Por Sérgio Costa Araújo
A tradição da Árvore de Natal não tem um percurso histórico óbvio. Sabemos, contudo, três coisas: emerge do costume romano de ornamentar o interior das casas com elementos vegetais; está relacionada com a cultura popular cristã protestante do centro da Europa; a única proibição ordenada pela igreja a este costume data de finais do século VI e, pasme-se, foi emitida pelo então bispo de Braga: Martinho Bracarense.
O Reino Suevo
No século V, concluída a invasão do noroeste peninsular, o norte de Portugal e a Galiza formam durante quase 200 anos o Reino germânico Suevo com capital em Braga. Muitos costumes romanos persistem como a celebração das calendas, onde, por exemplo, as pessoas se presenteiam com ramos de árvores para dar boa sorte no novo ano. E é fundamentalmente destas festas que deriva a decoração das casas dos suevos deste período com loureiro e outros verdes.
Martinho Bracarense, o primeiro bispo de Braga, e depois santo, também conhecido por S. Martinho de Dume, funda um mosteiro em Dume e inicia a conversão dos suevos ao catolicismo. É ele o autor deste decreto que faz parte da “Colecção de cânones”, coligida por si, que proíbe explicitamente no cânone LXXIII: “Que não seja lícito observar as festas das calendas. Não seja permitido observar as ímpias festas das calendas, e guardar as férias gentílicas; nem guarnecer as casas com louro, e ramagem de árvores. Todas estas práticas são do paganismo!”
Num texto do mesmo período, também da autoria deste mesmo bispo – “texto sobre crendices, ontem”, a colocação do louro é equiparada a uma obra do diabo, tal como outros costumes então populares, e pergunta “(…) observar adivinhação, agouros e os dias dos ídolos que outra coisa é senão culto diabólico? Observar as Vulcanais e as Calendas, guarnecer as mesas, pôr louro, entrar com o pé direito, derramar na lareira sobre a lenha a arder, alimento e vinho e deitar pão nas fontes, que é isto senão culto do diabo?”
No século XIX, o costume de ornamentar uma árvore com objetos, no espaço doméstico, inicia-se segundo Perry em Berlim, em 1815, com Caroline von Humboldt, esposa do educador iluminista prussiano Wilhelm von Humboldt ao armar uma Árvore de Natal no seu salão da moradia do Unter den Linden. Nesta altura, Berlim era capital do reino da Prússia. Caroline escreve a Wilhelm: “em ambas as extremidades de uma longa mesa, duas pequenas árvores brilham com velas acesas (…) A Condessa Dübin rodeou uma com todos os tipos de presentes para os seus pequeninos, eu usei a outra para Hermann (…) dos seus presentes principais constavam um teatro, um interessante conjunto de construção, um esquadrão de Cossacos, e por aí fora.” Esta árvore terá sido a primeira Árvore de Natal num espaço doméstico de Berlim, naquela que seria a primeira de uma série de tradições que rapidamente se generalizariam a todo o continente europeu.
Perry acrescenta que na primeira metade do século XIX os católicos ainda lutaram para preservar a sua versão do Natal da infiltração protestante. Em 1823 o Arquiduque João da Áustria protestava que uma árvore decorada “com velas e uma divisão inteira cheia de brinquedos de todo o tipo” ameaçavam o caráter santo da tradicional cena do Presépio e perturbaria o momento de prece da noite de Natal exigida pela tradição católica. Ainda no final do século XIX as observações ‘modernas’ do Natal geravam um coro de desaprovação entre os católicos conservadores.
A industrialização e o mercado de consumo acabaram por generalizar o costume e na década de 1870 na imprensa periódica ilustrada reproduzem-se profusamente artigos que sugerem aos leitores como armar uma árvore cumprindo as mais estritas regras do bom gosto e que habitualmente juntam ornamentos feitos em casa com ornamentos adquiridos no comércio tradicional.
O escritor inglês Charles Dickens, nos seus “Contos de Natal”, também se refere à potencial paternidade da Árvore de Natal quando se refere a ela como o “belo brinquedo alemão”, repleto de presentes capazes de satisfazer o coração de qualquer criança.
São as aristocracias germânicas que difundem este costume da ornamentação de um abeto de Natal, às aristocracias europeias, designadamente às aristocracias inglesa e portuguesa. No Reino Unido, é o Príncipe consorte Alberto de Sachsen-Coburg, marido da Rainha Vitória, que leva em 1840 a tradição e que rapidamente se generaliza ao resto da população inglesa, sobretudo após a publicação na imprensa de uma gravura que mostra a família real, no palácio, junto à sua Árvore de Natal.
Em Portugal a introdução é feita por um elemento também proveniente da família Sachsen-Coburg: o príncipe consorte D. Fernando II que casa com D. Maria II em 1836. São muito conhecidos os desenhos que o rei D. Fernando II fez do Natal celebrado no Palácio das Necessidades nos quais se observa um pai vestido de Pai Natal rodeado dos seus filhos, manifestamente empolgados ao verem a figura presenteadora, com um ramo de vergas na mão direita (para alegadamente, senão para punir, pelo menos para assustar os filhos mal-comportados) e com frutas na mão direita e brinquedos num saco a tiracolo e noutro às costas. Toda a cena em torno de um abeto armado em cima de uma mesa decorado com bolas de vidro e iluminado por velas. Mas ao contrário do que acontecera em Inglaterra estes desenhos nunca foram publicados na imprensa portuguesa da época atrasando em Portugal a popularização da adopção da Árvore de Natal como elemento fundamental das festividades natalícias.
Em França, Tille conta que é em 1830, a partir de Paris, que a Árvore de Natal é introduzida através da Duquesa de Orleães, princesa de Mecklemburgo, que a importa da Alemanha. A partir das Tulherias o costume difunde-se por toda a capital parisiense. Trinta anos depois todos os mercados de Paris comercializam abetos no período de Natal e na igreja de Billettes uma Árvore de Natal era oferecida às crianças pobres de uma escola alemã. Em 1890 estima-se que só em Paris o mercado comercializasse já 40 000 abetos para consumo doméstico.
O Loureiro continua a ser utilizado em algumas regiões. Rebecka Mendelssohn, irmã do compositor Felix Mendelssohn, que se encontra em Itália, conta, numa carta dirigida à irmã Fanny em Dezembro de 1843, o modo como decorriam as celebrações do Natal naquele país. Lamenta a falta de um abeto, e refere que em Itália o lugar da árvore tradicional é ocupado por um Loureiro “que toca o tecto”, maravilhosamente adornado com rosas, grandes cachos de uvas, laranjas e um elemento tipicamente romano: frutos cristalizados. Acrescenta que na base da árvore há uma coroa de loureiro, maçãs, nozes, e os incontornáveis presentes.
Palácio de Cristal, Porto, Natal de 1865
É na cidade do Porto, em 1865, que se dá a introdução da Árvore de Natal no espaço público em Portugal, e que na opinião do historiador Hélder Pacheco “não será com certeza estranha à presença de uma bem instalada colónia inglesa cuja vida social influenciaria inúmeros aspetos do próprio modo de ser portuense”, destacando a proximidade desta comunidade com as velhas famílias burguesas do Porto. É por isso também possível que a generalização da armação de árvores no espaço doméstico burguês se tenha dado primeiramente nas casas portuenses. Sobre esta árvore chegam-nos registos que a descrevem como tendo proporções gigantescas e armada no salão principal do emblemático Palácio de Cristal. É ornada com variadíssimos brinquedos, bolas e velas multicolores, balões, algodão em rama, fitas douradas e prateadas não se distanciando muito no seu aspecto, das Árvores de Natal públicas de outras cidades congéneres europeias onde habitualmente são secundadas por enormes mesas apinhadas de brinquedos que são rifados e de seguida distribuídos pelas crianças.
Simultaneamente, no espaço doméstico portuense, arma-se o Presépio e o Pinheiro de Natal, na cozinha o bacalhau triunfa, a véspera de Natal é adocicada com o pão de ló em forma de coração e com bonecos de massa duros cobertos de açúcar e dourados em algumas partes onde também se inclui a nogada parecida com o torrão de alicante. Bebe-se vinho quente fervido com mel, passas e canela e procede-se à tradicional queima de um tronco de pinho. Trocam-se presentes, oferecem-se brinquedos às crianças, e o serão de Natal não se distancia muito dos de outras noites do Norte e da cidade do Porto onde, por exemplo, se contam histórias de fadas e da carochinha, lendas misteriosas de lobisomens… De seguida, toda a família se dirige à Igreja para assistir à tradicional missa do galo.
Celebremos
Actualmente, a armação de uma Árvore de Natal está totalmente generalizada e a sua presença em qualquer casa continua a ter um caráter encantatório para todas as gerações. Uma das possíveis explicações para esta prática milenar chega-nos através de Carl Jung, um dos nomes maiores da história da Psicologia. Pouco antes do Natal de 1957, Jung é entrevistado por Geog Gerster para o “Die Weltwoche” de Zurique. O entrevistador pergunta: “(…) antecipo que o senhor concordaria que as Árvores de Natal são saudáveis – como medida de higiene psicológica?” Jung responde: “(…) o homem interior tem de ser alimentado – um facto que os modernos, com a sua confiança frívola na razão, esquecem frequentemente para o seu próprio mal. A Árvore de Natal é um daqueles costumes que constituem alimento para a alma, nutriente para o homem interior. E quanto mais primordial for o material que eles usam, mais promissores serão esses costumes para o futuro.
Celebremos, portanto, sem tentativas de proibição, esta tradição primordial.
Feliz Natal.
Este ensaio de Sérgio Costa Araújo, investigador e docente no ensino superior público na cidade do Porto, decorre fundamentalmente de dois acontecimentos felizes que o autor e natalista foi protagonista. A comunicação que fez no Natal de 2016 nos Paços do Concelho do Porto na sessão “um objecto e seus discursos por semana”, dedicada à Árvore de Natal dos Aliados. A leitura recente dos textos originais de S. Martinho Bracarense que confirmaram e documentaram as afirmações que aqui se apresentam. E claro está, esta descoberta, ao jeito de uma revelação, constituiu uma verdadeira epifania pessoal para o natalista.
Fonte: sapo.pt