“A Régio”

por Frederico Raposo
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Já velho, se foi o poeta
O tal que fitando o longe
No seu velho e gasto sofá
Toscamente instalado
Na varanda da velha casa
Pacientemente escrevia coisas
Coisas que nunca ninguém leu

Varanda não diria…
Mais um espaço ao ar livre
De uma parte inacabada
Da velha e tosca casa

O povo por ali passava
Invisível ao pensante
Sempre no mesmo sítio
Imóvel sentado
Junto à descida que os levava
Ao caminho das lavouras
Ao caminho das suas vidas

No dia em que partiu
Deixou para trás ficar
Um sofá agora vazio
Centenas de gatafunhos
Que o afastado sobrinho
Do pouco que olhou,
Jamais percebeu ou decifrou
E por fim um último sagaz mistério:
Pousou no meio da praça
Bem no meio da pequena vila
A sua própria sombra

Foi um gaiato que a viu!

O povo, de olhos baixos sentidos
Assistia com um olho em falso carpir
Ao vagaroso trabalho do coveiro
E o outro olho, bem discreto
Percorrendo os seus pares
Tentando, sem a culpa os acusar
Perceber a verdadeira honestidade
Do sentimento dos presentes

Uma correria interrompeu! e o puto gritou:
Está uma sombra sozinha na praça!
Está a sombra do poeta na praça!

Um salto foi o que deram
E em tempo nenhum
A vila toda na dita praça
Deixando esquecido para trás
A cova, o corpo, o carpir
E o desinteressado coveiro
Lançando a escura terra
Com a mesma vazia emoção
Com que vivia os seus dias

Teorias feitas e criadas
Opiniões e certezas fundamentadas
O povo em roda, rodeando a sombra
-Nunca se havia visto tal coisa!
Que fenómeno este na pequena vila
Uma sombra sozinha sem corpo!

Duraram dias as romarias
De todo o lado chegando gente
Até que o único pedaço de calçada
Não calcado por boçais romeiros
Era o tal sombrio e inusitado pedaço
Onde a esguia e longa sombra
Sob o sol ou sob a lua, imóvel se deitava

Mas tal como no mais consumante amor
Apressado e sem perdão o tempo passou
A novidade num ápice se fez comum
A jovial infantil incompreensão
Feita de pujante curiosidade
Era agora escudo de indiferença
A mesma que sempre vem
Quando massas ignorantes
Não entendem o que vêm
E assim, o povo que é sereno,
E sempre cúmplice no seu silêncio
Manso regressou às suas casas
Às suas vidas, lavouras e crenças

A sombra essa, ficou por ali
Ainda viva, só, calma e tranquila
Naquele exacto ponderado lugar
Onde sempre desejou ficar
Prevendo dessa forma se tornar
No último poema do seu poeta
E mesmo sabendo que arriscava
A possibilidade de nunca ser lida
Viveu com a louca esperança
De talvez um dia, sem pressa…
E sem depender dessa crença
Poder ser para alguém, apenas e só
Semente

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