TÃO PRÓXIMO DO PRECIPÍCIO COMO DO PREPÚCIO
Levy O`Liver
“Vitor Vicente, na linha de Houellebecq, com toques de Bukowski, entra para a galeria dos ultrarrealistas contemporâneos que estão a registrar o fim do Ocidente e o advento de um admirável mundo novo qualquer” diz o escritor brasileiro Fábio Gonçalves, a propósito do recentemente publicado livro de memórias “À Beira do Danúbio”.
Não sabemos, ao certo, de que se trata do “admirável mundo novo qualquer” citado por Fábio; a narrativa dominante, não obstante a evidente ideologia globalizante, inviabiliza o mais perspicaz dos cidadãos de vaticinar o próximo capítulo.
No entanto, para quem acompanhe a obra (no caso, o percurso, uma vez que o autor é fundamentalmente um andarilho que, de vez em quando, se metamorfoseia num autor) de Vitor Vicente, sabemos que os livros de memórias e/ou de viagens, não se tratam propriamente de uma novidade. Budapeste apresenta-se como a senhora-cidade que se segue, antecedida por, entre outros, relatos na primeira pessoa, em cenários como Barcelona (“Sobre Vivências em Barcelona”) ou nas terras de Vera-Cruz (“Bravo, Brasil”).
Vitor Vicente não é um emigrante equiparável aos outros. Tampouco um escritor para todos os gostos. O Soy Boy do século XXI não terá estômago para digerir descrições detalhadas, por vezes pornográficas, de aventuras sexuais, ou os insultos trocistas à imbecilidade humana em que o tal tíbio rapazinho tenderá a reconhecer a sua pueril e patética conduta.
A mulherada também tomou parte cimeira noutros títulos de Vitor Vicente. Metade de “Israel, Jezebel” é a história de um affair com uma donzela israelita; a outra metade é a busca por uma certa santidade, senão a descoberta da vida espiritual, iniciada numa descomprometida ida a Praga e até então reprimida pela cegueira do comunismo.
Ainda “À beira do Danúbio”, desta feita em Budapeste, onde o autor-andarilho residiu cerca de quatros anos, encontramos uma Europa a desvanecer-se e um país que quer e não quer a nobre missão de se assumir como o bastião da civilização. Este alerta, juntamente com o descarado carnaval nas aplicações de dating, remetem imediatamente para o Houellebecq referido por Fábio. Bret Easton Ellis será menos evidente que o francês, mas o seu estilo cru e cáustico ecoa igualmente na escrita de Vitor Vicente. A que podemos juntar toda uma anónima panóplia de pícaros viandantes da literatura classico-ibérica, da qual emergem o par de afamados nomes de Bocage e Lazarillo de Tormes.
“À Beira do Danúbio” é uma narrativa cruel e, de certo modo, profética. O leitor que sofra de vertigens morais, sejam as pós-modernas ou as chamadas tradicionais, que se prepare para um sítio tão próximo do precipício como do prepúcio.
Vitor Vicente (Barreiro, 1983), vive fora de Portugal desde 2006, entre Espanha, Irlanda, Polónia e Hungria, residindo atualmente em Cork (Irlanda). Publicou livros de vários géneros literários no decurso dos últimos anos, sendo o tema da viagem transversal a toda a sua obra. Últimos títulos: A Alfândega (Edições Sem Nome, 2019), Israel, Jezebel (Editora Jaguatirica, 2019) Ambulatório (Temas Originais, 2019), Bravo, Brasil (Bestiário/Class, 2020), Fúria de Viajar (Projecto Foco, 2021), Sobre Vivências em Barcelona (PT: Húmus, 2021, BR: Editora Jaguatirica, 2021) e Transolitariano (Edições Sem Nome, 2021). Vitor Vicente é colaborador frequente do LusoMagyar News.