A reinvenção de Miguel Rocha Vieira

por LMn
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Depois de muitas aventuras, mas desventuras também, Miguel Rocha Vieira atracou em Lisboa com um projeto ambicioso que pretende dar uma nova vida à Doca da Marinha.

Escrito por 

Cláudia Lima Carvalho

 

Há quem lhe aponte o mau feitio, quem se lembre dele da televisão nos tempos em que era uma das caras do Masterchef, mas não terão sido assim tantos os que lhe provaram os pratos, ou não tivesse Miguel Rocha Vieira feito carreira praticamente fora do país. A vinda para a Fortaleza do Guincho, em 2015, podia ter ditado o regresso, mas três anos depois voltava a cem por cento a Budapeste, já com o título de único chef português com três estrelas Michelin (na Fortaleza, no Costes e no Costes Downtown). Não foi assim há tanto tempo, mas já parece outra vida. José Avillez é agora o chef português com mais estrelas, quatro nomeadamente (duas no Belcanto, uma no Encanto e outra na Tasca no Dubai); e Miguel Rocha Vieira despojou-se de tudo para voltar ao início. A Hungria faz parte do passado. O presente é vivido em Lisboa, mais concretamente na Doca da Marinha, onde tem três quiosques (por agora ainda só dois a funcionar), um restaurante (a abrir em Janeiro) e um espaço para eventos.

“Quando vim para o Guincho pensei: daqui já não me mudo. É o meu sítio, estou em casa. Pensava que nunca iria sair, mas a vida dá muitas voltas e a verdade é que passado três anos voltei a Budapeste e tinha claro que para sair teria de ser [para] uma coisa a sério ou então não saía porque não estava mal”, diz, descontraído, calções e t-shirt, crocs nos pés, na esplanada do quiosque que abriu em meados de Setembro (Amarelo), dedicado aos petiscos portugueses. “Um dia, recebo um telefonema para vir ver um projecto a Lisboa. Impossível dizer que não a isto. É mais do que abrir um restaurante, muito mais. Gosto do desafio de dinamizar uma área que gerações futuras poderão usufruir.”

O chef não é tímido no discurso por saber a exacta dimensão do projecto que tem em mãos. “É engraçado porque estamos a falar de uma área no centro de Lisboa que muitas pessoas não conhecem, nem os lisboetas, e, a meu ver, tem um potencial gigante. Temos um livro grande em branco nas mãos e podemos contar a história que quisermos.” A área a que se refere é, nada mais nada menos que a Doca da Marinha, renascida nas obras que requalificaram a frente ribeirinha e que devolveram à cidade a Estação Sul e Sueste. “As pessoas agora forçosamente vêm da Baixa, chegam à Praça do Comércio e viram à direita. Não tenho dúvidas que a partir do momento em que haja barulho a vir daqui, começam a passar para aqui também.”

E se Rocha Vieira é um nome de peso, não lhe ficam atrás o arquitecto Carrilho da Graça, que assina os quiosques e o restaurante – ainda em obras –, e Julião Sarmento, que deixou aqui uma das suas últimas obras antes de morrer, um conjunto de pinturas retroiluminadas (azul, amarelo e vermelho), visível numa das laterais de cada quiosque. “Queremos aproximar um bocadinho o rio Tejo às pessoas, queremos fazer uma coisa divertida, mostrar que a boa cozinha não tem que ser um jantar sentado de três horas, de luva branca, toalha na mesa. Pode ser uma coisa divertida, descontraída. Queremos chegar a toda a gente.”

O fine dining parece, por agora, ter ficado para trás, fruto também de um desencanto com a profissão, ou antes, com o rumo da profissão no nível em que sempre trabalhou. “De ano para ano, as coisas começam a deixar de fazer sentido. Metes numa balança, avalias, fazes comparações e não bate a bota com a perdigota, como se costuma dizer. Pelo menos da maneira que eu vejo. Não é crítica nenhuma a ninguém, nem a colegas, nem a guias. Acho que cada um tem o seu espaço, o meu é desligar-me disso”, explica. “Quero reinventar-me um bocadinho, já são 20 anos com estrelas Michelin, com parvoíces que hoje em dia não fazem muito sentido.”

Os quiosques não podiam ser, por isso, a melhor antítese desse passado. Um sítio para se estar sem pressas, ou também com o tempo contado. Sem regras nem preconceitos. Para comer ou para beber um copo. Com música, festas e tudo o que mais se puder fazer. “Também tenho algum bichinho para organizar eventos”, afirma. “Queremos ter espectáculos, artistas plásticos, mercados”, acrescenta, a fervilhar de ideias. Garantida está a música nos quiosques com um DJ a unir as esplanadas.

O primeiro (Vermelho), mais afastado em relação à estação, ainda não abriu, mas quando isso acontecer nos próximos dias será apostado “numa onda mais pequeno-almoço, brunch, saudável, vegetariano”. O quiosque do meio (Amarelo), o primeiro a começar a funcionar, tem uma carta de “petiscos portugueses de partilha”, de uns mini-hambúrgueres de carne maturada (12€), a uma salada de polvo com batata doce de Aljezur e molho virgem (10€), ou uma açorda de camarão e berbigão (12,50€) a um pica-pau de atum (12€). Já o quiosque Azul, entretanto aberto, Miguel Rocha Vieira vê-o como “um ponto de encontro, com marisco, coisas do mar, do rio, champanhe, espumante e vinhos naturais”. Estão lá as ostras do Sado com limão, chalotas em vinagre e “tabasco” caseiro (10,50€/3 unidades), o mexilhão com vinagrete de pickles (8€), o rissol de camarão que o chef comia em miúdo (2,80€), as lulinhas com limão (10€), mas também aquilo que o Tejo oferecer para se fazer à bulhão pato (15€). “O Tejo é uma coisa que eu quero descobrir e tentar trazer para a mesa”, sublinha. Um trabalho que não lhe é estranho, se nos lembrarmos que quando assumiu a cozinha da Fortaleza do Guincho, o chef decidiu arriscar e quebrar com a tradição francesa que reinava até então para se inspirar no mar, ali em frente, privilegiando sempre os produtos da zona.

E ainda falta o restaurante, onde essa matriz se poderá sentir mais. Depois de ter anunciado a abertura para o final do Verão, Rocha Vieira viu-se obrigado a adiar os planos. Agora até tem medo de avançar uma nova data, nem quer revelar o nome do restaurante, receando que se levante o véu sobre o que ainda não quer que se saiba. Uma coisa é certa: “Não é um restaurante de assinatura do Miguel”. “Vai funcionar à carta com pratos para dividir também, coisas para comer com a mão”, desvenda, avisando que não quer ninguém intimidado ali. “O restaurante até tem uma vertente lúdica. Às quintas, sextas e sábados vamos estar até às quatro da manhã com música”, adianta. “Para nós faz sentido, mais uma vez, nesta localização, e é um grande desafio porque não sei ainda como é que vamos conseguir fazer essa transição. Estamos a pensar muito nisso.”

Todo envidraçado, mesmo em cima do rio e com 130 lugares, há um lado cénico no restaurante com uma cozinha aberta, que até da rua poderá ser vista. A ideia é não só despertar a curiosidade de quem passa, como fazer brilhar a equipa. Um tema que hoje lhe é muito caro, depois de em Agosto, um excerto de uma grande entrevista à RTP se ter tornado viral por defender que durante demasiado tempo não se valorizaram as pessoas na restauração, razão pela qual, acredita, hoje o sector vive em crise com falta de mão de obra. “Nunca fiz nada a nível profissional que tenha tido o impacto na Internet, nas redes sociais, que isso teve. Nem fotografias com o Ronaldo, nem com estrelas de Hollywood, estrelas Michelin… O Twitter, então, foi uma coisa parva”, lembra. “É curioso, se partilhamos todos da mesma ideia, como é que nunca ninguém trouxe isto para cima? E se partilhamos todos da mesma ideia, agora que se tocou na ferida, é mais fácil de resolver, não?”

A resposta não é imediata. Ou a pergunta é quase retórica, não fosse o problema complexo. “A ideia que tenho, de muito do feedback que tive, é que tudo se resolve com o aumento dos salários e não era de todo a mensagem que eu queria passar. É importante, sem dúvida, mas para mim o ponto fundamental é a valorização das pessoas.” Até porque sem isso, a longo prazo, um aumento nunca chegará para prender alguém, acredita. “Eu quero apostar muito no serviço de sala, fazer umas coisas divertidas, também para que eles se sintam parte da equipa – e não que estão aqui para servir pratos de um chef que só está aos gritos.” Já foi assim em tempos. “Eu já fui um animal autêntico, no verdadeiro sentido da palavra. Tenho mudado porque me apercebi disso”, confessa, fazendo um mea culpa. “Quando olhas para o lado e não tens ninguém, quem é que é o parvalhão?”

Justificações para isso, não tem. “É uma parvoíce tão grande que não tem explicação. Aprendemos com a vida. Para pedir tens que dar, tem de haver um equilíbrio. E há coisas que não nos custam absolutamente nada”, concede. “Quando é o teu aniversário, não vens. Se a mãe está no hospital, deixa-o ir. A namorada faz anos, convida-a para vir jantar. Coisas assim. É preciso ter uma relação mais próxima”, exemplifica. O objectivo agora é que “toda a gente se sinta bem”. “Quero que as pessoas sintam isso, daí também querer passar para trás. Quero deixar os meus subchefs voarem, deixar as pessoas da sala voarem.” Como? Voltando para a cozinha, e não aquela que está à vista, mas a que se esconde no piso inferior do restaurante. “Quero voltar a pôr as mãos na massa, chegar a casa todo sujo, a cheirar a fritos.” Sem pressão – e talvez por isso não tenha vindo a revelar muito sobre o restaurante. “Não quero meter um rótulo porque isso limita-nos a nível criativo. Posso dizer que será certamente o mais no waste possível, o mais saudável possível, o mais sazonal, o mais divertido”, conta. “Isso são tudo coisas que nos fazem sentido, mas sem o rótulo. O que interessa é ter liberdade, sinto falta disso.”

E volta a insistir: “Este projecto é muito maior, não é um restaurante de assinatura”. Admitindo que numa fase inicial seja inevitável que se associe este projecto ao seu nome, o desejo é que, com o tempo, “ir à Doca da Marinha” se torne a norma.

Doca da Marinha, Av. Infante Dom Henrique (Campo das Cebolas). Amarelo: Seg-Dom 09.00-00.00. Azul: Ter-Sáb 12.00-23.00

Este artigo foi originalmente publicado na Time Out Lisboa 

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