistência sem ondas, enquanto membro último de tradição que remune­rava o subemprego, por razões estatísticas. Pedi outro café: continuavam péssimos.

Subsistia dúvida: onde decorria o evento. Para mim, já nada era natural, com os imaginados sobressaltos em países subitamente febris. Ou, em resposta, talvez a parte conservadora guardasse pergaminhos, e, na reitoria ou na Faculdade, decorresse acto faustoso, que fizesse sonhar os ainda jovens. Ver‑se‑ia pela manhã, sentindo logo no ar esse perfume dos adeuses. O segundo café verteu interrogações que seria ocioso desdobrar aqui, enquanto aguardo convite em castelhano, se não me enganei de esplanada.

A tarde salta do rio, em névoa baixa, sedosa, tem um estremeção de calor e volta a afundar‑se. Isto é brisa de Inverno mal vencido, que me encolhe. Não admira, por isso, que, dentro de gabardina entreabrindo‑se na passada, venha ao meu encontro deusa e empregada de mesa, mais elegante, ainda, e rendada, que trocou pé raso por quinze centímetros de salto alto, e demorou a compor‑se. Eu já não acreditava em aparições.

Ernesto Rodrigues

Az előre nem látható múlt (részlet)

Publicamos este trecho também em húngaro, trabalho de Pál Ferenc que traduziu o romance de Ernesto Rodrigues.

Ebéd után elmentünk a szemközti sörözőbe, és ehhez át kellett vágnunk az aluljárón, amelyet belengett a második világháborúban lerombolt város emléke, a fényképeken látható oroszokkal és nácikkal. A pult előtt két ember is alig fért el, az utcáig kígyózott az sörivók sora, ketten pedig a sehová sem vezető csigalépcsőn találtak maguknak helyet. Felhabzó gyönyörűség töltötte be ezt a zugot, éppen úgy, ahogy megkívánta – teljesen, csillogva, mélyre hatolva – ivótársam intellektuális igénye, aki egy kamionsofőr állhatatosságával újrázott. Vajon mennyire érezné a hiányát egy alkoholtilalom idején ennek az utcára nyíló hátsóudvarnak, ahol több megbecsülés övezte, mint az akadémiai körökben?

Amikor kijöttünk, elváltunk: ő elment a Rektori Hivatalba, hogy megtegye az utolsó tánclépéseket, és találkozott volna velem másnap ebédnél is a ma látott istennő kebleinek az árnyékában, akitől még az eunuchok is tűzbe jöttek volna; én, igen, talán még aznap este is, ha nem térít el valahol a város eszeveszett zűrzavara, amelybe élvezettel merülök bele azok után a böjtös szocialista idők után, amikor már tízkor minden szunyókált, és a hétkor kezdődő operaelőadások tapsvihara is elcsendesedett. Gyötrő vágy élt bennem, kalandra ösztönző hangulat, amelyet jobb, ha elhessegetnek a filozófusok és a nyugdíjasok. De elindultam a bizonytalanba, mert ennél csábítóbbat elképzelni sem tudtam.

Tévelyegtem az egykori emlékképek roppant, komor folyosóin, amelyek sehogyan sem illeszkedtek a mai látványhoz. A sétálóutca és a Gerbaud szépségei lealjasultak, hogy versenyre kelhessenek az idegen nők tömegével. A Habsburg-idők távolságtartó eleganciáját felváltotta a türelmetlen nyomulás. Több nyelven beszélnek, testüket az edzőterem és az aerobik alakította, gyors haszonra törekszenek és új göncökre, amelyeket a nagy márkák zúdítanak rájuk.

Az idő tájt együtt éltünk a Történelemmel. Főszereplő csak alig akadt. (Lehet, hogy ez a tintából kicsorranó könny az volna?) Újabb érdekek jelentek meg. A városokat újjá kell építeni, mert különben veszélybe sodorják az egészséget; művészek kellenek, hogy nagyszerűvé varázsolják őket. Mik vagyunk, miközben mások szemlélnek minket? Esztelen rohanás, amelyet senki nem ért?

Ha a múlt végtelen mondat, akkor rám omlottak a Professzor utolsó szavai, amelyekkel találkozót beszélt meg velem másnapra, mára. Ilyen kurtán-furcsán: csak az étkezde szegényes ebédjére hívott volna meg? A hab talán a söröző lesz rajta, amely előtt a járdát megtöltik az öltönyös egyetemi emberek? Vagy tévedett, és nem jött rá, hogy már az elmúlt rendszer része? A szokás hatalma uralkodott el rajta?, derűs téveszme?, csintalanság?

Leültem a teraszon, szemben a képeslapok tarkaságával, bár itt még minden ugyanolyan volt. Most is csak azt éreztem, hogy visszakaptam a paradicsomot. Ez jó előjel volt. Miközben ezen merengtem, láttam, hogy a halottak és a sietős reformok közepette sziklaszilárdan állt, mint egy forrongó egyetemi közösség utolsó mohikánja. Eljött a búcsú ideje a maga komótos járásával; talán még felébred az érdeklődése egy újabb utazás iránt, ahová a többiek nem kísérik el, és nem terheli a költségvetést. Páncéljába bezárkózva állt volna ellen a kis nyelvek felpezsdülésének és ostromának, amikor az élőket és barátait sorra elvesztette, és a szláv nyelvek érdeklődők hiányában önmagukba zárva halódtak vagy kipusztulóban voltak? Jó volna tudni, hogy szívességből – nem pedig érdemből – jutott-e előnyökhöz ebből a hullámokat nem verő ellenállásból, mint annak a hagyománynak utolsó haszonélvezője, amely statisztikai meggondolásokból jutalmazta a munkanélküliséget. Kértem még egy kávét: ez is ihatatlan volt.

Továbbra is kétségek között hányódtam: hol lesz az esemény? Már semmit nem éreztem természetesnek a váratlanul felpezsdülő országok képzelt bakugrásaiban. Vagy, természetes válaszképpen, a konzervatív oldal még őriz régi pergameneket, és a Rektori Hivatalban vagy a karon történik meg ez a fényűző esemény, amely álmokkal ajándékozza meg a fiatalabbakat. Holnap meglátjuk, és a levegőt rögtön betöltötte az istenveledek illata. A második kávé olyan kérdéseket ébresztett fel bennem, amelyeket szükségtelen volna most részletesen elmondanom, miközben arra várok, hogy felhangozzanak azok a spanyol szavak, ha ugyan nem tévesztettem el a teraszt.

A délután alacsonyan szálló, selymes ködpárája szétterül a folyó felett, remegés fut át rajta a melegtől, majd újra eltűnik a mélyben. Még alig tovatűnt szellője megérint, összerázkódom. Nem csodálkozom, hogy lépteinek ritmusára megnyíló kabátjában jön felém a felszolgálólány-istennő, elegánsan, kiöltözve, a laposcipőt tizenöt centis sarkakra cserélve, és éreztetve, hogy hosszan készült. Pedig már feladtam, hogy higgyek a káprázatokban.

 

 

Fotos de Gerbeaud e arredores:





Biografia

Ernesto Rodrigues (1956) é poeta, escritor, tradutor, crítico literário português, professor da Universidade Clássica de Lisboa. Na primeira metade da década de 1980, foi professor no Departamento de Português da Universidade Eötvös Loránd e durante esses anos conheceu profundamente a literatura e a cultura húngara. Ele traduziu e publicou uma seleção de poemas de jovens poetas húngaros e, em seguida, os Contos de um minuto de István Örkény. Ele também traduziu os poemas de Bálint Balassi, por este trabalho foi premiado em 2002 com a “Espada Balassi”. Entre suas muitas traduções, destaca-se a tradução para o português do romance História da Minha Mulher de Füst Milán, publicado em 2017. Nos seus poemas e romances, para além dos temas, paisagens e gentes da sua pátria mais estreita, o Norte de Portugal, aparecem com frequência as memórias da Hungria.




Minuto de Literatura Magyar

Encetamos esta rubrica da LMn com o intuito de dar a conhecer aos nossos leitores as riquezas da literatura húngara. Assim vamos publicar, duas vezes por semana, amostras das obras clássicas das letras magyares e informações das atuais tendências, obras e autores deste país em português e às vezes, paralelamente, em húngaro.




O Oitavo Distrito de Deus – Az Úr Nyolcadik Kerülete

          Pál Dániel Levente

Estamos em Józsefváros, o oitavo distrito de Budapeste. Não é a linha dos palacetes, mas o outro lado do Nagykörút, fronteira entre a cidade e a zona povoada por vagabundos e quantos a sorte aqui reteve. Às vezes, sinto que o tempo, se passa, logo se suspende. Uma rua semelha Paris na viragem do século, com suas casas burgueses vertendo-se para nós e paredes em ruínas mostrando galas de uma era mais próspera, tudo embebido nos discretos exageros da moral e do gosto pequeno-burgueses. Outra rua é uma Berlim moderna, com seus centros comerciais envidraçados, repuxos e casino.

Cinquenta passos para lá, e estamos numa aldeia com edifícios em ruínas, onde se destaca mansão antiga com uma chaminé encimada por ninho de cegonha, agora pequena e ensombrada taberna. Não longe, há jardins públicos com tomates, pimentos, milho e gerânios. Em frente, temos um complexo residencial agitado e triste. Descemos por um beco de tonalidades pálidas como nos filmes da máfia italiana e chegámos à Zona – para lá do tempo e do espaço.

Velhos húngaros e ciganos vivem aqui ao lado de turcos, chineses, vietnamitas, árabes, todo o tipo de africanos, estudantes em regime de intercâmbio, velhos revolucionários, ocupantes de casas, refugiados da guerra, pequenos bandidos e grandes criminosos, além de membros activos de uma dúzia de seitas e religiões.

Aqui, em apenas meia dúzia de quilómetros quadrados, encontramos a nossa Europa, a antiga e a moderna. É onde eu moro, e neste ambiente nasceu a maior parte das minhas histórias.

Tradução de Ernesto Rodrigues

Pál Dániel Levente,  Ator, encenador, poeta e microcontista, era redator da revista Prae, que reúne jovens tendências. Desde 1999 publica traduções da literatura em inglês, português, francês e galego e  é autor de quatro livros de poesia e duas coleções de contos. Desde janeiro de 2016, ele trabalha para o Capital Circus de Budapeste como dramaturgo. Atualmente é responsável pela divulgação da literatura húngara no estrangeiro.

Enquanto escrevia O Oitavo Distrito de Deus (uma coleção de contos), ele se mudou para um dos distritos mais perigosos de Budapeste; este livro é sobre as experiências desses anos.

Fotos:

Ilustrações do livro:

https://manzardcafe.blog.hu/2017/05/20/az_ur_nyolcadik_kerulete_pal_daniel_levente

Outras imagens:

https://www.origo.hu/utazas/20140903-varosi-setak-a-nyolcadik-keruletben-a-budapest-beyonddal.html

https://m.blog.hu/ke/kep-ter/image/2012-05-31/7463796/h_P1140957b.jpg




Será que o português “Toca Alegre a Sua Gaita de Fole”?

Quando tinha começado estudar português, faz bons 50 anos, meu avó dizia-me jocosamente “Vígan dudál a portugál” (‘O português toca alegre a sua gaita de fole’). O bom velho gostava de dizer provérbios e frases feitas, assim na altura não prestei atenção a esta frase que soava muito bem em húngaro devido a rima interna.

Mas mais tarde, quando topei com esta frase nos textos de escritores destacados, a popularidade desta frase espicaçou a minha curiosidade. Assim, encontrei a frase por exemplo no diário de 1979 (20 de abril)  do escritor e poeta húngaro, Gyula Illyés:

Lutava com o sono por volta das três da madrugada. O meu cérebro, revirado por pesadelos, há já algumas horas que pretendia encontrar uma rima melhor para estes dois versos tolos, ouvidos algures na infância: O português toca alegre a sua gaita de fole. Quis achar uma rima melhor e após duas horas de cavilações se deu esta: O português sempre bebe alegre.

Outro poeta e prosador húngaro, da primeira metade do século XX, Dezső Kosztolányi, no seu artigo intitulado “Leio em português”, de 1923, faz também uma referência a esta frase:

Palavra de honra: naqueles tempos eu não falava português. Não sabia senão uma coisa dos portugueses, mas esta de fontes históricas dignas de fé: que tocam alegres a sua gaita de fole.

E esta frase também figura na novela intitulada Os Cavaleiros, de 1897, de Kálmán Mikszáth, escritor realista do século XIX:

Nas outras mesas jogavam tarokk […] Neste jogo eram permitidas todas as formas de anomalias, diplomatiquices, artimanhas, porque aqui o que importava mais era a virtuosidade e não a cobiça. Um cavaleiro é que percebe essas diferenças finas. Dizia-se tudo, naturalmente, em linguagem florida. O pateta que pôs todas as cartas, resmungava coçando a cabeça: “Onde afogar-me?” (o que queria dizer que não tinha “single”) e diziam também “O português toca alegre a sua gaita de fole”, quando aparecia o naipe desejado.

Lendo estas referências, surge logo a questão da origem desta frase. A resposta vem de um blogue português que, num pequeno poema, citava uma frase francesa:

Com o Terreiro do Paço
E o Rio Tejo, o mundo, ao fundo.
– Comment ils sont toujours gais, les portugais,
Diz a guia, do vinte e sete,
Que vai da Graça aos Prazeres…

A frase francesa ”Comment ils sont toujours gais, les portugais” é do famoso humorista francês Alphonse Allais (1854–1905) e surge numa das popularíssimas operetas de Charles Lecocq, de temática Portuguesa e intitulada Le Jour et la Nuit, numa canção cantada pelo primeiro-ministro Português, Calabazas, no segundo ato da opereta.

As operetas de Charles Lecocq gozavam de enorme popularidade entre o público húngaro, sobretudo a opereta cómica intitulada La Fille de Madame Angot que em 1875 foi estreada na Hungria, com o título Angot asszony lánya, no teatro Népszínház de Budapeste. A opereta Le Jour et la Nuit foi estreada com o título Húngaro Nap és Hold (‘Sol e Lua’), em 1896, mas não atingiu a popularidade daquela.

Dado que La Fille de Madame Angot foi muito mais popular que a opereta Le Jour et la Nuit, surge a pergunta como é que se popularizou tanto esta canção de Calabazas e com ela esta frase? Como explicação, um historiador de música informou que, naqueles tempos, muitas vezes uma canção popular de uma opereta aparecia noutra, para atrair mais o público. Em todo o caso, parece provável que esta canção de Calabazas se tenha tornado um êxito daqueles tempos, e a frase ”O português toca alegre a sua gaita de fole” passasse de boca em boca, como uma frase que soava bem.

Deste jeito foi que o escritor Kálmán Mikszáth deve ter conhecido frase que incluiu na sua acima mencionada novela como uma ”frase de situação” que os jogadores de tarokk utilizavam como uma frase popular na época, que na realidade nada tinha a ver com os portugueses.

Para perceber a imagem que os húngaros tinham de Portugal e dos portugueses no final do século XIX, podemos consultar a obra de dois escritores populares da época: um é o já citado Kálmán Mikszáth, escritor realista e o outro Mór Jókai, romancista romântico de fantasia prodigiosa.

Nas obras do primeiro, além da ”frase de situação” já citada, encontrámos apenas uma referência ao calçado da rainha portuguesa, na novela intitulada Todos dão um passo:

Diziam que as botas de caça do príncipe de Gales, os sapatinhos finos das ladys e misses Dudley, assim como o calçado da bela rainha Portuguesa foram manufaturados por este senhor Kolowotki.

Nas obras do outro escritor, Mór Jókai, encontrámos mais referências aos portugueses. Nos seus romances intitulados O Rei-corsário e Os que se morrem duas vezes pode-se ler sobre acontecimentos da época dos Descobrimentos e das touradas; noutros, como Um aventureiro famoso do século XVII, desfilam embaixadores, príncipes, rainhas e princesas portugueses, mas não aparece nenhum Português alegre ou jocoso.

Kosztolányi, na sua obra mencionada fala dos portugueses e da sua língua. Diz que é uma língua admirável: ”Mais meiga que o italiano, mais terna que o espanhol. É um latim apetecível.” No trecho do romance de Dezső Pataki, intitulado Anton Ixel e publicado em 1937 na revista literária Ocidente (Nyugat), uma casa onde acabaram de fazer a limpeza compara-se às botas cintilantes de um general português. E, finalmente, um escritor da atualidade, Zoltán Egressy, na sua peça teatral intitulada Portugal, diz que Portugal, país aonde o personagem principal da obra quer ir um dia, é um país belo, amigo e levemente triste:

       Menina: E o que é que queres fazer em Portugal?

       […]

       Rapaz: Quero vê-los. É um povo bom. Foram eles que inventaram o chá, por exemplo. E a jarra e o leque.

       Menina: Como foi que os inventaram?

       Rapaz: E a almofada e o fogo de artifício…

       Menina: Também o fogo de artifício?

       Rapaz: É. São bons rapazes. Gostam de todos.

Resumindo, podemos dizer que esta frase que tradicionalmente aparecia na língua húngara como uma ”frase de situação”, foi emprestada de uma canção em voga e passou a ser usado como uma curiosa ”palavra proverbial”, sendo a tradução feliz de uma falsa estereotipia étnica francesa. Mas no meio Húngaro, que na altura do seu aparecimento não tinha relação direta com os portugueses para poder avaliá-los, perdeu este carácter e, conservando a referência aos portugueses, passou a ser uma “frase de situação” que exprime uma alegria e otimismo.




A fama dos Húngaros

por Pál Ferenc*

No dia 20 de agosto comemora-se a fundação do Estado Húngaro, como também o grande feito do fundador, D. Estêvão I, ou Santo Estêvão que converteu este povo nómada, oriundo do Oriente, num povo católico e europeu.

Ser europeu ou não, pertencer à Europa ou não – era durante muito tempo uma questão latente no meio do povo húngaro, porque mesmo hoje há muitos que dizem, com as palavras do poeta Endre Ady, que a Hungria é um “País Jangada”, que vacila entre Este e Oeste. Mas a Europa também aceitou dificilmente os húngaros, frequentemente identificando-os com os Hunos, cuja memoria nefasta sobrevivia séculos e séculos.

Contudo houve épocas quando no Ocidente se alterava esta imagem negativa dos húngaros. Com a ameaça turca a Hungria tornou-se um país importante. O prestígio de um poderoso país católico nos confins do Leste da Europa, defensor dos valores cristãos e ocidentais, as relações dinásticas dos reis húngaros com os monarcas da Europa Ocidental e da Península Ibérica, a cultura cavaleiresca introduzida e cultivada em alto nível na Hungria pelo rei Roberto Carlos etc., foram momentos que contribuíram para a fama sólida na Hungria nos séculos XIII-XVI pela Europa fora.

Por exemplo na França, a partir dos séculos XIII e XIV, muitas obras poéticas têm por personagens principais reis ou príncipes húngaros. Assim são, por exemplo, o Dieudonné de Hongrie / Charles le Chauve , nascido no final do século XIV ou a novela arturiana do século XIV ou XV, intitulada Le Roman de Messire Charles de Hongrie , cujas partes introdutórisa e final, decorrem na Hungria e os valentes húngaros aparecem pintados com cores positivas.

Deve-se talvez a esta imagem simpática da Hungria que a partir do início do século XVI, durante quase cem anos, a Hungria tenha sido um ponto de referência em Portugal.

O ponto de partida foi, em parte, uma razão dinástica, pois o historiador da família de Avis, Fernão Lopes mencionou primeiro os laços com a Hungria, querendo habilmente introduzir no ambiente mental Português a ideia da “origem húngara” tendo iniciado com isso, por assim dizer, uma campanha pró-húngara que durou ao longo do século XVI.

É um momento importante, visual, desta campanha a tábua genealógica pintada em pergaminho pelo flandrino Simon Bening, na qual entre os antepassados dos reis Portugueses figuram Santo Estêvão, rei Húngaro (997/1001-1038) e a sua esposa, Gisela; o príncipe Santo Emerico (Imre) e Vazul, como sucessores; mas também é possível ver nesta tábua os pais de Santo Estêvão, Zeicha (972-997) e Saraloth (ou seja, Géza e Sarolt, em Húngaro vernáculo).

A imagem positiva da Hungria reflete-se também nas obras de Gil Vicente. No Prólogo da peça inserida no Auto da Lusitânia, por exemplo, podemos ler que um príncipe, símbolo da nação Portuguesa, chamado Portugal, partindo da Grécia, passa pela Hungria e, assim, chega até a Lusitânia, virgem-símbolo da terra dos lusos. Em Dom Duardos, de temática cavaleiresca, há duas referências aos Húngaros e à Hungria. No verso 641, a Infanta Flerida diz que as rosas mais aromáticas são as da Hungria:

Estas rosas

son de las mas olorosas.

Seran da casta de Ungría:…

e no verso 1166, entre os diferentes pretendentes menciona-se um príncipe da Hungria:

Teneis Príncipes en Ungría y en Francia,

que vos muy bien mereceis.

A presença da Hungria e dos húngaros na mente dos portugueses contribuiu, em grande parte, para que a Hungria pudesse aparecer como um país mítico e progenitor dos reis portugueses como menciona Camões três vezes n’ Os Lusíadas. Mas Camões, entre outras fontes, tem como antecedente a novela de cavalaria de João de Barros – A Crónica do Imperador Clarimundo, já com o seu título mais extenso fez referência à origem Húngara dos reis Portugueses: “Crónica do Imperador Clarimundo, donde os Reis de Portugal descendem, traduzida da língua Húngara à nossa Portuguesa”. Esta afirmação prévia fica reforçada pelas palavras do autor, no prólogo, onde escreve que foi de um fidalgo alemão, Carlim Delamor, que soube que D. Henrique (ou seja, o pai de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal) era neto de um rei Húngaro.

Há também outra obra que informa sobre os húngaros, e mais exatamente. N’A Crónica do Imperador Maximiliano a trama tem lugar já não num país de referência longínqua e vaga, como o foi a Hungria nas novelas anteriores, mas num país que o autor desconhecido da Crónica do Imperador Maximiliano parecia conhecer em alguns aspetos. Por exemplo, sabia que Buda era a capital do país e que ficava nas orilhas do Danúbio, e ainda que esta zona era montanhosa, coberta de bosques e florestas, porque os pais de Maximiliano (Filénia, filha do rei Venceslau e o seu amante, o príncipe Reduardo) fogem quando a princesa já está grávida, pelos montes de Buda.

É curioso que neste romance nascido no final do século XVI – quando a Hungria já sofria a dominação turca — perdure a imagem positiva da grandeza da Hungria, que a família real Portuguesa, desde o início do século, divulgara com intuitos dinásticos. A genealogia proposta na Crónica do Imperador Maximiliano liga a origem Húngara – representada pelo inventado rei Venceslau, avô de Maximiliano – com a família dos Habsburgos, em ascensão, e o protagonista é o imperador Maximiliano (1459-1519) coroado em 1486, e que funda a grandeza da dinastia realizada pelo seu neto, Carlos V (1500-1556).

Pensa-se que, para os Portugueses, que perderam a sua independência na batalha de Alcácer Quibir em 1580, servia de consolação o que este romance sugeria, ou seja, que o monarca espanhol, representante da opressão, era também de origem Húngara.

 

*Prof. Dr. Pál Ferenc, tradutor. Um dos fundadores dos estudos de portugues e da lusofonia na Hungria.