A morte de Fagundes
O bacalhau que começou verosimilmente como uma necessidade, tornou-se ao longo do tempo um hábito querido e um alimento de sucesso nos hábitos alimentares dos portugueses. Penetrou na linguística em função das diferentes localidades, épocas e dos diversos costumes, na toponímia – Rua dos Bacalhoeiros – e serviu para designar o aperto de mão e o sexo das mulheres e outros assuntos que não têm desenlace e ficam em “águas de bacalhau”. Também Margarida Moleiro (2008) refere que os “Enterros do Bacalhau” tratavam de parodiar o cerimonial da Justiça – com julgamentos em que o bacalhau se defendia das mais variadas acusações.
Desde aquela noite em que o cocheiro real, partilhara com a monarca o maravilhoso ceviche de bacalhau lascado, D. Maria I, tornou-se a causa principal, a preocupação e alegria principais da vida de Fagundes. Apaixonou-se por ela, mais do que por alguém, afeiçoou-se a ela mais do que ao vinho. Pudera! Nada a dizer, irra! – E a dignidade de um cocheiro real? – Começou a ser aflorado por uma situação de inconsciência profunda que lhe despertava ciúme por Lucas Rigaud, o cozinheiro da corte. Era como o tempero da sua relação com a monarca. Quando Fagundes se punha a cozinhar o bacalhau – que eloquência … onde ia buscar o talento? E como cuidava dele, que mimos lhe dava! O azeite brilhava como oiro sobre os lombos lascados – e não ao lustro escuro das manteigas e mostardas de Rigauld! – O “impostor” nem lhe tira a pele e as espinhas! – Imaginem! Não raras as vezes dava por si a falar sozinho, enquanto tratava dos cavalos. O bacalhau de Fagundes era de requinte aveludado, ao lado das maravilhosas castanhas.
– Eu dou-lhe as mostardas! – Bradava Fagundes.
Pois, antes da batata se espalhar pelo mundo, a castanha, a par da bolota, era a base da alimentação do povo.
A batata só foi introduzida em Portugal a partir dos séculos XV e XVI, altura em que os navegadores espanhóis e portugueses a terão provado no seu local de origem, não significando isto que a população a tenha cultivado de imediato para seu uso.
Tanto mais que os médicos da época tinham dela uma péssima impressão e consideravam-na, de acordo com Palmira Cipriano Lopes, entre outras desvirtuosidades, desenxabida, flatulenta, indigesta, debilitante e malsã, adequada apenas ao sustento de animais, sobretudo dos porcos.
Mais precisamente, a batata era tão desprezada na época, que foi acusada de dar poder às “bruxas de voar”, um “alimento de bruxa”, que provocava doenças de raquitismo e tuberculose.
Palmira, refere ainda que só no século XVIII, é que o francês Antoine Augustin Parmentier, teria convencido Luís XVI de que a batata poderia solucionar os problemas alimentares do povo francês.
A partir daí a batata passou a vulgarizar-se como alimento humano em França e a aumentar-se o seu consumo, passando de alimento malquisto e vilipendiado, a ter lugar na mesa dos nobres e burgueses europeus.
Ainda em 1885, Van Gogh viria a pintar a sua obra-prima «Os comedores de batatas». Esta última representação tomou várias formas e foi realizado em litografia, a que se seguiram vários estudos a óleo, hoje existentes no Museu Vincent Van Gogh, dependente do Rijsksmuseum, em Amsterdão.
A batata só aparece como receita de culinária, para gente bem instalada na vida em 1715 e 1729, registada por Francisco Borges Henriques.
Lucas Rigaud, um dos cozinheiros de quem presentemente se fala muito, por ter sido cozinheiro da corte portuguesa nessa época, na sua obra Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinhar de 1780, dedica apenas duas linhas à batata em que diz: «As batatas depois de cozidas em agoa, e pelladas, comem-se com molho de manteiga, e mostarda».
A mostarda “chegou ao nariz” de D. Pedro*
Lucas Rigault andava empenhadíssimo no preparo da “table d’hôte” para o jantar real. O cozinheiro regente era um gordo e baixo senhor. Vestia casaca comprida, camisa branca e colete. As meias de seda, chegavam aos calções de cetim, na altura dos joelhos e calçava sapatinhos delicados com fivelas douradas. Os seus trajes eram engordurados e puídos, sem qualquer tipo de elegância. Rigault preparava três mesas sucessivas, com travessas de alimentos vários. Na primeira “coberta” sairiam os “Escargots na Chapa” com molho de mostarda. Depois vinha a “Bouillabaisse”, uma das famosas receitas da cozinha da Côte d´Azur, nascida de entre os pescadores marseillais. O que fazia a bouillabaisse de Rigault diferente dos outros caldos de peixe era a seleção de ervas aromáticas e especiarias e o uso de peixes ósseos do mar, a maneira como os peixes eram adicionados, um de cada vez, o molho chamado rouille e o método de servir, com pão torrado, manteiga e mostarda. A última “coberta” era na base doces e de frutas, como indicam os protocolos de então, seguidos nos banquetes reais.
– A última “coberta” não leva mostarda! Advertia Rigault a criadagem.
Não sabia porém Rigault, que os sintomas de alergia à mostarda, podem surgir repentinamente, mas às vezes podem levar até duas horas. Os sintomas mais leves podem incluir urticárias, formigueiros em qualquer parte do corpo, comichões em tudo o que é lado ou rinites. Os mais graves até podem incluir inchaços da face e da boca, asmas, dores abdominais, náuseas, vómitos, colapsos de consciência e até desinteria e infeções intestinais que podem expelir sangues e mucos. Depois da primeira “coberta” de escargots com molho de mostarda, a desgraça caiu sobre os comensais, mais agravada ainda pela exiguidade de instalações sanitárias do refeitório Real do Palácio da Ajuda. Imaginem todo o esforço de Rigault para que tudo saísse perfeito no tão esperado dia de servir pessoalmente a rainha. E agora imaginem bem o que aconteceu nesse dia! Foi o que aconteceu com Rigault! Desta calamidade real, apenas se livrou a Rainha, por não apreciar a mostarda…
– Mon Dieu, quelle vraie honte! (Meu Deus, que verdadeira desgraça) lamuriava-se Rigault.
O Cocheiro, foi acordado pelo alarido dos comensais a defecar à volta das cavalariças.
– Abençoada mostarda!
– Parece que Deus ouviu as minhas preces! Dizia para si mesmo enquanto emborcava mais um copo de vinho para a sossega.
*
Para Fagundes chegaram tempos difíceis. A dúvida que nascera nele parecia-lhe agora um disparate. Desde aquela memorável tragédia que ocorreu durante o jantar real, Lucas Rigault, o cozinheiro francês da corte, deixara de assumir os destinos dos repastos reais. Dom Pedro ordenara ao Administrador do Palácio, preterir Rigault de todas as suas atribuições e responsabilidades.
Na corte corriam rumores, embora nunca tenham sido sustentados por qualquer evidência, que a amizade entre D. Maria e o responsável pelos estábulos reais já vinha de algum tempo e se tinham estreitado ainda mais, desde a saída a sós ao Terreiro do Paço, aquando da isenção de impostos ao bacalhau.
A Rainha continuava a manter encontros secretos com o cocheiro. Em pouco tempo já eram amantes. As idas da Rainha às cavalariças já não embaraçavam o cocheiro como nos primeiros momentos; porém quando ela se aproximava sussurrava-lhe sempre que o amor era mais arriscado do que a paixão.
– Então! Falamos? dizia Fagundes depois de emborcar um copo inteiro de vinho. Acompanhava sempre a sua exclamação com aquela agitação de mãos, sem a qual pelos vistos não pronunciava qualquer palavra.
– de que estamos à espera? – insistia altivamente Fagundes.
– Falamos, preciso de forças para falar – aprovava a rainha.
No entanto, apesar do desejo expresso pouco ou de quase nada falaram. Descobriu que andava de esperanças e o seu tio-esposo ainda não o sabia.
Mentalmente instável, D. Maria I, foi obrigada a aceitar que o filho tomasse conta dos assuntos de Estado. Vivia obcecada com as penas eternas que o pai estaria a sofrer no inferno, por ter permitido a Pombal perseguir os jesuítas; via-o como “um monte de carvão calcinado”.
Anos mais tarde, a sua instabilidade mental mais se agravou com o luto pelo seu esposo D. Pedro III e do seu filho, o príncipe herdeiro José, morto em 1788. Por isso João, seu filho e herdeiro assumiu a regência.
Para tratar D. Maria, veio de Londres o Dr. Willis, psiquiatra e médico real de Jorge III, enlouquecido em 1788, mas de nada adiantaram as sangrias e os “remédios evacuantes”.
A Família Real Portuguesa transfere-se para o Brasil devido ao receio de ser deposta, à semelhança do que ocorrera nos países recentemente invadidos pelas tropas francesas.
Passaram oito anos… oito anos inteiros.
Não mais vira Fagundes nem o seu filho Eleutério, a quem D. Maria tinha assegurado um futuro promissor no Palácio da sua amiga Maria Antónia de Koháry, herdeira da Casa de Koháry, uma das famílias aristocratas mais ricas e poderosas, não só da Hungria, mas também da Europa.
Nunca antes Viena de Áustria, vivenciara um casamento tão ostentoso. As festividades duraram 9 dias, animadas por uma orquestra de 790 ciganos que tocaram ininterruptamente canções do folclore húngaro.
Eleutério, filho ilegítimo de D. Maria I e de Fagundes, pela sua fama de mestre em Cozinha Moderna, foi convidado para supervisionar a boda real do casamento dos pais de D. Fernando II.
Dona Maria viveu no Brasil, sempre em estado de incapacitação. Veio a falecer no Convento do Carmo, na cidade do Rio de Janeiro, em 20 de março de 1816, aos 81 anos de idade.
Em 1821, após o regresso da Família Real para Portugal, os seus restos mortais foram transladados para Lisboa e sepultados num mausoléu na Basílica da Estrela, igreja que ela mesma mandou erigir.
A partir da ida da Rainha para o Brasil, nada correra bem, a Fagundes.
Até o cavalo de varal coxeava.
– Mais uma desgraça para juntar à outra! Vociferava, como sempre o cocheiro.
– Há pouco tempo o levei para pôr ferraduras…
Emborcava cada vez mais vinho, tendo ganho igual cognome ao da rainha. Ficariam conhecidos para a história como “A Louca” e “O Louco”.
No entanto, morreu feliz, sonhando com uma pessoa que também morreu feliz. Revia-se em Eleutério, seu filho, que até húngaro falava e que viria a ser o precursor do bacalhau com cura portuguesa.
Fonte: Excerto da Aventura do Bacalhau