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A carta de amor ao fado de uma suíça e uma húngara

A ideia nasceu há muitos anos na cabeça de Céline Coste Carlisle, mas só com a ajuda de Judit Kalmar é que o documentário Silêncio – Vozes de Lisboa ganhou vida. Nesta semana abriu o FESTin – Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa.

“Olha, é a Josefina!” Sentada diante de uma bica a uma mesa do restaurante Cana Verde, Céline Coste Carlisle interpela a mulher que se prepara para sair. “Então tudo bem? Não foi à estreia do filme. Tem de ver, aparece lá algumas vezes.” Josefina é a cozinheira do restaurante Esquina de Alfama, um dos cenários do documentário Silêncio – Vozes de Lisboa que a suíça Céline e a húngara Judit Kalmar realizaram e que abriu o FESTin – Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa. Uma homenagem aos fadistas de Alfama, a esta “família” como Céline lhe chama e da qual se orgulha de fazer parte, guiada por duas mulheres de gerações diferentes – Ivone Dias e Marta Miranda – mas também uma viagem pelas mudanças da cidade nos últimos anos.

Antes de sair, Josefina ainda deseja “um bom Natal e um bom ano “se já não nos virmos, que este foi para esquecer”. Céline e Judit despedem-se da mulher que faz a melhor cataplana de Lisboa e a conversa regressa ao inglês, o idioma comum. Mas depressa as duas amigas se começam a rir porque a língua foi precisamente um dos desafios nas gravações de Silêncio – Vozes de Lisboa. As entrevistas e conversas com os fadistas decorriam em português, Céline e Judit falavam em inglês, mas a equipa técnica que veio com a realizadora só falava húngaro. Uma mistura que reflete a essência desta coprodução, mas também esta Lisboa multicultural que lhe serve de pano de fundo.

A viver em Lisboa desde 1999, há anos que Céline queria registar em filme a história de Ivone Dias. “Mas sabia que para isso precisava de boa iluminação e de um bom som. Tentei uma primeira vez e estraguei tudo com o som”, explica. Primeiro procurou jovens cineastas portugueses, mas depressa descobriu que o fado não lhes interessava. “Eu não queria contratar uma pessoa, queria alguém para fazer um projeto artístico comigo”, conta. E esse alguém acabou por ser Judit.

Céline e Judit já se conheciam há algum tempo quando surgiu a ideia de trabalharem juntas no documentário. Habituadas a falar mais sobre os filhos ou sobre a sua vida em Portugal do que sobre os seus trabalhos, há quatro anos, numa visita de Judit a Lisboa, esta mostrou à amiga o documentário que tinha acabado de fazer e Céline lançou a hipótese de trabalharem juntas para tornar realidade o filme que há 15 anos tinha na cabeça fazer sobre Ivone Dias, uma fadista na altura já na casa dos 80 anos.

E foram juntas ouvi-la no restaurante Esquina de Alfama. “Fiquei UAU”, confessa Judit. O fado, que até então pouco ouvira, entrava assim na sua vida. De tal forma que hoje tem toda uma playlist de fados no telemóvel, que ouve enquanto trabalha – desde Amália Rodrigues, claro, até aos fadistas que gravaram para o documentário, a começar por Ivone e por Marta Miranda.

“Faço sempre um pequeno teste aos meus amigos: se eles ouvirem Ivone cantar O Meu Primeiro Amor, a parte de ‘ter outra vez 20 anos’, e chorarem, passaram”, ri-se Céline. Judit passou com distinção. A própria relação de Céline com o fado é muito antiga. “Quando era miúda dividíamos uma casa com a família de um médico que ouvia muito Amália. Mas eu não sabia o que era”, recorda. Criada numa família de músicos, e com uma educação em música clássica, a suíça confessa-se amante de ópera e sobretudo “de histórias contadas através da música”. Talvez por isso ou por causa dessas memórias de infância, quando chegou a Lisboa e voltou a ouvir fado foi como “reencontrar uma canção perdida, reencontrar algo que amava mas que nem sabia”.

Passada a pressão da estreia no Cinema São Jorge, em Lisboa, com os músicos, Ivone e Marta na audiência, Céline respira de alívio. Todos os que viram o documentário parecem ter gostado. “Até recebi uma mensagem de uma amiga a dizer que o marido gostou muito e comentou que parecia uma carta de amor ao fado”, conta Céline. A própria Ivone ficou emocionada: “Passou o filme agarrada ao meu braço. Não agradeceu com palavras mas é a forma de se expressar.”

Ultrapassar a desconfiança

Ultrapassar a desconfiança natural numa comunidade como a dos fadistas de Alfama foi o ponto de partida para o filme. “A filha de Ivone estava preocupada com o que íamos fazer com as imagens da mãe, com a sua história”, explica Céline. Talvez porque no passado já tinham tentado contar a história da fadista mas focando-se só na relação nem sempre fácil com o marido. “Nós quisemos contar a história toda”, remata a realizadora. E no final da estreia até os netos de Ivone vieram ter com elas, emocionados. Judit concorda: “É muito sensível. É a natureza dos documentários: as pessoas dão-nos as suas vidas. E quando o veem, é como olharem para um espelho. Claro que não podemos contar tudo, mas o importante é que eles sintam que é realista, que não seja ofensivo.”

Também Marta Miranda começou por resistir à ideia de entrar no documentário. Com uma relação mais recente com Céline, a fadista gosta de controlar a forma como aparece à frente das câmaras e por isso, quando a equipa apareceu no Tascabeat do Rosário e começou a fotografá-la, não achou muita graça. Mas acabou por aprender a confiar nas realizadoras e a contar a sua história.

Para Judit, o primeiro contacto com Portugal aconteceu há 13 anos. A família – tem três filhas, pequenas na altura – veio passar um ano em Lisboa por causa do trabalho do marido. Voltariam, sete anos depois, para uma segunda estada de um ano. Desses tempos a ex-jornalista guardou a capacidade para perceber o português quase na perfeição.

Foi logo naquele primeiro momento que Judit sentiu que esta era uma segunda casa. “Em parte foi graças às pessoas. Senti-me muito bem-vinda aqui.” E quando voltou à Hungria “foi como se a minha alma tivesse ficado para trás”. As semelhanças entre os dois países – “o tamanho, o calor do povo” – talvez expliquem esta paixão à primeira vista da jornalista tornada realizadora. Mas também as diferenças. E refere “a natureza, o campo, a imensa variedade de paisagens, o interior e o mar”. Coisas que a conquistaram, tal como a grande diversidade da sociedade portuguesa, “com pessoas vindas de todas as partes do mundo”. E explica: “Como eu me senti bem-vinda, outras pessoas podem facilmente ter um lugar neste país.”

Também os fadistas de Alfama receberam “a menina dos olhos azuis” – como lhe chamou Ivone – na família. E apesar das “dores nas pernas”, a fadista acabou por abrir as portas da sua vida à equipa de filmagem.

No início, Céline não queria aparecer em frente às câmaras, mas depois de algumas discussões mais acaloradas com Judit, lá aceitou ser “a terceira protagonista do filme”, como explica a realizadora húngara. Isto se não contarmos a própria Lisboa. A cidade, as suas mudanças, o boom do turismo, a gentrificação dos bairros típicos como Alfama, são o pano de fundo desta história, fazendo eco de um problema que muitas cidades estão a enfrentar – ou pelo menos estavam, antes da pandemia. E que acrescenta a Silêncio – Vozes de Lisboa um apelo universal.

Financiado em parte graças a uma campanha de crowdfunding, o documentário acabou por ter um custo mais elevado do que inicialmente pensado, sobretudo devido aos direitos de autor das músicas que Céline e Judit usaram. Mas conta também com apoios de entidades como RTP, Museu do Fado, Fundação Gulbenkian.

Para já o filme tem legendagem em inglês – um verdadeiro desafio que ficou a cargo da filha de Céline entre a transcrição das entrevistas, a tradução fiel da mensagem para inglês e depois o poder de síntese para caber no ecrã e dar tempo ao espectador para as ler. Na calha estão já também versões em francês e húngaro. Para além da estreia no São Jorge, Silêncio – Vozes de Lisboa já esteve ou vai estar presente em mais de uma dezena de festivais de cinema – da Coreia do Sul à Argentina, passando pelos EUA, Congo ou Israel. Está ainda prevista a sua exibição na RTP e as realizadoras esperam que, passada a pandemia, seja possível a sua exibição nas salas de cinema. Mas Céline e Judit querem também levar o filme às comunidades – “afinal é sobre elas” – não só em Lisboa como a outras zonas do país. E as realizadoras não têm dúvidas: “Se conseguirmos ter os músicos connosco, com certeza levaremos atuações maravilhosas até estas pessoas.”

Fonte: DN

Ver também:

Ouçam! Silêncio – Vozes de Lisboa. Filme de Judit Kalmár & Céline Coste Carlisle