Dos vocábulos às palavras. Da misteriosa planície húngara ao mar. Do mar ao oceano. Do oceano à imaginação – explorando o mundo através dos olhos portugueses e húngaros.
Viajando até ao Porto, podemos refletir sobre como é o mar húngaro. Afinal, a nossa palavra “ao mar” nada tem a ver com o mar das línguas ocidentais. A palavra mar é uma palavra de origem turca, que sugere algo incomensuravelmente grande, incontável. Em húngaro, não é só o mar que é “do tamanho do mar”, mas também o problema, a dor, o trabalho a fazer.
O mar português, mar, é também infinito. Mas nesta palavra há também a cintilação do amor e da morte. Quantos poetas portugueses brincaram com palavras desta forma! Mas este infinito é de um tipo muito diferente do azul cintilante, mais suave e amigável do Mediterrâneo, o mare nostrum. O Atlântico é mais frio, mais hostil, mais perigoso – não é por acaso que o mar português (ao contrário do francês e do espanhol) é uma palavra masculina. O mar. Curto, quase cliché. Ninguém pensaria em chamar-lhe isso.
Mas os portugueses também se voltam para o mar com saudade. A saudade, que também é comum na poesia portuguesa, indica um estado de espírito melancólico, quando nos sentimos atraídos pelo infinito, quase cativados pelo horizonte. Quando nos sentimos quase estonteados com o brilho quase sobrenatural do oceano.
Fotografia de Eszter Bognár
Esta atração não é apenas poesia, mas também história. As explorações portuguesas tiveram motivos económicos, políticos e religiosos, é certo, mas muitos camponeses pobres portugueses fizeram-se ao mar por espírito de aventura, por saudade, por instigação da saudade. O Renascimento português não se centrou na Antiguidade, mas no mar (veremos mais adiante), reforçando assim o mistério do mar que sempre esteve presente no pensamento português.
Enquanto o avião se aproxima do Porto, tento fazer um balanço dos poemas sobre o mar na literatura húngara.
Não são muitos. Dos antigos poetas húngaros, apenas Miklós Zrínyi, a Syrena do Mar Adriático, conhecia intimamente o mar – é estranho pensar que a grande maioria dos nossos poetas do século XIX nunca tenha estado no estrangeiro. Nem Vörösmarty, que escreveu de forma tão irresistível sobre o oceano na Ilha do Sul.
Conhecemos e amamos quase só os poemas religiosos de Pilinsky, que é o descobridor do mar na literatura húngara moderna. Durante a sua curta viagem de estudo a Roma, deambulou muito por Óstia. Os seus poemas evocam não só a água sem fim, mas também a vida na praia: a areia, as cabanas, os guarda-sóis, as belas raparigas na praia. Não pensamos neste Pilinsky quando ouvimos o seu nome, pois não? Claro que, para além das raparigas e das crianças, há também cravos adormecidos na “areia gelada”.
Em húngaro, não há géneros – no entanto, o mar é um elemento feminino nas letras de Pilinszky. Está ligado ao ciclo da vida, ao nascimento, ao amor e à maternidade. No poema “O Mar”, recorda a morte da sua mãe: “O mar, disseste, morrendo, / e desde então, essa tua palavra significou o mar para mim, / e talvez quem tu és. // E talvez quem sou eu? / Vales de ondas, cristas de ondas. / A tua agonia, como o mar, / libertar-me-á e enterrar-me-á”.
Esse mar maternal, como berço e túmulo, esse elemento feminino (em Itália, a “estrela do mar” é a própria Virgem Maria), é algo que procuramos em vão em Portugal. O oceano nunca é brando. Nem sequer se ouve a própria voz no seu rugido incessante. Não se pode nadar nele confortavelmente, só se pode dar um mergulho ou “cavalgar as ondas”. Não há um único momento em que esta água enorme não nos faça sentir que é muito mais forte do que nós. Que é feroz e imortal e que nós somos pequenos e perdidos.
Este oceano continua a faltar na literatura húngara. Não temos poemas sobre ele.
Talvez por isso me pareça sempre tão elementar.
O “infinito” ainda troveja quando encontramos o nosso alojamento perto da costa, nos limites do Porto. Mas eis-nos finalmente aqui! Ainda não é a época, os preços estão baixos, a dona de casa mostra o nosso quarto com pouco entusiasmo. A nossa janela não dá para a praia, mas não importa – o som das ondas ouve-se no nosso quarto.
Já durante os meus anos de bolseira, reparei que os portugueses não gostam de ir à praia. Ainda hoje só vejo famílias com crianças, adolescentes e estrangeiros deitados na praia. Também sinto falta da vida de praia desarrumada e alegre do Lago Balaton, com as suas muitas padarias, bancas de doces e bebidas alinhadas umas ao lado das outras. Apesar disso – é segunda-feira de Páscoa – metade da população do Porto passeia pelos passeios marítimos ao longo da costa. Ainda há poucos turistas; este é o mês em que o oceano pertence aos portugueses.
Estão bem vestidos, com rostos festivos, olhando sonhadoramente para a distância. É fim de tarde, a hora da saudade. Os rostos estão coloridos, os olhos brilham – a brisa do mar dá vida a tudo e a todos. Num minuto o céu está azul, no outro – que teatro! – nuvens enormes erguem-se por cima. Os casais de idosos encostam-se à barreira que separa a praia do passeio marítimo, sonhando acordados.
Os casais mais descuidados aventuram-se até ao cais do farol – cuidado, as ondas batem de vez em quando e salpicam toda a gente com um enorme jato de água. As crianças gritam alegremente, os mais velhos permanecem dignamente silenciosos. Observam a costa mais além, como se pudessem ver as caravelas que regressam do século XVI ou, de alguma forma, pressentissem o contorno da Florida ao longe.
Ou será que o outro lado que estão a observar não pode ser descrito pelas nossas coordenadas geográficas?
Foto em destaque: um farol na foz do rio Douro, no Oceano Atlântico, com a cidade do Porto ao fundo. Foto de Daniel Malinowski / Shutterstock
Fonte: kultura.hu