ANTÓNIO

por Luís Serpa
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ANTÓNIO

(Para a Sandra)

 

António vai todas as noites passear o cão, um rafeiro preto que anda como se os passeios fossem nuvens e parece ausente como se nelas habitasse. É viúvo, tem setenta anos e dois filhos cujo nome esqueceu, ou finge que esqueceu. Incompatibilizou-se com eles ainda a mulher era viva e ela morreu relativamente jovem, teria ele quarenta e cinco,  talvez cinquenta anos no máximo. Mora sozinho naquilo a que agora chama “o poço da maré vazia”, vive de um magro pecúlio composto pela reforma e pelo que resta das poupanças, previdentemente postas a render numa pequena instituição financeira. Como é pescador as suas analogias referem-se sistematicamente ao mar. O cão chama-se Faneca porque deve ter sangue de cão de água português.

António não sabe a idade dos filhos. Calcula que o mais velho esteja agora nos quarenta e muitos, a idade que ele tinha quando a mulher morreu, mais coisa menos ano. O outro é três anos mais novo. Raramente pensa neles, mas esse raramente tem cada vez mais redemoinhos e isso inquieta-o. Queria ter uma morte limpa, sem espinhas ou com elas arrumadas no sítio. Nada de coisas a espetarem-se onde não são chamadas.

Detesta a modernidade, para a qual sente que não contribuiu. Contudo, nem sempre foi assim. Maquinista de comboios durante a sua vida activa, foi progredindo na carreira até tingir uma posição elevada numa importante fábrica de material ferroviário na Alemanha. Pouco tempo depois de a mulher morrer despediu-se, pediu uma reforma antecipada, continuou a ignorar os filhos – e a ser ignorado por eles – e regressou a Portugal, para a nossa aldeia. Primeiro tentou Lisboa, mas o contraste com a Alemanha era-lhe insuportável e veio para o campo, onde segundo ele as diferenças se esbatem ou se tornam irrelevantes. Escolheu a nossa aldeia porque é delimitada por um rio no qual pode praticar o seu passatempo favorito (mas não único). Afasta-se decididamente de todas as polémicas, reduz os contactos connosco ao mínimo (nós sendo os outros aldeões, cerca de mil e poucos). O seu «Il faut être moderne» de antigamente transformara-se em «La modernité m’emmerde et je l’emmerde» (antes de ir para a Alemanha trabalhara em França, nos primeiros anos do TGV, de que era adepto, admirador e orgulhoso conhecedor).

– Percebes, Faneca? – O seu mais frequente interlocutor era o cachorro – O problema da modernidade é que ela nos fugiu. Queríamos que fosse uma coisa e ela desembestou por ali fora, feita égua louca. Fugiu-nos de mão. Repara, não há geração cujos velhos não digam o mesmo, não pensem que o caminho de repente deixou de ser ascendente e se tornou descendente. É normal, mas não deixa por isso de ser assustador. Eu fui mais livre do que os meus pais, estes mais do que os deles e por aí fora. Os meus filhos não são mais livres do que eu. São menos. Enfim, os gajos da idade dos meus filhos. Para eles estou-me nas tintas. – Um dos tais redemoinhos apareceu-lhe, a voz ia começar a tremer e resolveu calar-se. De qualquer forma, o cão não ligava nenhuma aos solilóquios do velho; não ligava a nada que não fosse comer, urinar e defecar. De vez em quando aparecia-lhe uma cadela com o cio e atirava-se a ela com uma energia insuspeita. Era a única coisa que o atraía para fora do seu próprio corpo.

– Tens sorte, – dizia-lhe António nesses dias – as fúrias não te abandonaram ainda. Ou azar, sabe-se lá. Durante um certo período da sua vida fora um impenitente mulherengo e hoje olha para a actividade sexual com um misto de sentimentos: «já tive que chega» e «nunca chega».

 

O trajecto do passeio com o cão é sempre o mesmo, o seu local de pesca igualmente. «Quem fez uma vida a andar nas linhas não precisa de desvios», explicava António a Faneca, que se adaptara ao percurso como se tivessem sido feitos um para o outro. Parava sempre na mesma árvore, cheirava os mesmos portões, urinava e defecava nos mesmos sítios. Andava um bocadinho de lado e ondulava como se fosse feito de borracha, cabeça para o chão, cauda para cima. Tinha sido bem educado, vinha quando António o chamava, não ladrava aos outros cães nem a pessoas, não pedia nem roubava comida. Só se transformava no campo: saltava, corria, caçava ratos, pedia a António que lhe atirasse paus para em seguida estrafegá-los. Iam ao campo duas vezes por semana: sábados à tarde e domingos de manhã. «Ninguém precisa mais de um desvio do que quem anda nas linhas, Faneca.» António era atraído por uma boa contradição como a água de um rio pelas barragens. «Ouve, Faneca, que eu não viverei sempre: quando estás nos carris não há desvios; quando estás nos desvios não há carris.» Faneca ouvia, abanava a cauda e corria atrás de uma folha que o vento empurrava sabe-se lá para onde.

 

II

António foi pescar. Em breve morreria, «seja ela que me vem buscar, seja eu que a vou visitar», explicava ao cão. «Não tarda acaba-se-me a massa, a cabeça, os olhos e os ouvidos… não me vês a viver como tu, pois não, Faneca?, na dependência de um idiota qualquer. Vá lá que tu ao menos ainda consegues mijar e cagar sozinho, mas um dia eu nem isso poderei fazer. Além de que sem fúrias a vida perde metade do interesse e essas há muito me deixaram pendurado.» É verdade que pensava cada vez mais na morte e cada vez mais a ideia de se reconciliar com os filhos lhe subia pela espinha acima. Contudo, não sabia como encontrá-los. Perdera-lhes o rasto há mais de vinte anos, por causa de uma história de mulheres. Isto é, mulheres deles: apanharam-no na cama com elas, as duas ao mesmo tempo. A mulher riu-se e encolheu os ombros; eram duas irmãs e delas dizia «não são gémeas mas são putas monozigóticas». Porém os filhos zangaram-se, recusaram-se a vir a casa dos pais quando ele lá estivesse, passado pouco tempo Katherine morreu – era o único elo que o ligava a eles – veio-se embora para Portugal e a corrente quebrou-se definitivamente. Até agora.

O resultado da pesca foi bom. No rio abundam lampreia, enguias, saboga, muge, barbo, picão, achigã, carpa, lúcio-perca, caranguejos azuis. Destes, alguns são importados sabe-se lá donde. A António a proveniência dos peixes é indiferente: pescou um belo lúcio-perca e três muges decentes. Têm jantar para três dias, Faneca e ele. Ao forno, o lúcio é excelente, fino e delicado. Já o muge (noutras paragens conhecido por sável) é melhor frito ou grelhado.

 

III

António deita-se no tempo como se estivesse na espreguiçadeira de um paquete, ao lado da piscina, vendo as senhoras de biquíni explicar aos maridos porque é que não devem olhar para a concorrência. Espera um cometa que o leve para o futuro ou lhe traga o passado.

– Verdade seja dita, Faneca, a Katherine não tinha concorrência, pois não?

– …

– Pois, tu não a conheceste, não sabes. Há quantos anos estamos juntos, nós? Apanhei-te numa rua, eras tu cachorro de mal te aguentares nas pernas. Catorze anos? Quinze? Não sei. Não tarda vais desta para melhor, é o que é.

– …

– Katherine era diferente das outras mulheres. Tinha mais testosterona do que elas. Tinha mais testosterona do que muitos homens que conheço, de resto.

– …

– Percebes, Faneca? Não percebes, claro. O teu vocabulário é limitado. Percebes o teu nome e mais meia dúzia de palavras. Repara, o problema é simples: do que é que se gosta numa mulher? Ser como nós? Asneira. Aguentar-nos? Erro. Corrigir-nos, educar-nos, seja o que for? Fracasso assegurado. A única qualidade que te faz amar alguém como deve ser é essa pessoa deixar-te ser quem és e amar-te apesar de seres o que és. Dialéctica pura, meu caro. Muita sorte tens tu em não perceberes nada disto. «Amo-te porque me desafias e me levas a ser tudo o que sou.»

– …

– Tu calas-te, claro. Talvez nessa meia dúzia de sinapses que não tens de dedicar às necessidades básicas consiga surgir uma pequena faísca de surpresa. Nunca me ouviste falar tanto tempo seguido, pois não?

Estavam deitados à beira-rio. O dia caía, a água tranquila reflectia os tons encarnados, rosa, amarelos do céu. A terra escurecia progressivamente, devagar como uma senhora velhinha a subir escadas. O pequeno pecúlio de António já acabou há algum tempo. O rio corre por entre margens escarpadas, «secas como ossos num deserto».

– Agora moramos no poço da maré baixa, Faneca. Sem a ajuda do eurototós nunca mais sairemos dele. Os meus planos para a reforma ficaram a meio: pôr ordem no passado e apanhar um cancro fulminante, daqueles que matam em semanas ou em meses. Ainda vou a tempo, repara: tu não tarda vais de bola e eu… eu… eu, olha substituo o cancro por outra coisa qualquer, ainda mais rápida. Tenho a vida em ordem: o que parecia disperso e desarrumado foi limpo. A mulher a dias da vida passou por ali, deitou fora o que era de deitar fora, tirou o pó ao resto e arrumou-o por estantes, armários, gavetas, cómodas, tudo. Só me custou começar porque não sabia que ordem dar àquilo, que variáveis escolher. Uma vez isso feito, foi fácil, parecia um comboio lançado nos carris e sem sinais à frente. Fotografia, mulheres, viagens, trabalho, família, escrita, bebida… foi tudo a eito. Enfim, a eito é maneira de dizer. Foram mais de um dúzia de anos, não foi? Verdade seja dita, não a tempo inteiro. Havia a pesca, as caipirinhas no café do mercado – que linda é a mulher que as faz, não achas? – os passeios pelo campo contigo. O passado e o presente estão separados por uma rede permeável, uma rede que só retém o que lhe interessa e deixa passar o resto. Até lixo passa pelas malhas e nós vamos deixando-o acumular-se. A maior parte das vezes não nos apercebemos sequer de que é lixo; ouras, não ligamos. Dizemos «Ah, depois tratarei disto». Esse depois demora a chegar e o passado vai-se acumulando, desarrumado. Foi por isso que vim para a aldeia, Faneca: sentar-me à mesa, limpar os pratos do passado, apanhar um cancro e ir-me, com a casa limpa e as janelas sem mácula. Esta aldeia é o sítio ideal para fazer isso, excepto que de cancro nem sinais. Qualquer dia vou de cometa, é o que é. Vá, anda, vamos para casa. Está a ficar frio e a loira das caipirinhas já fechou.

 

– Também não vou durar muito, Faneca. Sabes isso, não sabes? Algures dentro de ti deve haver uma voz a avisar-te. A carcaça está podre, apesar de não parecer. São coisas que me chegam do fundo dela que mo dizem. Tu não estás muito melhor, repara. Estamos numa corrida, não para ver quem chega primeiro mas quem vai primeiro. Espero que sejas tu, com essa idade sem mim não duras muito e num canil qualquer mais vale estares morto, que aquilo não é vida.

 

IV

A questão está no que António disse ali em cima: o que separa o passado do presente e este do futuro é uma rede de malha muito larga: tudo passa de um lado para o outro. Arrumas o passado hoje e amanhã tens outro por arrumar e todos os dias um prato se junta à pilha. Nunca acaba. Um dia, resolveu acabar com as limpezas.

– Já fui muito infeliz. Mais infeliz do que tudo o que tu possas imaginar. Tão infeliz que não sabia sequer que a felicidade existia. Não era como se a tivesse esquecido, era mesmo não saber, nunca ter sabido. Só mais tarde, anos e anos depois, mais ou menos na altura em que conheci Katherine, descobri que a felicidade é real e não qualquer coisa de que se ouve falar ou se lê nos livros – mas não por conhecimento directo, não por a ter experimentado. Isso só veio depois. Muito, muito depois. Para mim, experimentar directamente a felicidade foi como renascer, como ver o Sol depois de um eclipse de séculos. Não me lembro de quando isso aconteceu, mas já ia muito avançado em direcção aos trinta. Até lá, a minha vida fora como aquelas intermináveis praias do mar do Norte, de areia cinzenta, céu cinzento, mar cinzento e mulheres muito brancas e finas como pasta de dentes. Não ligava às mulheres. Isto é, ligava e muito, queria tê-las mas não queria fazer o que era necessário para as ter. Como quando queres beber um café mas não tens vontade do o fazer. Era infeliz e deixava-me arrastar pela infelicidade como um entrevado numa cadeira de rodas no hall de um hospital. A infelicidade era a minha casa. No Inverno fazia batalhas de bolas de neve, ski de fundo, bebia vinho quente e era infeliz. No Verão, passeava pelos bosques, bebia cerveja ou vinho branco e… adivinhaste, Faneca. Ainda hoje me lembro desses dias com terror e espanto. Terror porque sei que podem voltar à cada instante. Espanto, porque não compreendo como lhes sobrevivi, como aguentei tanto tempo. Uma vez tentei acabar com aquilo, mas não consegui e mal saí do hospital real voltei para o meu hospital metafórico, o da cadeira de rodas, tetraplégico dos sentimentos.

A felicidade caiu em mim de repente. Já ouvira falar dela, como te disse. Talvez até a tivesse vislumbrado, talvez lhe tivesse tocado de raspão. Um dia, porém, descobri que podia ser feliz, podia ser como todos os homens à minha volta, podia ser deus. Deus menor, sem dúvida, mas deus. Finalmente, a minha vida começara a obedecer-me. Não sei como explicar-te isto: de ser vivido passei a viver. De bola de bilhar passei a ser o taco. Imagina um cego que de repente começa a ver: aposto que a sua alegria, a sua felicidade, o seu espanto não seriam maiores do que os meus, quando  descobri que também a mim era dado ser feliz. Como se tivesse nascido já adulto. Ainda hoje não percebo como aquilo aconteceu, mas espero que não acabe, ainda. – António pegou no gin tónico que pousara ao seu lado, deu-lhe um longo gole e continuou:

– Ainda é cedo. A partir de hoje, só trataremos do futuro, Faneca. Tu tens sorte, o teu é curto. Eu ainda tenho alguns anos para o fazer e é a isso que vou dedicar-me, de hoje em diante. Acabaram-se as arrumações.

 

Luís Serpa

Genebra 10/2020 – Lisboa, 19/01/2021

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